Mosteiro de Santa Cruz
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Tal como a Sé Velha, o Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, inicia a sua história com a formação da nacionalidade portuguesa. Ambas, cada uma do seu jeito, contribuíram para a criação de uma consciência autonómica de um condado que, no final, se revelou o embrião de Portugal.
Não obstante, Sé e Mosteiro tiveram percursos muito diferentes, para não dizer de puro confronto em algumas das vezes. São agora considerados os casos de maior relevância historico-religiosa da cidade beirã. Neste caso, debruçar-me-ei pelo exemplo de Santa Cruz, elementar para compreender a primeira dinastia – no fundo, elementar para conhecer o nascimento de um novo país que quase ninguém acreditou poder durar tanto tempo.
Conjuntura para o nascimento da Ordem de Santa Cruz
Em 1128 dá-se a Batalha de São Mamede. Mais do que desenvolver acerca do que nela se passou ou em quem a venceu, importante é realçar acima de tudo os dois lados em confronto: Fernão Peres de Trava, amante de D. Teresa, opunha-se ao Infante Afonso Henriques, filho do casamento desta com o Conde D. Henrique, entretanto já falecido. No primeiro grupo estava a alta nobreza galega a norte das terras Portucalenses que ainda lamentava a perda de poder sobre o novo Condado. No segundo, os barões e o clero e a fidalguia de toda a área compreendida entre Coimbra e o actual Norte português, um território culturalmente fragmentado mas unido na revolta contra os condes Travas, de origem galega, que aumentavam a sua influência a sul.
A vitória do Infante Afonso Henriques em São Mamede travou os desejos de D. Teresa e dos Travas numa eventual união (ou, pelo menos, submissão) do Condado Portucalense à Galiza. O Infante Afonso Henriques tinha outra ideia para todo aquele cantão do extremo ocidente ibérico, acantonado entre os reinos cristãos do norte e o sul islâmico. O projecto passava por aguentar o que havia segurado na zona setentrional do Condado e conquistar as províncias a sul. Para isso, resolve mudar a corte de Guimarães para Coimbra, um burgo de vital valor estratégico, não só por se situar num outeiro à beira da fronteira que separava o Condado das terras sarracenas, mas por lá encontrar um lote de gente fundamental para a campanha de armas. Com efeito, Coimbra e arredores caracterizavam-se por ser espaço de cavaleiros-vilãos, da pequena e média nobreza à procura do oportunidade para crescer, de moçárabes e de homens-livres, inclusive de sarracenos fugidos à fúria Almorávida. No Norte feudal, pelo contrário, dominavam os Senhores, homens de tanto poder que concorriam até com D. Afonso Henriques, a quem o futuro rei se obsta a recorrer para evitar lutas internas no porvir.
À altura, Coimbra já tinha a sua Sé, talvez parcialmente destruída desde que a ameaça Almorávida cercou a cidade e em fase de projecto para nova reconstrução. Surgiu, então, o plano de investir num outro mosteiro fora de portas, à beira rio, no lugar onde hoje consideramos como a Baixa coimbrã. O edifício obedecia ao gosto românico, próximo do que existia na Sé, com uma torre avançada que lhe dava uma feição acastelada, nada de surpreendente tendo em conta que Coimbra ainda não era uma garantida posse cristã.
Os seus maiores promotores eram Arcediago Telo, o influente D. João Peculiar, e o candidato a rei Afonso Henriques. Um trio de luxo que apostou forte no recrutamento de Cónegos Regrantes dedicados à regra de Santo Agostinho, alguns deles vindos da Sé de Coimbra. Escolhido como primeiro prior foi São Teotónio, tido como o primeiro santo português, homem culto e viajado, que empresta ao Mosteiro de Santa Cruz uma marca de erudição que nunca se apagará. Com a construção do mosteiro foram feitos esforços para, em paralelo, se erigir uma ponte que ligasse os dois lados do Mondego.
