Rua da Sofia

Monumentos
Natureza
Povoações
Festas
Tradições
Lendas
Insólito
Roteiros
Sophia, em grego, traduz-se para conhecimento ou ciência, em português. As estátuas que pululam por Coimbra em homenagem a uma figura feminina a que se atribuiu o nome de Sabedoria, são, contas feitas, esculturas a Sophia, senhora da gnose, uma quase padroeira dos estudantes, ou pelo menos dos estudantes bem sucedidos. Da mesma forma, uma via de intenso tráfego, paralela à Avenida Fernão de Magalhães, foi honrada com o apropriado nome de Rua da Sofia. Para ela estava prevista a morada de uma das mais gloriosas instituições nacionais e aquela por que hoje Coimbra ainda é lembrada: a Universidade. O plano foi desmontado pelo próprio rei que o pensou, e desde aí que a Rua da Sofia canta um lamento que dura até à presente hora.
Com efeito, quem agora caminha pela histórica rua – que, embora não pareça, faz parte do património UNESCO, integrante do conjunto Universidade de Coimbra – Alta e Sofia -, julgará estar a percorrer uma estrada de escoamento viário da Baixinha para fora do perímetro urbano. Entre a presença esmagadora dos autocarros, o emaranhado de cabos eléctricos, o aperto dos automóveis, as fachadas encarvoadas de poluição, a cacofonia das buzinadelas, a estreiteza dos passeios, haverá tempo para olhar? Tudo na Rua da Sofia nos empurra para rapidamente sairmos dela, o que é uma pena, porque boa parte da memória de Coimbra, da que aconteceu à que esteve por acontecer, mora aqui. A piorar, houve o comércio que de cá fugiu em direcção à Alta, à procura dos bolsos dos turistas europeus que, desde a promoção de Coimbra a património da humanidade, vieram em força.
A boa notícia é que parece haver consciência disso. O município tem dito que assim que a logística o permita, talvez se transforme a Rua da Sofia, nem que seja parcialmente, numa via pedonal e de transporte público. Na verdade, em certas datas de ocasião, a propósito de eventos como o “Ao Encontro da Sofia” ou o “Sofia, Meu Amor“, a rua chega mesmo a fechar, e o povo e o comércio aderem à causa. Que a Sofia conimbricense contrarie a natureza e faça o milagre de passar de velha a adolescente, é o mínimo que se pede. Já bastou a trama que o destino lhe preparou.
A rua de D. João III
D. João III não morria de amores pela Universidade quando esta residia em Lisboa. Na verdade, pensa-se que D. João III não morria de amores por Lisboa, ponto final. A ideia de trasladar os Estudos Gerais da capital para a cidade de Coimbra já lhe passava pela cabeça desde há muito, e sinais a comprová-lo não faltam. Surge assim o projecto de uma via larga e ampla destinada a receber a mais recente Universidade, encomendado pelo rei a Frei Brás de Barros, este último instalado no Mosteiro de Santa Cruz, templo que foi ponto de partida para a construção da revolucionária rua.
A semente de tudo foi, de facto, o todo-poderoso Mosteiro de Santa Cruz, já com passado provado no ensino dos mais jovens aspirantes a cónegos, onde se integraram dois colégios que leccionaram a partir de 1535 – o Colégio de Santo Agostinho e o Colégio de São João Baptista. Dois anos depois um outro par de colégios foi criado, o de São Miguel, para a classe mais abastada, e o de Todos-os-Santos, para a plebe. Destes dois surgiu um outro, em 1547, enquanto fusão dos anteriores, ao qual se chamou de Colégio das Artes (actualmente adaptado ao Centro de Artes Visuais), de disposição religiosa ou laica, consoante os interesses, e que tinha como principal objectivo o de preparar alunos para os Estudos Gerais, ou seja, para a Universidade. O Colégio das Artes, agraciado com trabalhos dos grandes escultores Diogo de Castilho e João de Ruão, foi, durante algum tempo, um espaço de pedagogia de direcção independente da Universidade, motivador de algumas desconfianças, até por ser visto como um bastião progressista num contexto adverso: o da Contra-Reforma. Não levou muito tempo a que fosse integrado nos Estudos Gerais, com perseguições e traições pelo caminho. Por ironia, viria a tornar-se uma das sedes nacionais da Inquisição.
