Museu Nacional Machado de Castro
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O coimbrão Museu Nacional Machado de Castro, não vou ter pejo de o dizer, é um dos mais significativos espaços de exposição de todo o território nacional. A concorrer com ele, apenas encontro o Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, e o Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto. E a verdade é que se nos confinarmos a uma das sete belas-artes em particular, a escultura, ninguém lhe faz ameaça dentro de fronteiras, fazendo-se valer da magnífica e longeva escola de moldagem que Coimbra criou e soube manter.
O seu nome, Machado de Castro, é vaidosa referência a um desses homens devotados à estatuária, Joaquim Machado de Castro, descendente de um organista e mestre da talha, filho da formação jesuíta que Coimbra garantiu a quem queria fazer do corte da pedra ou da madeira arte. Escultor de vasto trabalho da época setecentista, a maioria dele em Mafra e Lisboa (é da sua autoria a muito gabada estátua de D. José a cavalo, no âmago da Praça do Comércio), acabou como senhor de confiança da Casa Real. E mais importante, hoje vê um dos mais substantivos museus de Portugal dedicado a si.
Deixo, desde já, uma premissa para o texto que se segue: não é intenção destas linhas aprofundar cada uma das obras expostas no Museu Nacional Machado de Castro, até porque não sairíamos daqui, tantos são os objectos e tamanha é a sua história. Tentarei, de forma genérica e sucinta, descrever o porquê de uma visita a um espaço central na cultura conimbricense e nacional, e que obriga a pelo menos uma manhã ou uma tarde de prova se se quiser assimilar as coisas com olhos de ver.
Um vórtice temporal
É certo que quando falamos do período romano por esta zona se tende a desviar o olhar de Coimbra para o pôr noutro sítio, nada longe daqui, e que na verdade esteve na origem toponímica da cidade beirã: falamos das ruínas de Conímbriga, a velha povoação fundada pelas legiões de Roma, situada no concelho de Condeixa.
Contudo, com o tempo, escavações vieram revelar uma substancial importância de Coimbra durante a época romana, na altura com outro nome, Aemnium, e cujo epicentro político e urbano se encontrava no topo de uma colina a bordejar o rio Mondego – a mesma que depois veio acolher o Paço dos Reis, o Paço Episcopal, e o Paço das Escolas, ou seja, a Alta coimbrã, sempre reservada a uma elite régia, ou religiosa, ou cultural.
Esse pretérito que existiu na passagem para a era cristã está muito bem representada no Museu Nacional Machado de Castro pela presença de um abobadado criptopórtico que funcionou como alicerce do fórum romano e também como armazém de provisões e que hoje se mostra como um túnel de estreitos labirintos, esteio dos pisos superiores do museu. O fórum do século I deverá ter sido originalmente obra do Imperador Augusto, mais tarde regenerado e alargado pelo Imperador Cláudio, e algum do espólio aqui está apresentado para que não haja grande dúvida do que a investigação tem defendido. O criptopórtico surgiu, assim, como plataforma da aplainamento, uma estancagem ao pronunciado declive do morro coimbrense, e o que mais surpreende é que agora, praticamente dois mil anos depois, não perdeu tal propósito.
Da fase sueva, alana e visigótica perde-se um pouco o rasto ao que por cá se fez. Talvez o abandono do fórum justifique a ausência de artefactos ou testemunhos. Não obstante, o cume de Coimbra voltou às páginas de história durante o período islâmico e sobretudo após a Reconquista, quando deste varandim sobre o Mondego se fez uma casa para o bispado coimbrão olhar de cima a crendice leiga que morava lá para o sopé do outeiro, a dita Baixa. O Paço Episcopal, como ficou conhecido, apareceu no amanhecer da nacionalidade portuguesa, e é neste enquadramento que se explica a monumentalidade de certos edificados como a Igreja de São João de Almedina (que quando foi cedida ao museu causou várias rixas entre estudantes das Esquerdas e das Direitas), o claustro (original de um Portugal pré-independência), a porta em ferradura (a lembrar a força dos moçárabes na demografia conimbricense mesmo após a derrota sarracena), bem como alguns apontamentos mais recentes mas de ostensiva aparência, como a loggia renascentista do século XVI que estabelece uma nova ligação ao Lácio, bem mais de mil anos depois da queda do império romano no ocidente, e que presentemente alinha o velho e o novo na eclética arquitectura do museu.
É neste emaranhado cronológico de modas e manias – de Roma se fez longo e obliquo percurso até aos tempos modernos -, que se decidiu instalar uma exposição para o grande público apreciar. No início, estava circunscrita a uma colecção de obras de cariz regional e maioritariamente catalogadas no lato conceito da arte sacra. Estávamos em 1913 quando as portas abriram. Só mais de cinquenta anos depois chegou a promoção a museu nacional. E a actual renovação, um virtuoso engenho de Gonçalo Byrne, apenas se concluiu em 2012 – graças a ela, o museu recebeu duas das suas maiores distinções (o Piranesi Prix de Rome, em 2014, e a integração do espaço museológico na UNESCO, em conjunto com a já reconhecida Universidade de Coimbra, Alta e Sofia).