Mais tarde, o Cardeal Guido de Vico, representante da Santa Sé, forja uma aliança com o já auto-proclamado rei de Portugal: o acordo passa por retirar o Mosteiro de Santa Cruz da esfera administrativa da Sé coimbrense, passando a estar directamente dependente do Papa. Quem não gostou da ideia foi a cúpula diocesana, que se viu privada de um dos seus activos mais prestigiantes. O Mosteiro de Santa Cruz passou a receber doações de gente afortunada – do rei, em primeiro lugar, mas também da nobreza franca e hispânica. Consta que D. Afonso Henriques se recolhia ao mosteiro crúzio antes e depois de cada batalha contra o Islão a implorar ou agradecer apoio divino. A relação entre o mosteiro e o monarca é de mútua ajuda – Afonso Henriques mima a Ordem com território e poder (na bacia do Mondego, inicialmente, depois estendendo-se para o Norte), e o convento em retribuição sustenta histórias que fazem do rei português um homem da providência, guerreiro da defesa da fé Cristã contra o Infiel, qual novo Santiago Mata-Mouros. Como extra, o monarca português tinha no Mosteiro de Santa Cruz uma linha directa para a Santa Sé, um atalho que se revelou fundamental para o reconhecimento de Portugal enquanto reino independente, para desgraça de Afonso VII, Imperador da Hispânia.
A autoridade da Ordem de Santa Cruz incrementava de ano para ano. Não só se tinha autonomizado da administração diocesana como chegou ao despotismo de eliminar outras Ordens pelo caminho. Até o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, fundado, numa primeira instância, por Dona Mor Dias, se viu interrompido por intervenção do Mosteiro de Santa Cruz, que não gostou da ousadia de ter uma das suas mais ricas cónegas a chamar a Coimbra uma congregação franciscana.
Em 1185 morre o rei Fundador. Decide que a sua urna deveria ficar no Mosteiro de Santa Cruz, o que só confirma o quão agradecido lhe estava. D. Sancho, segundo rei português, mantém o carinho à Ordem crúzia que o seu falecido pai demonstrou durante praticamente todo o seu reinado. Também D. Sancho entendeu que a sua sepultura deveria ficar entregue aos cónegos de Santa Cruz. Por esta altura, a Ordem crúzia goza já de um poder imenso, bem para lá das fronteiras coimbrãs. É o contraponto à Diocese. Lá em cima, intramuros, a Sé Velha. Cá em baixo, além-muralhas, a Ordem de Santa Cruz. No século XII já se podia dizer que havia uma Alta e uma Baixa em Coimbra, tal e qual como hoje.
A fronteira que separava cristãos e muçulmanos, no meio de toda esta conversa, já tinha sido empurrada para sul, para as ribas do Tejo. Coimbra tornava-se, mais do que uma cidade fronteira, uma terra de comércio onde vivia todo o tipo de gente, com direito a bairro judeu e a bairro mouro. Foi essa nova cara, de pólis dada ao cosmopolitismo, longe dos campos de batalha, que permitiu ao Mosteiro de Santa Cruz dedicar-se a outra actividade: os estudos.
O centro da fachada ocupado por Maria, Profeta Isaías, e rei David
Túmulo de D. Afonso Henriques
O Mosteiro de Santa Cruz como prenúncio da Universidade
José Mattoso escreveu várias linhas acerca do Mosteiro de Santa Cruz. Entre elas encontramos uma que é conclusiva quanto à importância que teve na literacia do burgo coimbrão: “Multiplicavam-se os clérigos e os seus dependentes […] Em breve se lhes juntaram os profissionais do estudo, dos serviços judiciais e notariais, a administração fiscal, que se concentravam sempre em maior número nos lugares onde a corte permanecia mais tempo.”
De facto, as condições para transformar o espaço conventual – que já dominava boa parte da Coimbra abeirada do Mondego – num lugar de pedagogia eram inigualáveis. O Mosteiro de Santa Cruz cresceu num cantão culto, povoado pela liberdade moçárabe, bem mais letrado, à época, do que a ruralidade guerreira do norte ibérico. Ademais, o convento viu-se inundado de obras vindas de vários pontos da Europa, mas sobretudo do sul de França, onde se situava a sede da Ordem. Uma magna colecção de livros de Medicina, de Teologia, de Gramática, de Direito ocupa as prateleiras dos salões de estudo. Surgiram então os scriptoriums, escritórios de produção de livros, tanto no Mosteiro de Santa Cruz como também na Sé e noutras salas de dependências religiosas com menor relevância. Com os livros aparecem os que os lêem, homens provindos de uma classe favorecida em procura de uma carreira afastada das lides belicistas.