Mas voltando atrás. Ora, Frei Brás de Barros, homem de confiança de D. João III que havia recebido ensinamentos clássicos quando estudou fora de fronteiras, transportou para Coimbra as linhas e os conceitos renascentistas. É assim que nasce o esboço da Rua da Sofia, uma estrada recta, sem oscilações de nível, sem curvas, suficientemente larga, que deveria receber no seu lado nascente uma sequência de novatos colégios e no lado poente os serviços de apoio aos primeiros, sobretudo casas de residência para professores e alunos. A edificação da via e de parte dos colégios recém-construídos começa pelo ano de 1536. Em 1537 já por lá acontecem aulas. Em 1538 cunham-lhe a designação com o muito sugestivo nome de Rua da Sofia.
O plano, ainda que com alterações estruturais significativas no seu eixo (nomeadamente no que toca à alteração da posição de alguns dos seus prédios, como foi o caso do Colégio de São Tomás ou o Colégio de São Boaventura), ia decorrendo conforme o previsto, pelo menos conceptualmente – os colégios ensinavam, os serviços apoiavam, e a gerir a dinâmica social da coisa estava o Mosteiro de Santa Cruz. Mal ou bem, a existência de uma função quase exclusivamente pedagógica na então vista como a principal artéria da cidade mostra como a Rua da Sofia se preparava para ser o centro cultural da nova Coimbra. Porém, a grande fatia dos estudos relativos às faculdades estavam já pela Alta. Uma certa dúvida persistia quanto ao lugar formal dos Estudos Gerais. E a ambiguidade acabou corria o ano de 1544, quando D. João III, num volte face, decidiu pegar em todos os estudos respeitantes à Universidade e os centrou na Alta, isto é, junto ao seu Paço Real, que a partir daí se começou a apelidar de Paço das Escolas. Quanto à Sofia, só a imaginação poderá saber como seria o edificado da Universidade se este alguma vez lá tivesse sido levantado. Até o Colégio das Artes, o de maior reputação a operar na Baixa, se viu transferido para a Alta, cerca de vinte anos depois. A Rua da Sofia nunca mais viria a recuperar da desilusão. Os colégios lá continuaram, ou para ensinamentos religiosos com vista à ingressão nas Ordens, ou como aulas predecessoras aos estudos da Universidade. Não o suficiente para defender a dignidade de uma das ruas mais longas e modernas da Europa do século XVI.
Em 1834, a machadada final: a vitória do Liberalismo desfaz as Ordens religiosas. Os colégios, que eram dirigidos por Ordens, cessam a maior parte das suas actividades. Em sua vez aparecem algumas associações, algum comércio, algumas residências para a nobreza e a alta burguesia. No fundo, é o início da vulgarização da Rua da Sofia. E assim continua, do século XIX até ao presente. Neste momento, e é com grande tristeza que o digo, a Sofia é apenas mais uma rua da Baixa conimbricense. É certo que ainda lhe topamos alguma distinção, porque não é normal o número de igrejas e colégios e instituições num segmento de recta que não chega ao meio quilómetro, todavia o caos urbano que nela impera, de uma à outra ponta, torna-a pó dissolvente na malha urbana de acesso à Baixinha e à Alta, esses sim, clusters onde inglês pára para ver.

O Palácio da Justiça na Rua da Sofia era antes o Colégio de São Tomás

Os claustros funcionavam como plataformas giratórias entre os vários segmentos de cada colégio
A Rua da Sofia no urbanismo de Coimbra
É certo que a tristeza da actual Rua da Sofia se deve muito à expectativa que se tinha dela. Houvesse D. João III cumprido a sua primeira palavra e talvez hoje Coimbra tivesse quatro pólos turísticos, e não três – ou seja, à Alta régia e episcopal, à Baixinha do comércio e das ruelas medievais, e à Santa Clara romântica do lado oposto do rio, poderíamos somar a Sofia e suas transversais, num novo bairro estudantil, magnetizado pela hipotética Universidade.
Assim não foi, e não adianta chorar sobre leite derramado. Na verdade, e olhando agora para o copo meio cheio, uma coisa não se tira à Rua da Sofia: foi uma das mais inovadoras obras em Portugal e na Europa, cujo efeito ainda actualmente se sente. Segue alinhada com o rio Mondego e relaciona a zona histórica de Coimbra, quer a Baixa no sopé do morro, quer a Alta no seu vértice, com as estradas que seguem para Norte, em direcção ao Porto, a Braga, à Galiza. Tanto assim é que, antes, o seu extremo setentrional tinha uma porta de ingresso na cidade, a chamada Porta de Santa Margarida, para efeitos de regulação de gente e de produtos.
