Filigrana da Póvoa de Lanhoso
Monumentos
Natureza
Povoações
Festas
Tradições
Lendas
Insólito
Roteiros
Há dois lugares doirados na Póvoa de Lanhoso, e estão quase lado a lado: Travassos e Sobradelo da Goma. Quer um, quer outro, resistiram às linhas de montagem da industrialização e têm abençoadas mãos a bordar em ouro a acurada Filigrana da Póvoa de Lanhoso, arte que partilham, salvo pequenas diferenças, com a freguesia de São Cosme, em Gondomar.
A filigrana
Li no fascinante mas também enganador mundo online o seguinte resumo sobre a arte do filigranista: “filigrana é a arte portuguesa de trabalhar o fio de ouro ou de prata”. A segunda metade da afirmação consegue sintetizar bem a coisa – na verdade, a filigrana baseia-se no enroscamento de fios que podem ser de vários metais preciosos, mas reconhece-se que a prata e o ouro são, de longe, os mais usados. Já a primeira metade, e descontando o enternecedor patriotismo de quem o escreveu, passa como enganadora, quando não errónea.
O rendilhar de fios de metal, sejam de ouro ou de prata ou de qualquer outro, não é nosso. Por vezes, e talvez por a arte em Portugal ter persistido – mais do que em Espanha, por exemplo, onde quase finou -, tende-se a crer que a filigrana é um produto nacional, o que não é verdade. Está, aliás, muito longe de ser verdade. Historicamente, as origens da filigrana atiram-nos para o burburinho do Mediterrâneo, primeiro com as civilizações do Médio Oriente, depois com Gregos e Romanos a adoptarem semelhante prática. E daí expandiu-se, talvez pelo alargamento do império de Roma.
Há no entanto, um fenómeno do Norte português que é indesmentível – o do culto do ouro, que tem origem na cultura castreja galaica, de provável raiz celta, e cujos costumes aproximam ainda hoje a Galiza do Minho, regiões que outrora fizeram parte do mesmo bloco, o da Gallaecia. Esta idolatria pelo mais cobiçado dos metais preciosos chegou até ao presente. Quem quiser atestá-lo, basta meter os pés nas coloridas Festas da Senhora da Agonia e olhar para as minhotas a envergar um enxoval de áureos corações e trancelins ao peito. Paulo Alexandre Loução, no seu livro “A alma secreta de Portugal“, pega no exemplo das arrecadas vianenses de agora e compara-as com as que foram encontradas em Vilar dos Santos, na Galiza, e que datam do III ao II milénio antes de Cristo – diz o autor que “é impressionante como o arquétipo das arrecadas sobreviveu”. De igual forma, e pegando em específico no exemplo da Póvoa de Lanhoso, três torques de ouro foram descobertos no Castro de Lanhoso, todos decorados com um certo bordado que conseguimos estabelecer paralelo com a filigrana presentemente praticada no concelho.
De resto, para a alma minhota, o ouro não significa apenas riqueza e opulência. O ouro é uma alegoria à fecundidade abundante, e não há nada mais fecundo do que o Minho, desde a terra que dá alimento, à mulher que dá filhos.
Ou seja, podemos discutir quem trouxe a ideia de bordar ouro em pequeníssimos fios para território português. Os romanos terão tido, possivelmente, influência. O povo árabe que ocupou a península também. Mas sendo factual que a arte da filigrana não começou cá, parece evidente que, cá chegando, encontrou no Norte português terreno fértil para crescer. Num sítio com vento favorável, a arte foi aprimorando com o tempo. No século XVII, o negócio das ourivesarias instalava-se definitivamente no país, e não por coincidência, maioritariamente no Norte: no Porto, em Gondomar, na Póvoa do Lanhoso, em Guimarães, em Braga, entre outras. A filigrana chegava às lojas para não mais sair.
A mulher minhota e o seu ouro ao peito
O bordado doirado
Podemos dividir o processo da criação de filigrana em três diferentes fases: a da preparação, a do enchimento, e a da montagem. Cada uma delas pode ser executada por uma pessoa em específico, mais especializada na sua execução, embora os mestres, isto é, os artesãos mais experientes, consigam fazer tudo sem qualquer tropeção.
A preparação
A preparação diz respeito à matéria-prima que, na maioria dos casos, é o ouro. Há quem salte esta parte comprando as ligas metálicas já prontas a ser usadas. Ainda assim, muitas oficinas gostam de ter as três fases de produção integradas, o que só lhes fica bem.
Dada a sua excessiva maleabilidade, o ouro deve ser fundido em conjunto com prata e cobre, de forma a criar uma liga um pouco mais rija, própria para ser melhor manuseada. É depois laminado e reduzido a ligamentos cada vez mais pequenos através de uma fiadeira. Por fim, é batido e esfregado e esticado – uma linha mais delgada que as de costura é criada. Parece impossível quando o vemos. O ouro com a espessura de fios de cabelo, pronto a ir para as mãos do artesão.