Um deles chamava-se Fernando e fez-se aluno pródigo como seguidor de Santo Agostinho, primeiro na sua Lisboa natal, no Mosteiro de São Vicente de Fora, depois em Coimbra, no Mosteiro de Santa Cruz. Logo viria a adoptar um outro nome: António. Mais tarde, passou a ser conhecido como António de Pádua, ou Santo António de Pádua, o mais acarinhado dos bem-aventurados em solo alfacinha, como se comprova na catarse que é, para os lisboetas, o Dia de Santo António. Outro, bem posterior, e apenas como dado hipotético, foi Luís de Camões, que se pensa – sem certezas – ter aqui estudado.
Certo é que os ensinamentos prestados no Mosteiro de Santa Cruz foram o prenúncio de algo bem maior – sem surpresas, falo da Universidade, instalada em Lisboa e depois para cá transferida, instituição insubstituível na história de Portugal que, até à actualidade, fez de Coimbra o sítio de referência para a classe estudantil portuguesa.
O órgão como continuação do coro-alto, na Igreja de Santa Cruz
Pirâmide do Santuário do Convento de Santa Cruz
O Claustro da Manga é hoje acedido por fora do Mosteiro de Santa Cruz
A reforma quinhentista
Compete dizer que o Mosteiro de Santa Cruz já foi bem maior do que o que agora vemos. No seu máximo, chegou a incorporar zonas da cidade que hoje se ocuparam de outros afazeres: a esquadra da polícia, a Escola Jaime Cortesão, a Câmara Municipal, faziam antes para do perímetro monacal. O convento viu-se reduzido ao espaço actual sobretudo depois do fim das ordens religiosas decretado pelo liberalismo, em especial aquando da abertura de uma das principais artérias da cidade de Coimbra, a Avenida Sá da Bandeira, que parte da Praça 8 de Maio e termina na Praça da República, ou seja, liga os dois antigos polos estudantis – a Rua da Sofia, na Baixa, e a Universidade, na Alta.
Outro elemento perdido foi a famosa torre sineira que, depois de várias chamadas de atenção, acabou demolida na década de 1930, quando, agravada de saúde depois de um incêndio, se viu à beira de ruir. Decidiu-se na altura findar com ela de vez antes que algum acidente acontecesse. Também a Igreja de São João, construída imediatamente ao lado do convento, virou café, um dos mais belos cafés do país, faça-se essa justiça, onde por vezes podemos ouvir as graves vozes do Fado de Coimbra.
Assim sendo, o Mosteiro de Santa Cruz mostra-se no presente como uma versão bem reduzida do que foi no passado. E o que ficou foi sobretudo o resultado das reformas quinhentistas efectuadas por D. Manuel I (em parceria com o prior Pedro Gavião), o rei que operou uma mudança estética nacional tão vincada que os historiadores de arte passaram a cunhá-la de Manuelino, e por D. João III, seu filho, mais afeito à moda renascentista que começava a despontar, e que veio ampliar o convento consideravelmente. Nisso, diferencia-se da Sé Velha, que, apesar da profunda reabilitação que sofreu no século XV e XVI, mantém a robustez primitiva de feição românica.
A fachada
O pano principal do convento, aquele que está virado a poente, paralelo ao rio, tinha várias semelhanças com a fachada que ainda hoje se vê na Sé Velha – a figura acastelada, a torre dianteira, a bruteza românica, os dois portais sobrepostos (um ao nível da nave, outro ao nível do coro-alto) -, o que não é grande pasmo sabendo que em ambos os monumentos trabalharam os mesmos homens, muito em especial o Mestre Roberto, um francês que esteve por trás dos projectos das Sés de Coimbra e de Lisboa.
