São Martinho de Maçores

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Uma pequena aldeia no município de Torre de Moncorvo, a cerca de quinze minutos da sede de concelho, conta com uma festa sem paralelo no país: é o São Martinho de Maçores, todos os anos, em Novembro, a rondar a data dedicada ao santo.
É ramboia de dois ou três ou quatro dias – depende sempre de quando calha 11 de Novembro e se dá para colá-lo ao fim de semana. O grande dia, nas últimas edições, está reservado para Sábado.
Tragar castanhas e emborcar vinho
Passaria por um Magusto normal. A maioria do programa de festas poderia ser encontrado num cartaz de qualquer outro vilarejo nacional: assadura da castanha no fogo, prova de vinho novo e de vinho fino, jeropiga e água-pé em barda, concertos, fogo de artifício, passeios pela natureza, e a habitual romaria dedicada ao orago do burgo, neste caso São Martinho. Uma repetição do que tantas vezes se vê em Portugal, sobretudo na região Norte, onde as festividades profano-religiosas acontecem mais vezes e com mais pessoas.
Não fosse o esdrúxulo rito que os nossos olhos testemunham e que teimam em não a transmitir por completo ao cérebro. Beber vinho no São Martinho não é novidade para ninguém – bem diz o ditado, Martinho bebe o vinho, deixa a água para o moinho. Bebê-lo assim, desta forma, é que confunde a razão.
Mas antes de se desvendar o incauto comportamento dos maçoranos, vamos à preparação da festança, que na verdade começa um dia antes da abertura oficial, quando os gaiteiros vindos do Nordeste, com as suas gaitas mirandesas, chegam ao povoado com a promessa de bailarico. Há ronda pela aldeia, com gaitada e copázios para o bucho. Um ensaio para o que está para vir no dia seguinte.
E o que se segue, passada a alvorada, é novo circuito pela terra, outra vez com os gaiteiros, mas agora armados com uma caldeira de latão ou de zinco, suspensa no meio de uma vara, e carregada por dois rapazes (ou raparigos, usando o termo local), que deve recolher o néctar de Baco de porta em porta. Essa gente está preparada para o peditório. Tem o garrafão a postos mal a desafinada melodia da mirandesa lhes chega ao pátio.
Reunido todo o vinho, faz-se então uma pausa. Hora de almoço. Uma celebração comunitária onde entram os manjares locais. Mais uma desculpa para nos entregarmos ao delírio do tinto, doce ou maduro.
De estômago cheio prepara-se a fogueira para a castanha. Serve como sobremesa, mas ao relento, e ao frio, porque é Novembro em Trás-os-Montes.
Só depois vem o que todos aguardam. A razão para se ali estar e aquilo que transforma o São Martinho de Maçores como um dia irrepetível no calendário da etnografia portuguesa.
Retornam os gaiteiros à fila da frente. Voltam os raparigos a levantar a haste onde se segura a caldeira, a transbordar de vinho, finalmente preparada para ser bebida. Contudo, a caldeira não serve de jarro. Não extravasa nada para outros copos. Quem quiser beber, bebe dali. Se isto já parece incomum, atente-se no resto. Para provarmos aquilo que a caldeira guarda, esta deve ser colocada no chão, e o interessado deita-se até lá chegar com os lábios, ou se não se deita fica perto disso. Depois, num gesto muito semelhante ao de uma flexão, enfia a cara dentro da vasilha e, sem mãos (porque as mãos estão apoiadas no chão), deve sorver o que conseguir.
As caras enfarruscadas
Assim prossegue o cortejo. Lá vai mais um a flectir. Lá vão dois. E mais um.
Uns quantos fazem batota e resolvem pegar na vasilha e entorná-la boca abaixo. É o álcool a fazer esquecer as regras do jogo. Ninguém se importa. Nós a ver. Também a beber. E a pensar se foi o tinto a drogar-nos, talvez tudo aquilo seja mentira.
Entretanto, enquanto aquele espectáculo dionisíaco avança, a fogueira do magusto é usada para um outro fim.
Homens e rapazes (e nos últimos tempos, mulheres e raparigas idem) resolvem apanhar cinza e borrar a cara com ela. Ao mesmo tempo, borram a cara dos que estão a seu lado. Em pouco tempo, fica tudo chamuscado. Já não são só as castanhas a estar assadas. Quem as come também está. Todos apresentam, em alguma parte do corpo, sobras de borralho, como uma certidão de participação.
Estamos tão embrenhados no caos que nem questionamos se tal faz sentido. Emborrachados no caldo comunitário daquela bendita aldeia, olhamos à volta, e confirmamos, somando os rostos: não há uma única cara que não ri.

