Fado de Coimbra
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Já é polémico o suficiente chamarmos Fado de Coimbra ou Fado Estudantil às canções de coimbrenses cantadas por estudantes e acompanhadas de guitarra portuguesa e viola clássica. A este propósito, há uma frase de Luís Goes que é elucidativa: “o fado de Coimbra nunca existiu. Existiu sempre, isso sim, um estilo de interpretar próprio de Coimbra”. E desta maneira se percebe que muitos prefiram uma outra cunhagem para os vários estilos musicais particularmente coimbrenses: a Canção de Coimbra, uma designação mais lata, porque não reduzida ao compartimento do fado.
E ainda assim, prefiro eu tratar o cancioneiro da mocidade coimbrã pelo nome mais controverso, precisamente o de Fado de Coimbra, porque o fado, como Alberto Sardinha argumenta, compreende já uma infinitude de subgéneros com um tronco original em comum, sendo algumas dessas variantes as que hoje se podem ouvir nas ruas daquela que é, por definição, a histórica cidade universitária portuguesa.
Origem e história do Fado de Coimbra
A questão dá pano para mangas, e há investigadores que teorizam nas mais díspares direcções sobre a origem do Fado de Lisboa ou do Fado de Coimbra. No que respeita ao exemplo coimbrão, alguns defendem ter origem (ou pelo menos mistura) brasileira, vinda de estudantes emigrados em Portugal. Outros falam de jovens que de Lisboa rumaram até à Universidade de Coimbra e que na bagagem trouxeram os fados das tabernas alfacinhas. Eu prefiro a tese que José Alberto Sardinha descreve detalhadamente no livro “A Origem do Fado“, concluindo que afinal o Fado de Coimbra e o Fado de Lisboa têm uma raiz comum, ao invés do primeiro ser descendente de Lisboa ou do Brasil, e que tal origem remonta ao romanceiro tradicional que, na realidade, era transversal a todo o país: “o Fado não é exclusivamente lisboeta ou coimbrão […] Nasceu por todo o país, onde quer que um grupo de ceguinhos ou outros músicos itinerantes, na esteira da tradição jogralesca, se juntava para cantar romances novelescos”.
Ou seja, o Fado de Coimbra e o Fado de Lisboa desenvolveram-se em paralelo e fruto de serem ambas terras de acolhimento de pessoas que, dos seus cantinhos de nascimento, levavam o cancioneiro popular. São cidades que, ao longo da história, receberam gente de todas as regiões do país – Coimbra como terra de estudos mas também como burgo de passagem de mercadores e jograis que transitavam na via que ligava o sul ao norte português; Lisboa como capital e centro de emprego das mais diversas actividades. As diferenças entre o Fado de Coimbra e o Fado de Lisboa foram-se desenvolvendo com a passagem das décadas porque à canção prima romanceira foi-se misturando boa parte da realidade de cada urbe.
No que toca a Coimbra, as canções levadas das várias províncias nacionais fundiram-se com o contexto universitário, composto, nos idos quinhentistas, exclusivamente por homens. Daí que ainda hoje a Canção de Coimbra seja caracterizada, em grande parte, pela ideia de serenata, isto é, de um galanteio, do rapaz para a rapariga, espécie de carta de amor (ou desamor) cantada. E apesar de haver alguns sinais de mudança, a verdade é que mesmo nos dias que correm são quase só homens os que tocam e que cantam Fado de Coimbra, deixando-se para a mulher a tarefa de os ouvir, ou antes, de os sentir.
Mais uma vez Alberto Sardinha nos informa a este respeito: “A Coimbra afluíram estudantes de todo o país, levando as suas músicas regionais e captando para a sua boémia de serenatas e romantismo, a dolência e melancolia dos cantos dos ceguinhos que ouviam nas suas terras de origem”. Daqui se retira que o Fado de Coimbra sofreu do mesmo destino que o Fado de Lisboa – a chegada das diversas culturas portuguesas a um ponto de convergência potenciou novas composições que traçavam a canção dos lugares de partida com a canção do lugar de destino.
Mas não foi apenas a conjuntura universitária a exercer influência no Fado de Coimbra. Provavelmente houve outra, relacionada com a Cantiga de Amigo, de tradição aristocrática. A presença da corte em Coimbra será o embrião desta toada trovadoresca que veio a enriquecer o cancioneiro tradicional da cidade beirã.