Dessa fachada austera sobra o muro de fundo, de pedra amarelada, que se afigurou como tela para a projecção manuelina posterior. Primeiro, D. Manuel acrescentou duas torres laterais rematadas com pináculos e uma platibanda que exibe, sem vergonha, um alinhamento de várias cruzes, numa referência óbvia à Santa Cruz que nomeia o edifício. Depois somou-lhe a decoração manuelina, recorrendo a elementos vegetalistas e zoomórficos esculpidos em pedra de calcário de Ançã, trabalho de Diogo Castilho (no traço) e Nicolau Chanterenne (em parte da escultura), entre outros que não deixaram (ou não sobreviveu) assinatura – Maria de Lurdes Craveiro não deixa de realçar como, em certas partes, “impressiona a falta de coordenação” entre os dois Mestres, nomeadamente na desproporção entre as estátuas e os nichos que as guardavam, defendendo que o fenómeno insólito se poderá explicar pela “distância temporal que medeia o princípio e o fim desta empreitada”. João de Ruão, um dos mais interventivos escultores portugueses, conhecido pela renovação que executou na Sé, veio completar o trabalho com três estátuas que se encontram sobre a porta principal, e que representam Maria, o Profeta Isaías, e o rei David. A obra só se completou no reinado de D. João III.
Infelizmente, a talha realizada em pedra de Ançã deteriorou-se ao ponto de impedir uma leitura clara acerca da história do pórtico do Mosteiro de Santa Cruz. Pior que desbastado, alguns dos nichos laterais já se encontram vazios. O tímpano, presentemente despido de estatuária e substituído por um óculo gradeado, deverá ter levado alguma escultura que facilitaria a interpretação do conjunto. Ainda assim, o reconhecimento de alguma iconografia ainda pode ser feito. De cada lado do trio que se encontra ao centro e que já referi ser de Maria, do Profeta Isaías, e do rei David, vemos os Padres da Igreja – da esquerda para a direita, São Gregório, Santo Ambrósio, São Jerónimo, Santo Agostinho. Nos cantos, as imagens parecem referir-se a Apóstolos. Os troncos que se encurvam até aos pés dos supracitados Doutores da Igreja poderão ser sugestivos da Árvore da Vida. A investigadora Maria de Lurdes Craveiro propõe a “dualidade entre o humano e o divino” como o primo significado do portal.
De influência barroca, e como tal de origem bem posterior, é o arco-triunfal avançado, do final do século XVIII, vindo das mãos de José do Couto. No topo da arquivolta, dois anjos com trombetas apresentam o escudo da Congregação de Santa Cruz.
O interior
O interior da igreja é de uma só nave, para onde se abrem variadas capelas, entre as quais a bonita Capela dos Santos Mártires de Marrocos, missionários franciscanos que inspiraram Santo António, que cá estudou, a ter uma vida em viagem.
Teve reforma de Mestre Boytac no reinado de D. Manuel I. Na primeira metade, o tecto é rebaixado pelo aparecimento do coro-alto, elemento que acabou por mudar quase tudo na estrutura do monumento (quer por fora, quer por dentro), e que seria usado como modelo para outras igrejas conimbricenses. Do lado direito de quem entra, uma urna com moldura renascentista revela adições pós-manuelinas. Do lado esquerdo, já fora da cobertura do coro-alto, um dos mais belos órgãos de igreja que podemos mirar neste país.
À medida que se caminha até ao altar, de um e outro lado olham-se bonitos trabalhos de azulejaria. À esquerda revelam episódios ligados a Cristo, à direita a Santo Agostinho, o bem-aventurado a quem os crúzios dedicaram a sua vida religiosa.
Do lado do Evangelho, os painéis de azulejo são interrompidos por uma magnífica escultura de Nicolau de Chanterenne (e não João de Ruão, como alguns dizem): o italianizante púlpito, provavelmente inacabado, esculpido na mesma pedra de Ançã que o pórtico da fachada, e decorado com os Doutores da Igreja. Justapõe à geometria clássica o gosto pelo exagero das formas encomendadas por D. Manuel e contrasta, como é habitual na figuração cristã, o Bem (na parte superior, ocupada pelos Doutores) contra o Mal (na parte inferior, onde na base reconhecemos uma serpente com sete cabeças).
Os túmulos da capela-mor
Terá sido uma viagem de D. Manuel I a Coimbra que o pôs de encontro com os túmulos dos dois primeiros reis portuguesas: D. Afonso Henriques e o seu filho D. Sancho I.