O fogo do magusto alimentado a palha

Vinho vertido do garrafão para a caldeira

Uma veneração ao vinho
Significado do São Martinho de Maçores
Ilda Fernandes, estudiosa natural de Maçores que dedicou parte da sua vida à escrita sobre a sua aldeia em particular, e sobre Torre de Moncorvo em geral, encontra no ritual de Maçores uma possível origem judaica, fruto da sabida presença de judeus no concelho moncorvense, que manteve alguns dos seus procedimentos religiosos em segredo.
Para isso vai buscar uma investigação de Lígia Pilão, feita em Vale de Salgueiro, concelho de Mirandela, acerca de uma festa realizada em Janeiro onde rapazes de tenra idade tinham autorização para beber o seu primeiro tinto e fumar o seu primeiro cigarro. Lígia Pilão atribuía tal comportamento a resquícios das comemorações das circuncisões judaicas. Paralelamente, o antigo São Martinho de Maçores também tinha essa componente de pegar em jovens, sempre do sexo masculino, e impeli-los a ter comportamentos de emancipação – como beber vinho ou fumar tabaco. Daí a analogia.
Honestamente, e com o maior respeito por Ilda Fernandes, que não tive o prazer de conhecer, mas tive o gosto de ler, penso que a comparação sofre de demasiada elasticidade.
Uma outra explicação vem do insuspeito Abade de Baçal. Diz ele que os rituais observados em São Martinho de Maçores são descendentes das bacanais gregas e, posteriormente, romanas, em honra a Dioniso, no caso grego, ou Baco, no caso romano. E dá como exemplo as Antestérias e as Oscofórias.
As Antestérias, de facto, honravam Dioniso combinando vinho e certos comportamentos de transgressão que podemos reencontrar em Maçores. Contudo, as Antestérias aconteciam no fim do Inverno, ou início da Primavera. A melhor correspondência que podemos dar à antiga comemoração grega é, porventura, o actual Carnaval europeu. Quanto às Oscofórias, celebravam-se no final de Outubro, e estavam relacionadas com a colheita da uva, mas também envolvendo ritos de iniciação. E não só: a cerimónia, na antiga Grécia, era realizada por dois rapazes vestidos de mulher e ornados de uvas que se dirigiam de Atenas até a um santuário, supostamente já destruído, situado a sul da cidade, em Falero. A comparação com Maçores bate certa, até nos dois rapazes que, na aldeia moncorvense, apesar de não se vestirem de mulher, carregam vinho consigo.
Porém, aventuro eu uma terceira hipótese, que vai buscar um pouco do que é o magusto em território luso, conforme já foi explicado neste espaço.
Em Portugal e na Galiza, a festa das castanhas realizada no dia 11 de Novembro, agora tido como dia de São Martinho, reveste-se de rituais muito similares aos do Samhain celta, ou seja, aos da passagem da noite de 31 de Outubro para 1 de Novembro – aquela que, comercialmente, designamos como a de Halloween.
A razão para tal acontecer vem de trás. De 1582, ano em que, para ajuste de calendário, se resolveram adiantar dez dias do ano – aconteceu no mês de Outubro, e do dia 4 passou-se de imediato para dia 15, esquecendo todos os dias intercalares. Algumas tradições mantiveram a noite mágica de 31 de Outubro para 1 de Novembro como a que deveria ser festejada. Outras readaptaram-se à mudança, e empurraram os ritos comuns do Samhain para a noite de 10 para 11 de Novembro.
Ora, o Samhain, sendo uma passagem de ano no calendário celta – terminava a época quente, iniciava a época fria –, era entendido como um dia de ninguém. Um espaço de transição entre ciclos onde a permissividade reinava. Assim se poderá explicar o êxtase vivido em Maçores, onde quase tudo é permitido, conforme relata Ilda Fernandes: “por hábito, as crianças e mulheres nunca bebiam vinho, mas nesse dia especial os raparigos tinham plena liberdade para o fazerem […] e caso algum se embebedasse, ninguém dava importância e podiam até fumar, que nesse dia tudo lhes era perdoado”.
Também no Samhain se acreditava que o portal entre o reino dos mortos e o reinos dos vivos abria. E que eles nos poderiam levar para a sua dimensão caso se apercebessem da nossa condição. Daí que as fantasias no Halloween tenham essa predilecção pelo horror – a ideia era que os vivos passassem despercebidos no meio dos mortos. Em Maçores, o pintar das caras de negro, usando as cinzas da fogueira, pode indicar essa tentativa de disfarce.
São tudo suposições, claro. E, de resto, importam sempre menos do que experimentar o São Martinho de Maçores em pessoa.
Torre de Moncorvo – o que fazer, onde comer, onde dormir
Não sendo oficialmente parte da Terra Quente transmontana - como o são Vila Flor, Alfândega da Fé, Carrazeda de Ansiães, Mirandela, e Macedo de Cavaleiros -, Torre de Moncorvo acumula ainda muitas das suas características: um tempo quente e seco no Verão, com chuvas reservadas para os meses invernais, alternadas com raros momentos de neve. Estando num enclave entre o rio Sabor e o rio Douro, que inclui uma mancha do viçoso Vale da Vilariça a norte, podemos concluir que o concelho foi de certa forma abençoado com bons cursos fluviais e uma boa dose de calor, sorte que só é contrariada pelas frias altitudes da Serra do Reboredo, onde a sede de concelho repousa a meia encosta.