É, por isso, verdade quando se diz que há marcas diferenciadoras entre Coimbra e Lisboa na maneira como cantam o seu fado, e que estas são um reflexo da história de cada cidade. Em Coimbra, as cantigas do romanceiro tradicional foram adaptadas à boémia estudantil e à pomposidade trovadoresca, e, consequentemente, a um modo mais erudito de fazer música, quer na melodia, quer na letra. Esta peculiaridade é ainda deveras actual. De facto, o Fado de Coimbra, ou, se preferirmos, a Canção de Coimbra, veste-se de uma cerimonialismo bem mais rígido do que o que encontramos na capital. Apesar de vir das ruas, o Fado de Coimbra tem zero de arruaceiro. É uma interpretação sóbria, com letras que versam o ingénuo amor eterno da juventude, a saudade de uma Coimbra que é quase sempre transitória na vida de quem lá morou, a camaradagem universitária que se perde com a chegada da idade do trabalho – mas, sendo certa a universalidade dos temas (amor, perda, saudade), as palavras cantadas reflectem a poesia dos mais letrados e inspirados estudantes, e nisso o Fado de Coimbra diverge da componente popular de outros fados portugueses, de Lisboa ou de qualquer outro sítio.
Não obstante este lado culto do Fado de Coimbra, nunca o poderemos dissociar de um certo modo de ser goliardesco próprio da mocidade. Era, com efeito, nas entaladas ruelas e travessas da velha almedina coimbrã que os rapazes cantavam os desejos às suas donzelas, e estas habitualmente abeiravam-se das janelas e respondiam com um sinal de luzes para anunciar a sua aceitação ao pedido do trovador. Como curiosidade, note-se que tão importante era a música para os estudantes coimbrenses que se por acaso um caloiro fosse encontrado pela noite, já depois do Toque Vespertino da Cabra ser dobrado (aquele que o obrigava a recolher-se ao seu quarto), teria direito ao perdão dos veteranos caso carregasse consigo um instrumento e provasse que sabia tocá-lo.
No século XX, os anos de 1920 e 1930 foram luminosos para a Canção de Coimbra. Um estrelato que desapareceu na década seguinte para logo voltar em força nos anos de 1950 e 1960, aqui com uma novidade: a cantiga de protesto, anti-regime, que viria a sofrer pesado golpe depois da crise estudantil de 1969. Assim permaneceu, em longa hibernação, até à revolução de 1974. E aí, ironicamente, depois de tantos anos em que se distinguiu como meio de confronto ao Estado Novo, viu-se catalogada como música fascista. Zeca Afonso resumiu bem o fenómeno: “vivia-se um intenso período de actividade antifascista e tudo o que fosse tradição tinha de ser rejeitado”. Não por acaso, também o Fado de Lisboa se viu vítima da mesma acusação.
A percepção mudou na Queima das Fitas de 1978, quatro anos depois da revolução, aquando do regresso da Serenata Monumental na escadaria da Sé Velha. Apesar de várias tentativas de bloqueio vindas de grupos tidos como anti-fascistas (como se cantar uma canção de amor fosse um acto fascista), a serenata acabou mesmo por ser ouvida. Daí para a frente, voltou a cumprir-se a tradição.
O canto e a forma
O Fado de Coimbra apresenta-se como um momento grave, silencioso (os aplausos não são bem vindos), de convite à introspecção. Em parte, isto também acontece em Lisboa, mas sabemos, de igual forma, que na capital há vários tascos que se apresentam com maus cantores e maus músicos – é certo que isso se deve ao aproveitamento comercial que algumas casas quiseram fazer de um género musical tão procurado por turistas, mas não devemos pôr de lado a hipótese do Fado de Lisboa também ter crescido nas tabernas, num meio pobre, operário e bairrista.
Ora, se podemos reconhecer que a tourist trap já é uma possibilidade em Coimbra, será também justo dizer como ainda há um cuidado incomparável no trato da canção da cidade estudantil. Raríssimas são as vezes em que o Fado de Coimbra não é tocado e cantado por quem não sabe da coisa. E, de igual modo, ainda mais escassos são os casos em que as actuações não obedecem a um ritualismo secular. Logo a começar, nas roupas. O Fado de Coimbra, sendo uma canção de estudantes (ou de ex-estudantes), deve ser entoado por homens cobertos pelo traje académico e de capa traçada. O negro da vestimenta domina e mascara-se com a noite, altura em que normalmente o fado se faz ouvir.
