Mosteiro de Santa Clara-a-Velha

by | 28 Mai, 2024 | Beira Litoral, Lugares, Monumentos, Províncias, Religiosos

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A melhor introdução para um texto sobre o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha escreveu-a Raul Proença, não sobre a igreja em si, mas, de forma mais abrangente, sobre toda a Baixa coimbrense: “as cheias do Mondego têm sido para Coimbra e seus monumentos o que foram para Lisboa os tremores de terra”.

Com efeito, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha contou com um arqui-inimigo secular desde o primeiríssimo momento em que se sagrou templo: as águas fluviais que, todos os Invernos, ameaçam o eixo ribeirinho da cidade-estudante, de um e de outro lado. Mas, como tudo tem um lado positivo, foi precisamente esse constante medo de submersão que deu ao monumento uma qualidade irreplicável, longe de tudo o que se conhece neste país, e que o tornou como um dos mais míticos espaços nacionais.

Um mosteiro de senhoras

Cabe dizer esta curiosidade porque é essencial para se compreender a imparidade do mosteiro coimbrão: quase toda a história relevante do templo, pelo menos até ao seu abandono na segunda metade do século XVII, foi feita por mulheres. Ora vejamos.

D. Mor Dias

Primeiro foi D. Mor Dias, aristocrata de bastas posses, que pensou em ter, junto ao Mosteiro de São Francisco, uma igreja dedicada a Santa Clara e Santa Isabel da Hungria (princesa que foi tia da nossa Santa Isabel e a quem também se atribui um Milagre das Rosas). Para mal dela e da sua recém criação, D. Mor Dias estava recolhida no Mosteiro de São João das Donas, este pertencente à administração do poderosíssimo Mosteiro de Santa Cruz, e os Crúzios que aí operavam não gostaram da iniciativa da fidalga – afinal, a estreia das Clarrisas em terras de Coimbra significava mais uma Ordem para dividir proveitos públicos ou régios e influência política, isto para não ir à herança de D. Mor Dias, potencialmente reorientada para a sua nova igreja ao invés de para a Ordem Crúzia.

De 1283, ano em que a D. Mor Dias foi autorizado o lançamento da primeira pedra, até 1287, altura em que o edifício é transferido para a Ordem de Santa Clara, várias tentativas de embargo se sucedem. O povo foi instado a não assistir a qualquer acto litúrgico naquele recinto. Em 1302, pior, a grande defensora do mosteiro, D. Mor Dias, morre. A contenda dos Crúzios contra as Clarissas mantém-se até ao ano de 1311, momento em que o mosteiro encerra depois de longa pressão.

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D. Isabel de Aragão

Contudo, nos últimos anos de actividade do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, as Clarissas que por lá viviam ganharam uma simpatizante de excelência: a rainha D. Isabel de Aragão, mulher de D. Dinis, hoje mais popularmente conhecida como Rainha Santa Isabel.

Três anos após o abandono do mosteiro, a Rainha obteu permissão papal para a sua requalificação. Houve então uma dedicada obra respeitante à igreja, ao Paço Real, ao claustro, ao cemitério, até a um hospital com capela. Pelo Verão de 1330 a igreja abriu portas. Porém, no Inverno imediatamente a seguir, uma das frequentes cheias do Mondego alagou boa parte do monumento. Seria o início de uma demorada e destrutiva história entre o rio e o convento.

D. Isabel, manteve desde sempre estreita relação com o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha – é numa das suas portas que, segundo crença, se deu o Milagre das Rosas. Marcou-o como o lugar do seu último repouso, onde inclusivamente já se encontrava o seu túmulo. Ela própria mandou altear o chão de maneira a que o Mondego não pudesse fazer mais estragos, solução de recurso que pouco ajudou, como adiante se verá. Não obstante, pouco tempo depois da morte de D. Dinis, a Rainha Santa fechou-se no Paço que mandou construir (situado a nascente do claustro, hoje praticamente reduzido a cascalho) e viveu os seus últimos anos junto das Clarissas de Santa Clara, embora nunca tenha pronunciado o voto de pobreza necessário para pertencer à Ordem.