É nesta dicotomia, entre a magnitude do Reboredo que lembra a Terra Fria, e o vale onde a ribeira da Vilariça traz boa fortuna às colheitas que lembra a Terra Quente, que devemos conhecer o município. No primeiro caso, o do Reboredo, com uma viagem atribulada entre os caminhos batidos que levam a vários miradouros serranos e, já agora, à histórica aldeia de Mós, deixada para trás pelo tempo. No segundo caso, o do Vale da Vilariça - sustento da ovelha Churra da Terra Quente -, com um roteiro pelas quintas vinícolas do Douro Superior, havendo várias por onde escolher, mas destacando a Quinta do Couquinho (convém ligar para sondar se pode haver visita) ou a Quinta da Terrincha (com possibilidade de pernoitar num solar oitocentista).
Nas zonas fronteiriças da concelhia guardam-se as horas para o turismo de natureza, sobretudo as que metem água ao barulho - no eixo ocidental temos o Caldeirão, um poço natural acedido por uma pequena rota pedestre mas que nem sempre tem água suficiente para banhos no pico do estio, e na confluência do Sabor com o Douro temos a Praia Fluvial da Foz do Sabor, justamente a mais concorrida da região, com uma envolvência que tão depressa não se esquece.
Já Torre de Moncorvo, a vila, vale muito a pena. Sendo verdade que do seu castelo já mal consigamos ver alguma coisa sem recorrer ao uso da imaginação apoiado em um ou outro muro fortificado recentemente requalificado, também não é mentira que os moncorvenses têm muito para contar da sua terra - sobre a judiaria e como ela foi uma espécie de quartel das comunidades judaicas transmontanas, sobre o ferro e as minas que abriram para o caçar, sobre a Basílica Menor da Senhora da Assunção e a ambição de aqui se ter uma nova diocese que dominasse todo o Nordeste. De caminho, e porque quase todo o comércio municipal se concentra na sede de concelho, aproveite-se para comprar e levar na bagagem o famoso Queijo Terrincho e a Amêndoa Coberta de Moncorvo, que por acaso nem casam mal um com o outro.
Fora da vila, há pelo menos dois exemplos de património religioso que devem ser mirados: a Capela da Senhora da Teixeira, que com boa dose de exagero à mistura é apelidada como a Capela Sistina de Trás-os-Montes; e aquela que é conhecida, entra várias designações, por Igreja das Três Marias, onde as paredes falam mais do que pensamos. E se por acaso viajarmos por estas paragens no início de Novembro, faça-se o possível para assistir ao dia de São Martinho na povoação de Maçores, uma tradição fora do comum até para quem está habituado a tradições fora do comum. Caso Novembro não seja hipótese, lembrem-se de Moncorvo no final de Fevereiro, quando as amendoeiras espetam as suas flores para fora e enchem os campos de rosa e branco - é sempre bom recordar como os maiores espectáculos que a natureza nos dá não têm preço.
Onde comer
Primeiro, uma curiosidade: se forem refrescar-se à Foz do Sabor, porque é lá que está a principal praia fluvial de Moncorvo, lembrem-se do Lameirinho, um pequeno estaminé que serve peixe de rio frito.
Fora isso, é imperativo conhecer a gastronomia transmontana pelas mãos da senhora Dina, que governa a Taberna do Carró, um aconchegante lugar onde as mesas são cobertas com padrões de piquenique, e a Posta à Mirandesa é feita no fogo. Conta também com loja anexa, com venda de produtos regionais. E ademais, temos o Lagar, restaurante que deambula pelas iguarias de Trás-os-Montes - em especial pela amêndoa de Moncorvo, sobretudo nas sobremesas. Tem cardápio rotativo, e óptimas favas guisadas.
Onde dormir
O melhor sítio para ficar em Torre de Moncorvo é a Quinta da Terrincha, num terreno vinhateiro abençoado pelo Vale da Vilariça (que, já agora, é o principal fornecedor do maravilhoso pequeno-almoço). Tem na casa principal os quartos mais luxuosos e conta com lareira, que é sempre um bombom nos meses mais frios. É, contudo, também um dos sítios mais caros do concelho, embora não excessivamente, e já sabemos que o bom custa dinheiro.
Mais modesto é o Capalonga, uma bonita casa transmontana aproveitada para Alojamento Local na aldeia de Larinho. Por dentro ainda vemos como era o típico casario do interior Norte português. Melhor para repouso, já que está longe das principais urbes.
Para conhecer mais promoções para dormidas em Torre de Moncorvo, ver em baixo.
Mapa
Coordenadas de GPS: lat=41.12788; lon=-7.00235