Acerca da remodelação executada por Byrne, é justo dizer mais umas palavras: quem dera que toda a arquitectura tivesse esta predisposição para conservar o que há de belo. Talvez se evitasse, por exemplo, o incompreensível arrasamento das castiças ruas da Alta universitária perpetrado a meio do passado século, substituídas pelos blocos sensaborões que hospedam as faculdades logo que passada a Porta de Ferro do Paço das Escolas para o exterior. Quanta vida não se perdeu ali, quantos fados não ficaram por cantar. Felizmente, o arquitecto alcobacense não cedeu à sedutora ideia do reset: conseguiu deixar intocado o património que resistiu à prova do tempo, tornou-o até parte imperativa do roteiro histórico, e ao mesmo tempo encaixou peças de bonita compatibilidade. Pelo meio tornou toda a visita ao Museu Nacional Machado de Castro um passeio de improvável fluidez.
A Capela do Tesoureiro, antes pertença da Igreja de São Domingos, é um dos momentos altos da longa visita que se exige
Criptopórtico como memória da Aemnium, a Coimbra romana
A coleção
O principal museu de Coimbra viu-se bafejado pela sorte desde o seu início. Com efeito, foram muitos os mosteiros, as igrejas, os colégios, até os trabalhos de escavação arqueológica, que lhe cederam parte do seu rico património. Entre eles está o poderosíssimo Mosteiro de Santa Cruz, importante trampolim para o reconhecimento de Portugal enquanto país, o gótico e misterioso Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, parcialmente destruído pelas imprevisíveis cheias de um rio, o posterior Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, que veio tomar o lugar do anterior, ou a tão acarinhada Sé Velha, embrião da antiga diocese e palco do fado estudantil. Qualquer um destes forneceu o Museu Nacional Machado de Castro com produções de excelência. Junte-se a isso as doações e as aquisições, e daqui resulta um espólio de incalculável valor, boa parte dele arrecadado por falta de espaço para o expor, outra parte exibida em exposições de outras casas nacionais.
De forma simples e estruturante, não exactamente cronológica, podemos dividir o espólio entre as peças de arqueologia, de escultura, de pintura, de ourivesaria, e por fim de uma macro categoria que se poderá intitular de arte civil e decorativa, onde incluo o mobiliário, as tapeçarias, a azulejaria, e similares. Debruçar-me-ei na escultura, na pintura, e na ourivesaria, tendo em conta que as restantes categorias são, com o devido respeito, secundárias – os artefactos encontrados em Coimbra e na vizinha Conímbriga vão até ao período romano e terão certamente grande valor arqueológico mas são de média importância artística quando comparados com as grandes obras expostas; e no que toca à arte decorativa, há uma interessante colecção de tapeçaria e de móveis orientais e um curioso conjunto de azulejos ao serviço da pedagogia mas que não chegam ao nível de alguns exemplares talhados na pedra ou pintados a óleo.
À parte fica a Capela do Tesoureiro, que poderemos considerar parte do património escultural do museu, mas que funciona como um monumento em si mesmo, muito bem enquadrado no percurso e acompanhado, na mesma sala, por demais objectos retabulares. Sobre a capela, avance-se que fazia parte do Convento de São Domingos, templo da Rua da Sofia, que está actualmente irreconhecível depois de transformado em shopping. Acusa um renascimento em ponto de rebuçado, de formas inconfundivelmente clássicas, produto do génio de João de Ruão, o mesmo que fez da Sé Velha e do Mosteiro de Santa Cruz monumentos de visita obrigatória, e que obrou a “Deposição no Túmulo” de que adiante falarei.
Escultura
A nata do espólio do Museu Nacional Machado de Castro está quase toda na secção destinada à escultura. Nisso, não há em Portugal exemplo que lhe faça frente. Não podia ser de outra forma, tendo em conta a quantidade de escultores que nasceram, que se formaram, ou que viveram em Coimbra.
A actual colecção compreende longo período, do século XI ao XVIII, e inclui estatuária em madeira, em barro, e em pedra (nomeadamente a Pedra de Ançã, cujo depósito fica no concelho de Cantanhede e, portanto, bem perto da cidade-estudante).
Começando pela madeira, sobressaem trabalhos como o “Cristo Negro”, de corpo prolongado, a marcar o sofrimento de Jesus na cruz; a “Pietá”, de Frei Cipriano da Cruz, numa das mais dramáticas imagens promovidas pela Igreja onde Maria agarra Cristo morto nos seus braços; um retábulo de excelente entalhe dedicado ao nascimento de Cristo, encomendado à escola flamenga para se exibir no Mosteiro de Santa Clara; e a imagem policromada setecentista de Santa Clara – bem-aventurada cultuada em terras coimbrãs, muito em especial pela rainha Santa Isabel – que emparelha com outra de igual estilo mas dedicada a São Francisco.