O enchimento
O momento que todos querem mirar sem distracções. Aqui entra o artista que, pegando num molde já criado ou criado por si (antes os modelos eram bastante estandardizados mas, recentemente, com a entrada dos designers no mercado, novas armações vieram estimular o trabalho artístico), enche o vazio com delicadas curvas e cruzados. É bom que se compreenda isto: a filigrana é a arte de conjugar o nada com as linhas de oiro. Uma boa dose de um objecto filigranado é ar, isto é, não está preenchido, mas esse espaço vago faz parte da obra, tal como o silêncio pode, em certos momentos, fazer parte de uma canção.
De uma forma geral, a criação dos moldes era antes responsabilidade dos homens e o enchimento era entregue à mulher. Actualmente, esta divisão está cada vez mais esbatida, mas ainda existe.
A montagem
A montagem é a conclusão da peça. O pegar em vários pedaços de filigrana já completados e, soldando uns nos outros, encaixá-los de forma a criar um elemento reconhecível. Não tendo o nível de meticulosidade do enchimento, a montagem requer, contudo, sangue frio, porque é a que tem mais a perder. Uma má montagem compromete a soma de horas gastas em dedicada concentração até àquele momento.
No final, a peça passa por uma técnica limpeza, escovagem e polimento.
As obras e as oficinas da filigrana
Se é verdade que, como disse atrás, a filigrana não é uma invenção portuguesa, será justo dizer que, por cá, ganhou um rosto, um pouco como aconteceu com a arte azulejar. Além das já mencionadas arrecadas, objectos como os brincos rainha ou os brincos de bambolina, bem como os trancelins, as contas, os medalhões, as caravelas, os crucifixos, as borboletas, os broches e os alfinetes ganharam lugar eterno no nosso imaginário colectivo. Quem neste país nunca viu a inconfundível filigrana do Coração de Viana, entretanto popularizada por uma imagem de Sharon Stone (uma neo-minhota de Los Angeles)?
Os temas abordados pelos artistas da filigrana eram caros aos portugueses. Na verdade, são praticamente os mesmos que encontramos, por exemplo, no estilo Manuelino – motivos marítimos, vegetalistas, religiosos.
Contudo, a falta de inovação nos moldes criados e a incapacidade de competir com a industrialização filigranista, foi empurrando os artesãos para o desemprego. Havia perícia, havia know how, havia empenho, mas faltava inovação. Os anos negros duraram anos. Só no fim da década de 2000 se teve a feliz ideia, empurrada pela força dos municípios, de colocar jovens designers a colaborar com os artesãos mais velhos. A parceria foi um sucesso. Os designers apostaram noutro tipo de armações e, sobretudo, noutro tipo de mercados. Os artesãos colaboraram. Mesmo as mentes mais conservadoras deixaram-se levar, compreendendo a máxima de ser preciso mudar para preservar – we must reform in order to conserve, como dizia Burke.
Na última década, temos visto filigrana onde seria impensável no século XX: na roupa, no calçado, na relojoaria, no mobiliário, até em objectos mundanos como isqueiros. Pouco tempo depois, a filigrana entra no mercado de luxo, combinada com algumas pedras preciosas. Adorna pulseias e anéis. Estamos longe, portanto, da filigrana chapa cinco do passado século. E os resultados aparecem. Celebridades rendidas à filigrana nortenha são cada vez mais. E algumas lojas da especialidade decidem vendê-las em regime praticamente exclusivo, como acontece com a Joalharia do Carmo, em Lisboa, ou o Ateliê Liliana Guerreiro, no Porto.
A própria abordagem entre criador e comprador virou do avesso, porque a procura mudou. É mais exigente, mas também está disposta a pagar mais. Os filigranistas compreenderam que as linhas de montagem fabris não são suas concorrentes, porque esse mercado é outro, e o melhor mesmo é deixá-lo estar sossegado. A ideia passa agora por perguntar ao cliente, seja o consumidor final, seja o lojista, o que pretende – a relação é próxima e na base da customização. Peças únicas, feitas a pedido. Filigrana à la carte, resumindo.
Se é certo que há alguma preocupação quanto ao número de filigranistas, temos como boa notícia o contexto actual, que é bem diferente do contexto do princípio de século, para melhor. Talvez este cenário puxe gente jovem para a arte, fazendo a ressalva de que uma mão não nasce ensinada, e aprender a desenhar com fios de ouro não é o mesmo que aprender a andar. A maioria dos actuais mestres tem vinte, trinta ou quarenta anos disto. Começou ainda em miúdo, quase sempre porque nasceu nesse meio e não tinha outra hipótese de fazer uns trocos. Foram décadas de experiência acumulada. Quem quiser entrar neste mundo, é bom que o faça cedo.