D. Inês de Castro

O proibido amor entre D. Pedro (neto de D. Isabel) e D. Inês de Castro passou por aqui, pelo Paço Real construído pela Rainha Santa para si e para a sua descendência, dado o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha ser contíguo à Quinta das Lágrimas – de onde, aliás, partia um aqueduto para fornecer as Clarissas de Coimbra.

Terá sido também no chão de Santa Clara, em 1355, que D. Inês de Castro foi degolada pelos algozes de D. Afonso IV, pai de D. Pedro, originando a lenda que diz que a Fonte das Lágrimas nasceu da agonia da bela galega.

Joana, a Beltraneja

Quanto a Joana de Trastâmara, muito injustiçada pelo contexto histórico em que viveu, e constantemente insultada por uma nobreza que a desdenhava, também ela se refugiou no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, em 1480, embora com licença para sair sempre que quisesse. Era normalmente chamada de Excelente Senhora, uma adjectivação um quanto eufemística tendo em conta que estamos a falar de uma Rainha de Castela e, posteriormente, de uma Rainha Consorte de Portugal.

Quando em Castela, os inimigos apelidavam-na de pior forma: a Beltraneja, numa alusão a Beltrán de la Cueva, o possível amante de D. Joana, sua mãe, que faria da infanta uma filha ilegítima e, portanto, sem direito ao trono, motivo suficiente para se iniciar nova guerra civil no país vizinho, contenda na qual Portugal foi parte interventiva.

As Clarissas

As Clarissas foram todas as mulheres que viveram, rezaram, e morreram no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha. Dedicaram-se à vida frugal da Ordem de Santa Clara. Nestes terrenos, nunca tiveram vida fácil: os desatinos do Mondego, de tempos a tempos, inundavam-lhes os campos, o claustro, a própria igreja.

Mesmo assim, foram aguentando o barco (num sentido mais literal do que seria desejável), quando, depois de várias reformas para fugir aos raides do rio, se decidiu que o melhor mesmo era fabricar um outro edifício em posição menos frágil.

Depois de uma gradual saída de vários elementos da Ordem, o rei D. João IV decide-se pela transferência de todas as Irmãs do primeiro Mosteiro de Santa Clara para um recém-construído, a poucos passos dali, mas já a meia encosta, no chamado Monte da Esperança. Com elas foi o túmulo da Rainha Santa Isabel, em cortejo. O novo templo levou o mesmo nome, o que forçou a distinção que hoje conhecemos: cá em baixo, ao nível do rio, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, amaldiçoado pelas perturbações invernais do Mondego; lá em cima, o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, sobranceiro ao primeiro e livre de alagamentos nos meses chuvosos.

A beleza do arco em pedra de Ançã

Arco em pedra de Ançã e rosácea

Maquete evidencia o antigo Mosteiro de Santa Clara-a-Velha

A vida no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha antes do seu abandono

Ao gosto estrambólico

Paulo Pereira, uma autoridade no estudo da arte e da arquitectura portuguesas, não faz a coisa por menos e considera o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha uma obra de excepção do gótico nacional. Salienta a experiência dos dois mestres envolvidos – Domingos Domingues, que tinha o Mosteiro de Alcobaça no seu curriculum, e Estêvão Domingues, responsável pelo claustro da Sé de Lisboa.

Contudo, o mesmo Paulo Pereira não deixa de anotar que “de facto, não parece que o domínio tecnológico fosse grandemente apurado”. Não que o trabalho fosse fácil. Não me parece especulativo dizer que o lugar escolhido para se montar um mosteiro, ainda para mais com esta envergadura e com todo o complexo de apoio erigido em redor, foi um enorme engano – e um engano de base, tendo em conta que ainda hoje, com todo o desenvolvimento técnico que se obteve com a Revolução Industrial, continua a ser difícil combater os ímpetos da corrente fluvial em meses de grande precipitação.

