Milagre das Rosas

by | 23 Mai, 2019 | Beira Litoral, Lendas, Mitos e Lendas, Províncias

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Uma lenda? Um milagre? Uma alegoria? Provavelmente, o Milagre das Rosas é tudo isto. As rosas mais faladas de Portugal – sujeitas a imensas interpretações e utilizadas ainda hoje como metáfora política – são as de Isabel de Aragão.

No entanto, o lendário europeu tem várias versões em tudo idênticas, e até mais antigas. De onde surgiu esta ideia de criar um facto que ultrapassa as fronteiras da ciência associado à transformação do pão em flor?

A lenda

D. Isabel tinha fama entre os mais desfavorecidos. Muitas vezes, sem a permissão do seu marido, o Rei D. Dinis, escapulia-se, escondendo como podia pequenos mimos que diminuíssem o sofrimento aos mais pobres (moedas, alimentos, roupa, o que fosse).

O Rei, por não querer ver a sua Rainha em acções menos decorosas, fazia tudo para a impedir.

Um dia, numa fria manhã de Janeiro, D. Dinis foi avisado que a sua Rainha se preparava para mais um gesto solidário. Decidiu surpreende-la e deu com D. Isabel a fazer-se a um caminho suspeito, parecendo ocultar alguma coisa estranha nas suas vestes. Era pão que ela levava no regaço. E o Rei sabia disso. Perguntou-lhe então:

– Que levais aí escondido? Novas esmolas?

E a Rainha respondeu:

– Apenas rosas para decorar o novo Mosteiro, Senhor.

D. Dinis não se deixou convencer. Altivo, insistiu:

– Rosas? Em Janeiro? Ousais mentir ao vosso Rei?

E D. Isabel, ao perceber que o seu esposo de sempre não se deixaria convencer a menos que os olhos lhe garantissem que não tinha razão. E concluiu:

– Enganai-vos. – disse a Rainha, e antes que o Rei a interrompesse, terminou gentilmente – São rosas, Senhor.

E abrindo os braços, soltando o seu vestido, deixou cair várias rosas aos seus pés. A multidão que ali se tinha juntado soltou um bruaá. Sabia o povo que a Rainha ali levava pão, destinado aos coitados que passavam fome. E que só Deus, intercedendo pela figura da Rainha Santa Isabel, poderia operar aquele milagre.

História e versões da lenda

Não há uma única lenda no mundo que seja contada da mesma maneira. Como tal, também o Milagre das Rosas sofreu vários câmbios, sendo difícil apontar uma versão original.

Tendo em conta que os primeiros registos escritos são, quase todos, mais de duzentos anos após a morte de Isabel de Aragão, não podemos ter qualquer certeza sobre as primeiras conversas que existiram acerca da Rainha e do seu mais conhecido milagre (há outros que lhe são atribuídos, o das Rosas é, até, dos últimos a si associados).

A narrativa que decidimos contar acima é, grosso modo, a mais vezes relatada nos nossos dias. Inspira-se naquilo que se dizia acerca da Rainha Santa Isabel quando viva, pela voz popular, e no que se escreveu sobre ela depois de morrer, pela pena de Pedro João Perpinhão, de Frei Marcos de Lisboa, ou até, possivelmente, de Damião de Góis, entre outros.

A lenda escrita (os primeiros registos surgiram a meio do século XVI), como é natural, surgiu depois da lenda contada. E sendo assim, cada autor pode ter ouvido diferentes perspectivas sobre ela. Por vezes, em vez de pão, temos moedas que se transformam em rosas. Noutros casos, acontece o inverso, são rosas que, dadas aos pobres, se transformam em dinheiro. Também o sítio onde o episódio aconteceu varia. O mais citado é o Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra. Mas o Castelo do Sabugal, o Castelo de Estremoz, ou a vila de Alenquer (e lembramos as Festas do Espírito Santo que lá se faziam, com ligações às Festas dos Tabuleiros em Tomar) também lhe servem de cenário, consoante quem a conta.

O que podemos dar como garantido é que toda a prosa que correu em torno da Rainha Santa e do seu poder milagreiro aconteceu, em primeiro lugar, para garantir a sua beatificação e, em segundo, a sua canonização. Entre a data da primeira e a da segunda estão as décadas onde o Milagre das Rosas se tornou obra escrita, destacando-se a biografia De vita et Moribus Beatae Elisabethae Lusitaniae Reginae, de Perpinhão, mas não só.

O milagre das rosas na Europa

A questão maior nem é a das diversas versões portuguesas que acrescentam e tiram pontos à lenda. Isso temos em praticamente todos os textos do nosso corpo lendário.

O que mais relevância tem neste Milagre das Rosas é o facto de ele se repetir em vários pontos da Europa.

Em Itália, Santa Zita também transforma esmolas em flores. Em Espanha, Santa Cacilda, de origem moura, protegia os cristãos presos oferecendo-lhes pão, e, sempre que era questionada se estava a ajudar o inimigo, Cacilda mostrava o que levava, transformando-se o pão em rosas. Em França, Santa Roseline diz o mesmo que Isabel de Aragão quando o milagre se dá (são rosas, Senhor), mas ao seu pai e não ao seu marido. E na Hungria, uma outra monarca, esta, curiosamente, parente da nossa Isabel de Aragão, tem o mesmíssimo milagre a si atribuído.

O que leva a que uma história de transformação do pão (ou das moedas) em rosas seja transversal a vários países? Parece haver, em todos os casos, a tentativa de divinizar as famílias reais e de sangue azul, num sublinhar de uma crença longínqua que defendia que a classe monárquica fora tocada por Deus, sendo por isso inquestionável a sua escolha.

Mas há mais. Há todo um simbolismo que deve ser destapado quando imaginamos a conversão do pão em rosa.

Simbologia

A rosa é, desde sempre, um sinal Divino. De Divino feminino, e não por acaso, quem é responsável pela metamorfose do pão em rosas é, invariavelmente, uma mulher.

O pão ou ouro que se torna rosa pode ser traduzido como a matéria que se transcende, o chão que vira céu. Por outras palavras, quem do pão faz rosa, consegue vencer a tangibilidade, deixando de ser apenas corpo e passando a ser corpo e espírito. Uma causa comum a várias religiões, se não a todas.

A bondade humana em todas estas lendas, representada em todas estas mulheres nobres ou monarcas que decidem, contra a ordem social vigente, ajudar quem mais precisa, vê-se premiada com o aparecimento do sagrado, isto é, da rosa – símbolo que ligamos ao culto Mariano, mas que vem de trás, da Afrodite grega e da Vénus romana.