Depois temos a guitarra. Devemos adiantar a possibilidade de, antes da Guitarra Portuguesa, a Canção de Coimbra ter sido musicada pela Viola Toeira, ou banza, como também era chamada. A guitarra de seis cordas duplas poderá ter chegado mais tarde, pela segunda metade do século XIX. Por sua vez, o corpo da Guitarra de Coimbra tem ligeiras diferenças se a compararmos, por exemplo, com a de Lisboa, nomeadamente ao nível da caixa, que é mais profunda, e das linhas, que desenham uma silhueta mais fina e que muitos associam à de uma lágrima. Sobre este assunto não há como evitar o nome de Artur Paredes, pai de Carlos Paredes, que, no entender de Nelson Correia Borges, introduziu à Guitarra de Coimbra “características que melhor se coadunavam com o estilo coimbrão, designadamente o formato da caixa harmónica”.
Outra diferenciação está nas notas que são ouvidas. A Guitarra de Coimbra é afinada num tom abaixo da congénere lisboeta – nada que surpreenda tendo em conta que o canto é, de forma geral, mais grave (porque entoado por vozes masculinas). A sonoridade coimbrã tem, como consequência da afinação, um carácter mais sombrio, de resto bastante conivente com a formalidade e solenidade com que se reveste, na grande parte dos casos, a actuação. Quando a canção é cantada, vemos a guitarra empurrada para segundo plano, estendendo o tapete à voz, que, ao invés, se atira para a frente, a controlar a melodia. Contudo, são inúmeros os instrumentais na Canção de Coimbra, muito mais do que, por exemplo, os que se encontram no Fado de Lisboa, e nesses casos é a Guitarra Portuguesa que toma a dianteira, com a viola clássica a funcionar como papel de parede, ao fundo.
As canções e os cantores
O primeiro nome que salta para a conversa quando se fala do Fado de Coimbra é o de Hilário, autor do “Fado Hilário“, tido como fundador da serenata coimbrã e homem que, segundo João Eloy, “pouco se dava ao estudo”. Acabou por morrer cedo, ainda estudante, com 32 anos, quando frequentava o terceiro ano da Faculdade de Medicina – sobre a sua finitude, Hilário afirmou, na sua mais conhecida composição, que queria ser amortalhado na sua capa “quando for para a sepultura”.
Mas de outras grandes personalidade da Universidade de Coimbra se fez o cancioneiro.
Alexandre de Resende, por exemplo, que apesar de nunca ter sido estudante da Universidade de Coimbra, criou um tema intemporal, o animado “Menino d’oiro“, dedicado ao filho. Ou Manassés de Lacerda, que compôs o “Fado Manassés” na viragem do século XIX para o século XX.
Incontornável foi o madeirense Edmundo Alberto Bettencourt, que o Zeca catalogou como “o maior cantor de fados de todos os tempos” e de quem João Gaspar Simões disse que “nunca chegou a pôr os pés na Universidade”. Foi para Coimbra cantar como ninguém e saiu de lá sem canudo. Consta que não se importou muito com isso.
António Paulo Menano, já na década de 1920, foi profundamente estudado. Licenciou-se em medicina e os seus irmãos foram também músicos e estudantes da Universidade de Coimbra. Tinha como alcunha o Rouxinol do Mondego e gozou de considerável sucesso em Portugal e lá fora. Tem vários temas que ficaram celebrizados e que ainda agora se tocam nos festivais estudantis do país. Destaco uma das minhas canções favoritas no que ao Fado de Coimbra concerne: “Fado da ansiedade“.
Também na década de 1920, fase áurea do Fado de Coimbra, surgiu Lucas Junot, um brasileiro que escreveu a letra do “Fado de Santa Clara”. Ou Luís Goes, nascido em Coimbra e portanto homem da casa, a que João Conde Veiga se referiu como “o melhor cantor que terá passado por Coimbra”, responsável pelo “Fado da despedida“.
Na segunda fase doirada do Fado de Coimbra, e agora sim, com a política a meter-se ao barulho, tivemos o Zeca, acompanhado à viola pelo seu amigo Rui Pato. Zeca Afonso chegou a viver numa casa defronte da Sé Velha e, pela maneira como pegou e transformou a música popular portuguesa, dispensa apresentações. Contudo, estando nós a falar de Coimbra, devemos relembrar que é dele o disco “Fados de Coimbra e Outras Canções“, obra de referência na discografia nacional, e de onde sai a sua versão de “Saudades de Coimbra“.