Não obstante, o convento ganhou com isso, no sentido em que cada reformulação arquitectónica que sofreu ao longo da história o tornou um objecto deveras estrambólico e de inequívoca singularidade. O soalho primitivo, assim que levou com as primeiras inundações, foi relegado a soalho da cisterna. Daí para a frente, sempre que o rio engolia parte do mosteiro, novas ideias para novos pavimentos surgiam, em camadas, uns em cima dos outros. A Capela-Mausoléu – que foi mandada construir para guardar os túmulos da Rainha Santa e da sua neta que morreu ainda criança – viu-se levantada em colunas, a gravitar acima das cheias, mas logo se integrou na nave assim que, mais uma vez, houve necessidade de subir a igreja mais um piso. Se descontarmos o arco alvo, em jeito maneirista, edificado para para receber a campa de Isabel de Aragão, tudo o que se vê é prova de um convento em constante manobra de urgência, com uma história de quatrocentos anos a fugir à constante invasão da água.

E assim ficou o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha um dos mais fascinantes exercícios de arquitectura portuguesa. Um gigante jogo de Tetris – mas não quando corre bem, pense-se nele quando as peças desencaixam e se está a duas ou três linhas de se perder. Hoje, depois de muito suor, foi conseguido o quase impossível: ver o templo em toda a sua dimensão, incluindo aquilo que antes foi tapado pela água e as areias do Mondego.

Colunas e claustro do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha

Mesmo em ruínas, o claustro mostra-nos um dos melhores exemplos do proto-gótico português

Ruínas góticas do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha

O gótico do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha

As cheias e as requalificações

O problema das cheias não é coisa do passado. Sendo verdade que desde que foi habitado que o Convento de Santa Clara-a-Nova se viu numa guerra sem quartel contra as imprevisíveis vontades do Mondego, a começar pela cheia que atacou o edificado meio ano depois da sua conclusão, outros episódios se sucederam. O século XV foi particularmente danoso, e no século XVI ocorreu uma cheia a reboque de um sismo que destruiu bom pedaço do Paço da Rainha. Depois do abandono das Clarissas, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha serviu como base de apoio a outras actividades, nomeadamente agrícolas, como curral, palheiro, celeiro, habitação. Terá sido nestes três séculos que se deu a submersão em água e lodo de grande fatia do templo.

Depois da hercúlea requalificação que foi feita ao mosteiro entre 1995 e 2000 – pondo a descoberto o claustro e os pisos inferiores da igreja e que, ademais, foi depois responsável pela criação de um Centro Interpretativo que conta o passado monástico e expõe uma parte dos achados das escavações -, houve novos berbichachos. Coimbra sofreu cheias em 2001 e em 2002, ou seja, nos dois anos que procederam os restauros. Em 2016, dose dupla: a um alagamento em Janeiro, seguiu-se um outro alagamento em Fevereiro. Depois de milhões gastos em bombas, em mergulhadores, em sistemas de air-lift, em furos, e em cortinas para impedir a água de entrar no monumento, torna o mesmo a fechar-se ao público para nova reforma. 2019, adivinhe-se, outra enchente que obrigou a afastar o turismo do perímetro conventual.

No ano em que estas linhas se escrevem há nova reforma a caminho, desta vez para proteger o mosteiro de uma outra praga: os pombos. Parece que o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha sofre de várias doenças crónicas mas o esforço (a que o estatuto de Monumento Nacional não é alheio) para o manter de pé se sobrepõe a qualquer desastre. Talvez por isso tenha recebido tanto elogio: foi nomeado para o “European Museum Forum“, ganhou o “Prémio Cinco Estrelas Cinco Regiões“, venceu no “Europa Nostra 2010“.

Já sabemos que mais cheias assolarão todo o espaço conventual. O tempo nisto não engana. O que também sabemos é que a casmurrice humana em se bater contra a natureza por vezes surpreende, como aqui se vê. E enquanto houver sentido de identidade cá estaremos todos para segurar os muros de Santa Clara-a-Velha. Que este, ao contrário da cidade que lhe deu berço, não tenha uma hora da despedida.

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Coimbra

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Coordenadas de GPS: lat=40.20275 ; lon=-8.43348

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