Cruz de Malta “bordada” em ouro
A minúcia da filigrana no Coração de Viana
A filigrana no trancelim minhoto
A filigrana da Póvoa de Lanhoso
O município da Póvoa de Lanhoso percebeu bem a joia que tinha nas mãos. Foi isso que o levou, em conjunto com a autarquia de Gondomar, a formalizar um certificado que, através de um Caderno de Especificações, parametrizasse o que seria necessário para que determinado produto pudesse ser considerado “Filigrana de Portugal”. É esse selo que garante ao consumidor estar na posse de uma obra genuína, feita de forma manual e por mãos que sabem o que fazem.
Os mesmos concelhos estão agora empenhados em elevar a filigrana portuguesa a um novo patamar, este de escala mundial: prepara-se uma candidatura conjunta a Património da Humanidade, classificação sob chancela da UNESCO, como sabemos.
Além destes passos, sem dúvida decisivos na distinção da filigrana do Norte, houve esforço para desenvolver o turismo local, junto dos responsáveis pela Filigrana da Póvoa de Lanhoso. Para quem visita o município, há pelo menos três espaços a ir.
Na própria vila da Póvoa de Lanhoso, temos a Sala de Interpretação da Filigrana, actualmente instalada na Casa da Botica, e que serve de homenagem a todos os homens e mulheres que entregaram este património à sua terra. Lá podemos conhecer um pouco da cronologia da arte filigranista, bem como perceber como era feita e com que recursos. Há também algumas peças expostas.
Em Travassos, epicentro da Filigrana da Póvoa de Lanhoso, há o Museu do Ouro, construído como reaproveitamento de uma encerrada oficina e que recria um antigo ateliê filigranista – um espaço que devemos agradecer a um antigo ourives que operou uma recolha sobre tudo o que aludia à arte. Aqui há também exposições permanentes e temporárias, bem como apresentações e actividades relacionadas com a filigrana.
Já em Sobradelo da Goma, a outra freguesia lanhosense que se dedicou à causa, pode visitar a Oficina do Ouro, mas aqui recomenda-se marcação.
Se mesmo assim não chegar, há sempre a hipótese de andar de porta em porta, entre Travassos e Sobradelo da Goma, e conhecer pessoalmente os artesãos com as mãos na massa. Regra geral, eles abrem a porta, embora seja conveniente confirmar a ida antes. Não os queremos perturbar a meio de um labor que vale ouro.
Póvoa de Lanhoso – o que fazer, onde comer, onde dormir
Portugal nasceu aqui, num baluarte anterior à própria pátria, hoje conhecido como Castelo de Lanhoso - foi especialmente querido à história de D. Teresa, mãe de Afonso Henriques, que alguns consideram a verdadeira primeira monarca portuguesa. Além da renovada fortificação, há, logo ao lado, duas outras construções obrigatórias - o Castro de Lanhoso, que esteve na origem de tudo isto, e o Santuário de Nossa Senhora do Pilar, que começa no sopé do Monte do Pilar e chega até ao seu topo.
E no entanto, apesar dos três exemplos de património histórico descritos acima já serem suficientes para justificar uma visita, Póvoa de Lanhoso tem muito, mas mesmo muito, para ver. A destacar, temos a Filigrana que é trabalhada em Travassos e em Sobradelo da Goma, em primeiro lugar. Em segundo, o Centro Interpretativo Maria da Fonte, um espaço de pesquisa e divulgação de uma das mais célebres figuras da cultura popular, cantada e pintada e esculpida de norte e sul do país enquanto protótipo da mulher nortenha, e que de uma pequena revolta junto à Igreja de Fonte Arcada fez contagem decrescente para uma nova guerra civil. E em terceiro, caso haja possibilidade de ir a meio de Março, as Festas de São José, que se prolongam por uma semana mas que têm no dia 19 de Março o momento da sua majestosa procissão.
Quanto a lugares estivais, o pontão da Barragem de Andorinhas - num trecho predestinado do rio Ave, logo a jusante da lendária Ponte de Mem Gutierres -, e a Praia Fluvial de Verim, no extremo norte do município, são escolhas evidentes. Não muito longe desta última, o Pelourinho de Moure é uma curiosa obra que contraria o manuelino de onde brotou. E numa outra apertada praia, a Praia Fluvial da Rola, há o Santuário da Senhora de Porto d'Ave, responsável pela concorrida Romaria dos Bifes e dos Melões. De referência internacional é o DiverLanhoso, um dos maiores parques de aventura no continente europeu, com diversificada oferta de actividades, mormente para a criançada.
Nas comidas, os dois andares do Velho Minho guardam boa garrafeira e cozinha regional bem preparada - é bom o cabrito, finalizado com um pudim Abade de Priscos. Para dormir, o resguardo da Casa do Monte da Veiga, junto a Calvos (onde respira um dos mais belos carvalhos nacionais), dá noites sossegadas a quem as quiser, mas também a Villa Moura, em Fonte Arcada, entrega boa qualidade de serviço, piscina, e vista desimpedida sobre a serrania que cerca a sede de concelho.
Mais ofertas para noites na Póvoa de Lanhoso em baixo:
Mapa
Coordenadas de GPS: lat=41.57292 ; lon=-8.20176