Continuando pela canção de protesto coimbrã, temos Adriano Correia de Oliveira, portuense de nascença, que, em parceria com Manuel Alegre, editou várias cantigas de combate à autoridade do regime salazarista. Dessas, ficou célebre a “Trova do vento que passa“, com os versos finais a ficarem na memória: “mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão / há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não”. Não completou o curso de Direito por uma só cadeira.
De fora não poderá ficar o açoriano Fernando Machado Soares, autor de “Coimbra tem mais encanto“, um hino à cidade que apenas encontra concorrência em termos de fama numa outra composição, “Coimbra é uma lição“, celebrizada por Amália Rodrigues.
Nos instrumentais, caímos numa eventual injustiça por não referir outros autores de relevância, mas a verdade é que o génio do Fado de Coimbra se pode resumir a uma família: Paredes. Para as gerações actuais, é Carlos Paredes aquele de quem mais ouvimos nome. Mas Carlos Paredes é filho de um outro génio, Artur Paredes, aquele que, de acordo com Nelson Correia Borges, foi responsável pela individualização da guitarra coimbrã (“apartou-a definitivamente da sua irmã de Lisboa”); e é neto e sobrinho-neto de Gonçalo Paredes e Manuel Paredes, respectivamente, dois grandes músicos que a cidade deu ao país.
Onde ouvir Fado de Coimbra
Quanto aos lugares onde podemos ouvi-los, há de todo o tipo.
A melhor forma continua a ser numa serenata espontânea, quando os rapazes se juntam à janela de alguma aluna para lhe anunciarem amor, ou de agrupamentos perdidos na Alta ou na Baixa ou no caminho de uma para a outra que se formam com o intuito de socializar ou apenas de ensaiar. Mas estes são casos em que estamos dependentes da sorte.
Para o visitante que quer ter a certeza de que chega a Coimbra e vai ouvir a sua canção, o melhor é recorrer a certos espaços fechados que, apesar de não terem a genuinidade que se quer, são quase sempre bastante competentes na escolha dos músicos e rigorosos na explicação de cada tema.
É para isso que existe, em primeiro lugar, o Fado ao Centro, na histórica rua do Quebra Costas, um projecto criado por três antigos estudantes da Universidade que vai bem além da casa de fados e que leva o cancioneiro coimbrão para fora de portas. Aqui, os concertos, se assim se podem chamar, começam às seis da tarde e estendem-se até às sete, e são vitaminados por um copo de Vinho do Porto.
Também o À Capella, na velha judiaria, próximo da Câmara Municipal, propõe noites de fados numa antiga capela, com intervenções explicativas dos músicos antes de cada canção. Ou o Diligência Bar, sítio de bonitas arcadas numa perpendicular à Rua da Sofia, que aos fins de semana transforma parte do seu espaço num palco às Guitarras de Coimbra. Ou o Café Santa Cruz, mítico café de traços manuelinos com cem anos de vida e que antes fora igreja, que conta com actuações frequentes. Ou o Quebra o Galho, petiscaria de espaço apertado e que, portanto, obriga a reserva para se ouvir cantar o fado. Ou o Trovador, na praça onde se encontra a Sé Velha, por tradição o largo que mais associamos ao Fado de Coimbra.
Descontando as tabernas, tascas, casas de pasto, e afins, há os festivais locais. O mais procurado, sem surpresas, é o da Queima das Fitas, com a sua Serenata Monumental no largo da Sé Velha, que tantos antigos estudantes visitam anualmente para ouvir e chorar um tempo que já não volta. Mas há também o festival Correntes de Um Só Rio, em Outubro, ou a Grande Noite do Fado e da Canção de Coimbra, em Dezembro, ambos realizados no Convento de São Francisco, na margem esquerda do Mondego. Pontualmente há concertos comemorativos nos museus da cidade, ou mesmo no Paço das Escolas, consoante as ocasiões.
Para quem quiser saber mais, a Torre do Anto desenvolveu o Núcleo da Guitarra e do Fado de Coimbra, um pequeno anexo do Museu Municipal de Coimbra, que tem o extra de duas guitarras de Carlos Paredes. E de caminho fica o visitante a conhecer uma das mais interessantes torres medievais beirãs.