D. Manuel, monarca que obteve a coroa por via indirecta, passou todo o seu reinado a tentar legitimar o seu lugar. Uma das vias de o fazer, porventura a mais importante, até porque perdurou até hoje, foi a reforma que levou a cabo em vários monumentos nacionais, juntando outros construídos do zero, sob uma nova fórmula estética conhecida na actualidade como Manuelino. Ao ver os dois túmulos primitivos que se encontravam, à altura, no primitivo nártex do Convento de Santa Cruz, D. Manuel achou-os demasiado pobres para os homens que estiveram na fundação do reino português, e que, com o devido afastamento, pertenciam à sua linhagem, ou seja, à dos reis agraciados pela vontade Divina. Para D. Manuel, cunhar com a sua marca as raízes de Portugal era, no fim, ligá-lo às auroras da I Dinastia, às géneses dinásticas – aquelas que alguns contestavam por não ser o convencional herdeiro da coroa.
Entendeu então que, tal como o espaço litúrgico, também as urnas deveriam ser alteradas. Com a edificação do coro-alto, foram trasladadas para a capela-mor e é lá que agora se encontram – a de Afonso Henriques está do lado esquerdo e a de Sancho I do lado direito. A obra é atribuída a Diogo de Castilho e João de Castilho, irmãos, e a Nicolau de Chanterenne nos jacentes, com participação de outros mestres de renome. Os trabalhos de ambos os túmulos obedecem a uma estrutura comum, com os jacentes vestidos com armaduras e envolvidos por uma moldura retabular que combina traçado gótico e manuelino e renascimento, e que, na verdade, já encontramos no pórtico de entrada.
Sacristia
A Sacristia que presentemente vemos é posterior às reformas manuelinas e joaninas do século XVI, contando com uma roupagem de ordem e simetria já devedora ao maneirismo. A beleza e a luminosidade do salão acabam ofuscadas pela justa valorização do seu recheio, especialmente em algumas das pinturas da elite artística quinhentista lá exibidas – a da “Descida da Cruz”, de André Gonçalves, “Pentecostes”, de Grão Vasco, “Ecce Homo e o Calvário”, de Cristóvão de Figueiredo – e no comprido móvel de gavetas talhado por Samuel Tibau.
Sala Capitular
Antes tida como ponto de encontro dos frades, transformou-se depois numa salão de homenagem a São Teotónio, prior visionário que levou o Mosteiro de Santa Cruz a tornar-se numa dos mais hegemónicas casas religiosas do país. Nas suas pontas temos um portão de traçado manuelino e, do lado oposto, a Capela de São Teotónio, renascentista, com a urna que recebe o santo. Uma mão cheia de telas volta a lembrar a vida do prior.
Podemos ainda ver a sepultura do segundo prior do Mosteiro de Santa Cruz, João Teotónio, sucessor do seu tio, e de D. Telo, também fundador do cenóbio. É, portanto, a zona do convento que se assume como espaço dedicado às origens, ao plano fundante de uma Ordem dedicada a Santo Agostinho e que se veio a mostrar fundamental na criação da nação.
Claustro do Silêncio
O nome é sugestivo o suficiente. Silêncio por ser lugar de contemplação. O desenho da planta, disposto em dois níveis, veio de Marcos Pires, e deverá ter aproveitado alicerces de um claustro primitivo. Nos arcos, dominam os motivos vegetalistas, já de disposição manuelina. Nas capelas dispostas nas laterais, distingue-se a Capela de Jesus, com refinada azulejaria a lembrar as geometrias mudéjares e um bonito túmulo manuelino que recebe o corpo de João de Noronha.
O inevitável Nicolau de Chanterenne ocupou-se dos baixos-relevos, lindíssimos, para não variar, e representativos da Paixão de Cristo. É de particular beleza o dedicado ao Calvário, próximo do acesso que o claustro faz com a igreja.
Coro-alto e cadeiral
O coro-alto foi outra das instalações quinhentistas, já finalizado no reinado de D. João III, e que obrigou à remoção do janelão que se sobrepunha ao portal axial exterior – em sua substituição colocaram-se os três nichos de destaque da fachada e que já foram referenciados atrás. Tem um evidente protagonismo no enquadramento de espaços no interior do templo, sendo já difícil imaginar como seria a nave sem ele.
Recebe aquele que é, sem qualquer discussão, um dos mais bonitos cadeirais do país. Lá estão esculpidas variadas imagens que remetem para o elogio do Portugal ultramarino, com trabalhos em madeira onde se reconhecem embarcações, fortes marítimos, pelourinhos, animais exóticos, colonos, bem como iconografia manuelina como alcachofras e esferas armilares.
