Água-Pé

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Para malta mais requintada, a água-pé ainda é olhada de lado. Para os restantes, é tida como um dos mais descomprometidos néctares que existe no país, e coloca-a como condição necessária à existência do Dia de São Martinho. Apesar de ser comum bebê-la em qualquer região a norte do Tejo, é na Beira Baixa, na Beira Alta, e em Trás-os-Montes, que tem maior consumo, não por acaso as zonas onde o castanheiro predomina.
O que é a água-pé
Hoje em dia, designa-se água-pé a quase todo o tipo de vinho que leva água, inclusivamente os mais caseiros, feitos em casa, com a ajuda de outros vinhos menos decentes e um alguidar para a mistela.
No entanto, convém lembrar a sua história.
O nome água-pé já nos revela bastante. Que leva água, para começar. E o pé poderá vir da uva pisada que não chegou a dar vinho.
A óbvia pergunta que se segue tem pertinência: não é isso de aguar sumo de uva um desperdício de mosto? Pois não é suposto aguar todo o mosto. Grande parte dele serve o nobre propósito de dar um bom vinho maduro. O que se passa por água é o resíduo que fica no lagar, depois da pisa ou da prensagem. E fazemos tal coisa para limpar as sobras e soltar o bagaço das paredes do tanque. Ora, mesmo estas sobras têm um pequeno depósito de sumo ainda por tirar, e portanto a água que daqui sai carrega consigo o tinto das uvas.
No passado, e como neste país quase tudo se aproveita, os proprietários ferviam e fermentavam também esta mistura. Daqui resultava um vinho diferente, mais translúcido embora com tom claramente avermelhado, e com menos grau, naturalmente, por ter menos açúcar para ser transformado em álcool. Raramente era vendido. Em vez disso, era oferecido pelos produtores aos seus empregados na altura das colheitas (juntamente com jeropiga), coincidindo estas com os magustos que pontuavam todo o país.
Foi esse hábito de termos sobretudo as classes mais baixas a beber água-pé que nos levou a apelidá-la de vinho dos pobres.
O vinho dos pobres
Por mais voltas que demos, teremos sempre na cabeça esta imagem: a água-pé, pelo seu baixo custo e pelo seu método de produção, dificilmente sobe do estatuto de vinho do pobres, etiqueta que lhe colaram num pretérito não muito distante (em alternativa, há quem a chame de campanhe dos pobres, dado que, por vezes, a água-pé tem um ligeiro pico que pode passar por gaseificado).
De facto, a água-pé nasceu, como vimos, de um aproveitamento do resto de mosto que não chegou à condição suprema de ser ponto de partida para um bom vinho de mesa. Como acontece com quase todo o produto que é originado de sobras, foi olhado de esguelha desde o momento em que foi inventado, posto lado a lado com tintol carrascão. Quantas vezes não se ouviu gente que, ao não gostar de certa vinhaça, exclama isto nem para água-pé dava.
Pois o soslaio com que é mirada acaba por ser injusto, uma vez que o mérito da água-pé é precisamente o não querer ser um vinho como os outros. Água-Pé é água-pé, ou seja, um vinho aguado, e por isso não pode ser posta na mesma divisão que um vinho convencional. Se num vinho de mesa procuramos robustez, na água-pé queremos sentir apenas e só simplicidade. O singelo gesto de quem viu que ainda havia sumo possível num bagaço pronto a ser deitado fora.
Num mundo de vinhos onde facilmente, e sem darmos por isso, nos tornamos snobs, a água-pé é um saudável avesso. Uma lembrança de que a mais apurada das bocas também tem de ser popularucha, nem que seja só uma vez por ano, quando Novembro chega.