Se olharmos para a planta urbana da pólis, percebemos como a Rua da Sofia sobressai – e sobressaía ainda mais antes de se rasgar uma nova artéria, a Avenida Fernão de Magalhães, que orienta os carros para a autoestrada. Não só relativamente à Alta e à Baixinha, como até aos acantonamentos que estão entre si a Rua Direita. Bastará um curto roteiro entre a Porta de Almedina e a Praça 8 de Maio, e depois da Praça 8 de Maio até à Igreja de Santa Justa, percorrendo toda a extensão da Sofia, para assimilarmos diferenças superlativas, quer no feitio das casas, quer na traça das vias, quer na escala do edificado, quer no sentimento dos lugares. A Rua da Sofia, reconheçamos, ainda hoje é moderna, apesar dos seus quinhentos anos, e não podemos dizer o mesmo dos quarteirões a sul e a nascente.
Afinal, a Sofia foi pensada e executada. Foi um plano. Esteve em papel. Ao contrário dos bairros da Coimbra histórica que se foram arranjando de forma orgânica conforme o relevo e a estrada e a cerca, a Rua da Sofia desenhou-se como via de entrada e via de saída, e surgiu como alternativa de confiança à Rua Direita que nos meses de chuva se via alagada e intransitável, bloqueando qualquer intenção de fuga (ou de ingresso) para quem ia para (ou vinha de) norte.
Os colégios
Nem todos os colégios que estiveram na Rua da Sofia são hoje visíveis, e destes, quase nenhum é visitável. Uns adaptaram-se a novos espaços, alguns viram reformas de tal ordem que mal se reconhecem, e por fim outros houve que desapareceram por inteiro.
Contudo, temos sobreviventes. Três deles, porventura os principais por serem os mais facilmente identificados, seguem linhas estéticas semelhantes entre si que, em boa verdade, associamos à arquitectura religiosa renascentista: são eles, de norte para sul, o Colégio de São Pedro, o Colégio da Graça, o Colégio do Carmo, todos na margem nascente. Outros dois, também renascentistas, mas próximos de um traçado civil (ou até militar, digo eu), são o Colégio de São Tomás, completamente renovado para receber o Palácio da Justiça, e o Colégio do Espírito Santo, já quase a chegar ao Mosteiro de Santa Cruz.
Quase todos se encontravam acima do nível da rua. A Rua da Sofia, sendo nivelada na base de uma colina, tinha nas suas costas, para o lado leste, uma encosta que obrigava a que o piso térreo de cada edifício estivesse em parte subterrado. Não sendo tal fracção digna de receber o colégio propriamente dito, serviria o espaço para hospedar algum comércio que fosse pertinente com a temática do ensino. O acesso às aulas seria feito pelo lado de fora, como por vezes ainda se testemunha na escadaria exterior. Do lado de dentro, cada colégio teria um ou mais claustros ou pátios que serviam de plataforma convergente das várias repartições (das salas de aula, dos quartos, das secretarias, da igreja…).
No total, a Rua da Sofia foi mãe de quase trinta colégios. Veremos os que hoje são observáveis, a começar pelo lado nascente, partindo do Mosteiro de Santa Cruz, e regressando a este pelo lado poente.
Colégio do Espírito Santo
Destinado aos alunos cistercienses, foi iniciativa do Cardeal D. Henrique e deverá ter sido concluído a meio do século XVI. Conta com dois pátios interiores e foi pioneiro, com o Colégio de São Tomás, na implementação de uma arquitectura civil palaciana na cidade de Coimbra. Por aqui está agora montado o Café Sofia, espécie de café central da Rua da Sofia, gerido pela simpática senhora Aguinalda, ao qual muito recomendo uma ida para breve conversa e curta bica.
Colégio de Nossa Senhora do Carmo
Inicialmente chamado Colégio de Nossa Senhora da Conceição, foi fundado pelo Bispo do Porto em 1540, D. Frei Baltazar Limpo, e começou a admitir estudantes a partir de 1543, ainda a obra não se tinha completado. Assim que as Ordens religiosas foram extintas, serviu de hospital. Tem na fachada e nos interiores (de onde se destaca o claustro de dois pisos) uma combinação de vários estilos e de várias épocas, do renascentismo ao barroco, passando pelo maneirismo que os mediou.
Colégio da Graça
Um projecto de D. João III que teve apoio de Diogo de Castilho na execução da igreja e do claustro. Educava alunos que pretendessem entrar nos Estudos Gerais. Em 1549 o colégio passou a fazer parte da Universidade. Seis anos depois, a igreja que lhe estava anexa também. O claustro, originalmente de um piso, cresceu para cima, com a junção de novo piso no século XVII.
Com a extinção das Ordens, foi entregue ao exército, altura em que perdeu algumas das suas características primitivas. Passou por quartel até se entreter como hospedagem da Liga dos Combatentes e dos Serviços Sociais do Exército. Contudo, recentemente reforçou a sua histórica componente educativa, tendo a Universidade feito de uma das suas alas o Centro de Estudos Sociais.