Sala das Relíquias
A Sala das Relíquias funciona como aparelho museológico, onde, além de vários objectos relacionados com o acto celebratório, podemos ver as relíquias adoradas pelos cónegos de Santo Agostinho que residiam em Santa Cruz. Crê-se, atendendo à inscrição lá gravada, que o relicário dedicado a São Teotónio, primeiro prior de Santa Cruz de Coimbra e primeiro santo de Portugal, contém parte do seu crânio. Dois outros relicários em forma de busto e uma casula são apontados aos Mártires de Marrocos.
Santuário
No meio de tudo isto, há uma sala a que se deu o nome de santuário, como se as outras, à sua maneira, não o fossem. À primeira vista, tinha tudo para ser uma loja maçónica. As pirâmides que se vão mostrando num perímetro ovalado guardam relíquias de diversos tipos – as duas da entrada, entende Maria de Lurdes Craveiro, lembram a Capela de Anet. O chão exibe um padrão de curvas que, em comunhão com a planta em forma de ovo, nos deixa desconcertados. O Santuário apresenta-se como um desafio aos sentidos, e, por fugir à estética crúzia medieva e mais tarde manuelina, mostra como no Mosteiro de Santa Cruz há praticamente uma divisão para cada gosto.
Motivos Manuelinos no cadeiral do coro-alto
O Santuário remete para alguma simbologia que agora temos como maçónica
O Claustro da Manga
Já separado do Mosteiro, mas antigamente parte dele (por ele se acedia ao Claustro do Silêncio), está o Claustro da Manga, assim chamado por uma crença local defender que o mesmo terá sido desenhado na manga da camisa de D. João III.
Foi desenvolvido por Frei Brás de Barros em possível aliança com o inevitável João de Ruão. Paulo Pereira descreve a sua fonte, que na prática ocupa quase todo o seu perímetro, como “uma obra única em Portugal e pioneira no contexto peninsular”.
É sem margem para dúvida um monumento renascentista, ou proto-renascentista, de alguma ingenuidade e óbvio sentido modernista para a época. A construção em estilo clássico do templo central, a lembrar os templos pagãos helénicos e romanos, não engana quanto às influências da Antiguidade que já começavam a ser exercidas.
Os cubelos nos cantos lembram os mesmos que se encontram não longe daqui, na Porta Especiosa da Sé Velha de Coimbra. A ligação entre eles e o templete ao centro significa, no entender do mesmo Paulo Pereira, os quatro rios do Paraíso. Que estamos perante um magnífico monumento ao elemento água, à Fonte da Vida, é certo. O facto do Mosteiro de Santa Cruz ter sido levantado em terrenos conhecidos por serem bem servidos de água – nos Banhos Reais, como eram conhecidos, possíveis resquícios dos velhos banhos termais de Aeminium, a primitiva Coimbra romana – sublinha o simbolismo.
Os cubelos, na verdade, funcionavam como espaços de oração e como reflexo das Quatro Virtudes (a Sabedoria, a Justiça, a Força, a Temperança). Isolavam-se do templete central por intermédio de pontes que, antes, se podiam içar. Este pequenos eremitérios de um só homem, este retirado do mundo e portanto focado no além-matéria, têm equivalência noutros lugares do país, como acontece, por exemplo, na charolinha da Mata dos Sete Montes, em Tomar, não por acaso, também cercada de água. Os relevos incluídos nos oratórios mostram os Padres do Deserto (Santa Maria Egipcíaca, São Jerónimo, São João Baptista, Santo Antão), sendo deserto a palavra chave aqui, numa nova referência à ideia de cárcere espiritual, de retiro para a prática da oração.
Olhar a planta da Fonte da Manga é, em si, um exercício de descoberta. Vemos a cruz cristã. Na intersecção dos seus dois braços vemos um quadrado. E dentro do quadrado, o círculo do templete. Nada está ao acaso. O quadrado como alegoria da terra, isto é, da substância. O círculo como alegoria do céu, ou por outra, do transcendente. A cruz como comunhão da primeira e do segundo.
Promoções para dormidas em Coimbra
Mapa
Coordenadas de GPS: lat=40.21094 ; lon=-8.42871