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Há uma lenda antiga sobre o Rio Douro que muito diz dele. Conta-se, em jeito de fábula, que quando o mundo ainda estava no seu princípio e a humanidade ainda não existia, três nascentes de água ibéricas nasceram, irmãs gémeas. Eram elas o Tejo, o Guadiana, e o Douro. E quando chegaram à idade adulta ficaram prontas a correr montes e vales, emancipando-se de nascente para rio, e apostaram entre si qual delas chegaria primeiro ao oceano.

Quando a data da partida chegou, o Guadiana foi o primeiro a levantar-se e a fazer-se ao mar. A vida foi-lhe mais ou menos facilitada, sobretudo quando chegou às planuras alentejanas e extremeñas, onde o relevo foi brando. O Tejo dormitou um pouco mais, e ao ver que um dos seus irmãos já tinha partido, apressou-se, cortando serranias exigentes até à recta final, quando as lezírias do Ribatejo aparecem e lhe dão descanso até se entregar ao Atlântico. Por fim, em último lugar, despertou o Douro, que entrou em pânico ao notar a ausência de ambos os irmãos, e se fez ao caminho dando tudo aquilo que tinha e mais alguma coisa – apesar do relevo brutalmente acidentado, da dureza dos penedos de granito que não vergam, dos estreitíssimos abismos de rochas onde parece não caber um braço, o Douro tudo venceu, graças à sua força e ao facto de saber que estava atrasado em relação aos outros.

Um rio de xisto, granito e vinho

Como todas as lendas, há um fundo de verdade a dar-lhes invento. Dos grandes rios que passam pelo actual território português, o Douro é, de longe, o mais controverso, o mais misterioso, e o mais feroz – apesar de já domesticado pelo Homem, com algumas barragens a amainarem a sua fúria natural. Mas ainda assim, esse lado selvagem do Douro continua a existir, e sobretudo pode ser comprovado pelos desfiladeiros profundos onde corre, nos quais até o granito, uma rocha quase invencível, sucumbiu ao seu músculo.

A crueldade e austeridade que o caracterizam não podem, a bem da memória daqueles que lá morreram, ser postas de parte. Foram muitos os rabelos que se perderam a navegar nas traiçoeiras águas durienses, das vinhas transmontanas até à foz, dividida entre a cidade do Porto e Vila Nova de Gaia. Era coisa tão habitual que o vinho que carregavam não enchia os barris – deixavam cada um encher-se até apenas metade da sua capacidade, para que, a haver naufrágio, o peso de cada fosse suficientemente leve para poder boiar, e assim ser mais facilmente resgatado.

A sua importância no ordenamento do território português verificou-se tão importante que não só deu nome a duas províncias – Trás-os-Montes e Alto Douro, e Douro Litoral -, como funcionou, grosso modo, para criar uma espécie de separação entre norte e centro. Emprestou igualmente o seu nome a uma região de vinhos que virou mãe do vinho fortificado mais conhecido no mundo: o Vinho do Porto.

É essa manifestação vinícola que mais lhe reconhecemos. O Douro que encontramos hoje é um dos melhores exemplos de como a vontade humana, por vezes, supera as aparentemente inevitáveis leis naturais. Sobretudo no Alto-Douro, quando olhado em bruto, nada faz crer que dali se conseguiria sacar coisa alguma, muito menos vinhos de indiscutível qualidade. Mas o trabalho do Homem moldou a paisagem àquilo que se pretendia. Olhar aqueles socalcos às cavalitas uns dos outros, cobertos de videiras, numa escadaria geométrica e desmedida, é um prazer tão intenso como uma prova de um bom vintage. E isso dura por bons quilómetros – é só quando o rio Paiva se vem juntar ao rio Douro que a paisagem se urbaniza, adivinhando a chegada da cidade invicta, a ocidente, deixando as caves que armazenam parte do seu vinho na margem esquerda.

Mas voltando a montante. Apesar de estarmos no norte, aqui, no Douro mais interior, domina a terra quente. O Atlântico larga as chuvas nas encostas ocidentais da Serra do Marão e de Montemuro, e as suas elevações servem de muro aos ventos ocidentais mais frios, que não entram nos vales que o rio Douro vai serpenteando. A somar, o xisto, logo a partir da Primavera, começa a acumular o calor do sol, tornando as temperaturas estivais num verdadeiro inferno. Diz António Barreto, um dos maiores conhecedores da região duriense, que quem poisa pé nessas rochas xistosas, “sente labaredas”. É por isso que, nas suas margens, povoações são poucas. Destaca-se a de Peso da Régua, mas a maioria procura espaço no cimo dos montes que vão aparecendo, incessantemente, por serem mais frescos.

De um lado e de outro, a partir de Barqueiros, há quintas e quintas a perder de vista. Valeria a pena tirar um ano sabático só para as descobrir a todas. Destacam-se a Quinta do Vallado e a Quinta da Pacheca, ambas à beira de Peso da Régua e Lamego, ou a Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo e a Quinta de La Rosa, mais próximas do Pinhão. Tão paradisíacas que se torna difícil crer que aquele rio que vemos em baixo foi um dia o infortúnio de muito boa gente, gente essa que, com o suor que aqui gastou, mal tempo teve para apreciar uma visão tão perfeita quanto a que se vai desenhando de um qualquer miradouro vinhateiro.

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