Conserva algum espólio interessante. Parte dele foi transferido para o Museu Nacional Machado de Castro, situado na Alta. É um dos mais importantes edifícios da Baixa de Coimbra, inspirador de tantos outros. Apesar das reformas de que foi alvo assim que se tornou edifício militar, apresenta-se como aquele que mais próximo ficou do edificado original, recuado em relação aos restantes alçados da Rua da Sofia. Está, por isso, classificado como Monumento Nacional.
Uma nota: nem sempre é fácil visitar o Colégio do Carmo, nem sequer a sua igreja. Espera-se que no futuro se abram de vez as portas de um elementar monumento coimbrão, chave de decifração de vários prédios renascentistas que se lhe seguiram.
Colégio de São Pedro
Instalado num terreno que era parte do Mosteiro de Santa Cruz (como era habitual para estes lados), foi pensado por Rui Lopes de Carvalho, ele que mais tarde ascenderia a Bispo de Miranda. Diz-se que os alunos que cá frequentavam aulas tiveram uma contenda com um dos seus administradores e dali zarparam para passar a estudar no Paço das Escolas. Cerca de trinta e cinco anos depois da sua abertura, foi oferecido à Ordem Terceira Regular de São Francisco, sofrendo vasta e profunda requalificação a partir desse momento, conferindo-lhe a actual cara, um misto entre o renascentismo fundacional e o maneirismo posterior.
Aquando da extinção das Ordens, foi vendido em hasta pública.
Colégio de São Tomás (actual Palácio da Justiça de Coimbra)
Depois da extinção das Ordens, aproveitou-se como casa senhorial. Na primeira metade do século XX decidiu-se lá instalar o Palácio da Justiça. Ocupa actualmente um quarteirão inteiro e dificilmente conseguimos discernir o que é que do que ali se vê ainda é quinhentista – a peça mais óbvia, o pórtico, foi dali retirada e levada para o Museu Nacional Machado de Castro. Com efeito, ao ser adaptado a Palácio da Justiça, viu-se praticamente transformado em todo o seu perímetro para se adequar às funções e ao prestígio da ilustre instituição que acolheu.
De todos os colégios que resistiram, o de São Tomás é o único que se viu promovido a algo maior do que era inicialmente, dado curioso tendo em conta que se encontrava no flanco poente da Rua da Sofia, ou seja, supostamente o menos nobre.
Outros colégios
Tornaria o texto ainda mais pastoso se discorresse sobre todo o conjunto de colégios sediados na Rua da Sofia. Todavia, seria injusto não referir, mesmo que levemente, um par de exemplares que ficaram na história de uma estrada essencial para se compreender a Coimbra do século XVI.
Um deles foi tomado pela abstrusa vaga dos shoppings, o Colégio de São Domingos, do qual, vá lá, ainda se consegue mirar uns restos do seu convento – estando uma das suas capelas, a Capela do Tesoureiro, muito bem representada no Museu Nacional Machado de Castro, acompanhada de outros distintos trabalhos retabulares. O Convento de São Domingos estava antes mais perto do Mondego e, tal como acontecia com o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, sofria demasiadas vezes o tormento das inundações. Foi, por essa razão, realocado junto à Rua da Sofia, em território crúzio cedido por Frei Brás de Barros. Chegou a ser Monumento Nacional. Com a adaptação a centro comercial, perdeu o estatuto.
O segundo foi o Colégio de São Boaventura e menciono-o como atestado do desmanche dos vários colégios da Sofia na corriqueira vida quotidiana da Baixa coimbrã. Fundado por D. João III, hospedou frades franciscanos. Com a chegada do Liberalismo, foi vendido para uso comum, residencial e comercial, situação em que actualmente se encontra. Porém, e apesar de já derretido nas fachadas civis, conseguimos, com alguma atenção, identificá-lo: está defronte do Colégio do Espírito Santo, e é sobretudo reconhecível pela igreja que o ladeava, de arco ligeiramente achatado.

De construção posterior, o Colégio de São Pedro encontra-se numa das extremidades da Rua da Sofia

A fachada do Colégio de Nossa Senhora da Graça é aquela que mais fiel se mantém ao seu desenho original

Renascentismo na fachada do Colégio de Nossa Senhora do Carmo
Coimbra
Um curto roteiro histórico com o melhor de Coimbra. Surpreendentes destinos, saborosos repastos, sossegadas dormidas.
Promoções para dormidas em Coimbra
Mapa
Coordenadas de GPS: lat=40.21309 ; lon=-8.43076