Em pedra há pelo menos duas obras-primas: a sobredita “Deposição no Túmulo”, dos formões de João de Ruão, fascinante labor que os olhos não se cansam de apreciar detalhadamente; e o “Cristo no Túmulo”, de temática não muito distante da anterior, mas aqui com maior enfoque em Jesus e um ligeiro piscar de olho à Ressurreição quando vemos, sob o corpo, a silhueta dos soldados adormecidos. De assinalar duas outras obras, uma que testemunha o culto aos cinco mártires de Marrocos, os mesmo que vieram a inspirar Santo António quando este estudava em Coimbra, e um “Anjo Heráldico” que vinca a propaganda manuelina enquanto veículo de legitimação de um reinado.
Quanto à terracota, ou se preferirmos, com recurso a material barrento ou argiloso, temos porventura aquela que se pode considerar a mais famigerada obra de arte de todo o museu: a “Última Ceia”, de Hodart, um trabalho encomendado pelo Mosteiro de Santa Cruz e que acabou por ferir algumas susceptibilidades. O dano que o tempo causou a cada um dos elementos é evidente, mas nem por isso o conjunto perde a sua força artística, graças a um desmesurado esforço empregue na recuperação de cada uma das personagens.
Pietá atribuída a Frei Cipriano da Cruz, frade da Ordem de São Bento
Os cinco mártires de Marrocos, recebidos pelo rei marroquino, vieram inspirar Santo António à sua vida de missionário
Mais uma obra-prima entregue por João de Ruão à Coimbra onde tanto trabalho deixou
A obra da Última Ceia, de Hodart, causou alguma polémica junto dos cónegos de Santa Cruz
Pintura
As obras de pintura apresentadas no Museu Nacional Machado de Castro não têm a imponência de que o espólio escultural goza. Diga-se, entretanto, que a fasquia estabelecida pela escultura estava bem alta e que, não tendo Coimbra (ou sequer o país) alta reputação no que toca à arte na tela, dificilmente nos surpreendemos com tal constatação.
Ainda assim, são de inegável beleza os quadros dedicados a “Santa Maria Madalena” e à “Lactação de São Bernardo”, ambos de Josefa d’Óbidos, ou a sombria interpretação do “Incêndio de Tróia”, de Diogo Pereira.
Já na pintura a óleo sobre madeira, recomenda-se demora na observação da “Senhora da Rosa”, trabalho quatrocentista que permite estabelecer o eterno paralelismo entre figuras cristãs e pagãs, neste caso entre Maria, portadora de uma rosa, e uma eventual Deusa primaveril. Ainda neste segmento há uma bonita representação da Rainha Santa Isabel e do seu Milagre das Rosas, que de acordo com a crença popular ocorreu às portas do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha; e um tríptico que ilustra a “Aparição de Cristo à Virgem”, de Garcia Fernandes. Por fim, note-se a obra que pinta Heraclio portador da Santa Cruz, de Cristóvão de Figueiredo, especialmente pertinente dado o tópico a que alude – a Santa Cruz devotada pelos cónegos do mosteiro homónimo.
Coche seiscentista usado por D. Francisco de Lemos, Bispo de Coimbra
São Francisco como novo discurso católico, findada a vaga renascentista
Ourivesaria e joalharia
Nas jóias e no trabalho do ouro, é obrigatório falar das peças expostas que foram pertença da Rainha Santa – e que geralmente se agrupam numa nova subcategoria apelidada Tesouros de Santa Isabel. Aqui cabem dois lindíssimos relicários, um com a imagem da Senhora com o Menino, em prata, e outro de estranha figura e de raros materiais, o do Santo Lenho, já falado neste espaço em postagem independente.
Fora do Tesouro de Santa Isabel, há um magnífico cálice doado por D. Gueda Mendes ao Mosteiro de São Miguel de Refoios e depois para aqui trasladado, decorado com imagens de Cristo e seus Apóstolos; há a soberba Cruz Processional, de profuso ornamento, antes parte do património da Sé; há um extravagante gomil, de figuras fantásticas e exóticas; há a Custódia que esteve antes na posse de um dos mais importantes bispos de Coimbra, Dom Jorge de Almeida, e que tomava parte nas procissões locais; e há o relicário em prata onde miramos um caranguejo a suster uma cruz, invulgar estampa que motivou uma lenda relativa a São Francisco Xavier e ao mar por si amainado.
Para último fica a Custódia do Sacramento, obra-prima que Paulo Pereira escolheu para capa do seu seminal livro “Arte Portuguesa – História Essencial“, onde um anjo de fortes braços aparece a segurar um sol de prata.
Tudo isto no meio de uma selecta colecção de exuberantes objectos que por decisão editorial ficam de fora. Os que mencionei em cima foram, muito simplesmente, os que mais me impressionaram. Novos visitantes poderão destacar outras jóias, outra prata, outro ouro. E não esquecer: o que cá se vê respeita apenas a uma parte do enorme espólio Machado de Castro. O que não haverá mais por mostrar?
Com a Esfera Armilar aos seus pés, o Anjo Heráldico é mais um testemunho da Coimbra manuelina
Um enorme sol segurado por um anjo resume uma das mais belas custódias guardadas em território português
Coimbra
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Mapa
Coordenadas de GPS: lat=40.20887 ; lon=-8.42551