Paço das Escolas
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A Universidade de Coimbra está hoje dispersa por vários núcleos, distribuídos por diversas zonas da cidade, umas mais centrais do que outras. No entanto, não é novidade para ninguém que a sua alma reside na Alta, muito em especial no dito Paço das Escolas, uma enorme pátio disposto em U, aberto do lado sul, cercado por uma sequência de monumentos obrigatórios para qualquer visitante que queira saber o mínimo sobre a história deste país.
Assim, irei deambular pelos salões, portadas, e estátuas que desde há mais de setecentos anos para cá construíram o epicentro da Universidade de Coimbra, com uma excepção: a Biblioteca Joanina, que já teve direito a texto exclusivo neste espaço.
Coimbra e a formação
No século XIII, Portugal estava ainda na sua infância enquanto reino. A educação das suas comunidades era feita, na vasta maioria dos casos, fora de portas (por Salamanca, Oxford, Paris), e vinha acompanhada de despesas avultadas, para não falar do tempo empregue entre viagens. D. Dinis, rei poeta, apercebendo-se disso, mexe cordelinhos para que por cá houvesse uma pólis ao serviço do conhecimento. Tratava-se, como hoje, de um investimento em pessoas, uma despesa que teria retorno mais tarde. E é este o contexto histórico para que no território nacional se desenvolvessem processos para suster a emigração estudantil.
Neste encalço, o exercício da pedagogia na cidade de Coimbra existe desde a fundação da nacionalidade. No Mosteiro de Santa Cruz, pelo século XII, ele já se fazia. Foi aliás por essa via, isto é, pela cunha cruziana, que se pediu ao Papa Nicolau IV a ratificação de um Estudo Geral, como era chamado à época. Estaríamos no ano de 1288. Assim que foi garantida a aprovação papal, D. Dinis, um dos empresários do projecto, decidiu criar a instituição dos Estudo Gerais em Lisboa, junto ao corrente Largo do Carmo, corria o ano de 1290, nas vertentes do Direito, da Medicina, dos Cânones, e da Teologia.
18 anos depois os Estudos Gerais fundados por D. Dinis deslocaram-se para Coimbra, em concreto para o Paço Real, actual Paço das Escolas. 20 anos depois da trasladação para Coimbra, já no reinado de D. Afonso IV, retorna a Lisboa, possivelmente para que o rei pudesse gozar de livre vontade do seu Paço na cidade beirã. A meio do século XIV, a Peste Negra invade as áreas urbanas do país, Lisboa em particular, e há nova mudança em sentido inverso: a Universidade salta de Lisboa e regressa a Coimbra, em 1354, desta vez para o Bairro de Almedina. Mas a Peste grassava. Em pouco tempo atingiu Coimbra, com todas as implicações que isso trazia, na inflação, na insegurança, na fome. Novamente, em 1377, a Universidade rumava ao destino inicial, Lisboa, num ping-pong que em nada ajudava à credibilidade da instituição. No meio disto tudo, as receitas geradas pela Universidade eram escassíssimas, impedindo-a de funcionar de forma independente, pois a sua sobrevivência dependia quase totalmente das generosas doações régias e da Igreja.
Mas foi nesta última etapa passada na capital que a Universidade teve finalmente espaço para estabilizar e crescer. Depois de contornada a epidemia, de superada a ameaça de submissão a Castela, de vencida a mendigagem que tinha aos grandes poderes eclesiásticos e ao poder régio, os estudos em Portugal, através da Universidade, viram-se finalmente competentes. Contudo, isso não impediu uma derradeira transfiguração. Em 1537, D. João III prepara um último câmbio, desta vez definitivo: seria, mais uma vez, Coimbra e não Lisboa a receber os estudantes em território nacional. E desde aí que a cidade beirã se assumiu como lugar de estudantes. Por vezes, foi até além disso, como quando ajudou a formar corpos militares de combate à união Ibérica.
Com pequenos solavancos durante os reinados da dinastia Filipina, muito em específico com D. Filipe II (I de Portugal), monarca que, ao lembrar ser o verdadeiro proprietário daqueles terrenos, obrigou a Universidade a fazer a sua vida noutro lado – problema que só se resolveu com a compra daquele lote ao rei espanhol, transformando um Paço dos Reis num Paço de Escolas -, a instituição conseguiu ir vencendo a maioria dos obstáculos que se atravessaram no destino.
Desde a Restauração até ao século XX, houve três grandes reformas que regeneraram a instituição. Uma aplicada pelo Marquês de Pombal, conhecida como a dos Estatutos Pombalinos, a reboque da expulsão dos Jesuítas e inspirada nos ventos Iluministas que sopravam da Velha Europa, e que veio eliminar o que sobrava do castelo assim que se projectou o primeiro Observatório Astronómico. Outra aquando da vitória Liberal, com a extinção das ordens religiosas, algumas delas até aí ainda intervenientes na formação dos alunos. E por fim, passando por cima de pequenos acertos revolucionários realizados logo após a chegada da República, tivemos a marcante iniciativa do Estado Novo, que entrou a pés juntos sobre uma boa porção de casas da Alta para dali criar novas faculdades ao gosto da época, isto é, com linhas austeras e estatuária fascizante, todas elas hoje operacionais.
Presentemente, oito faculdades integram a Universidade de Coimbra: Direito, Medicina, Ciências e Tecnologia, Letras, Psicologia e Ciências da Educação, Farmácia, Economia, Desporto e Educação Física. Outros anexos estão incluídos na sua administração, como o estádio universitário, mais de uma dezena de museus, e o majestoso jardim que ocupa a parte a sul da principal colina coimbrã. Nunca saberemos o que seria desta cidade se não fosse a Universidade. Provavelmente ficaria entregue à crueldade do tempo, como aconteceu com tantas outras referências urbanas das Beiras, como a Guarda ou Castelo Branco ou até Viseu, que, ainda que sendo capitais de distrito, nem sempre marcharam ao passo da história.
Remate da Porta Férrea à esquerda e Torre do Relógio ao fundo
A Universidade vista do outro lado do Paço das Escolas
Homenagem da Universidade a D. João III
O Paço
Numa planura assente no ponto máximo da colina sobranceira ao Mondego (a mesma que serviu de protecção a romanos, a suevos, a visigodos, e a sarracenos), exactamente no lugar onde a alcáçova muçulmana se situava como coroa do quase desaparecido castelo, os reis portugueses, a começar logo por Afonso Henriques, montaram o seu Paço Real. Viria a ser a casa por excelência de boa parte dos monarcas da primeira dinastia – de D. Sancho I até D. Afonso III, todos cá nasceram, e igual aconteceu com D. Pedro I e D. Fernando – e mesmo a posterior mudança da corte para Lisboa não foi suficiente para que a linhagem esquecesse este bastião, baú das primeiras memórias do reino português, como bem se vê com a coroação de D. João I, homem que escolheu ser feito rei por aqui, na actual Sala dos Capelos.
O que agora vemos, claro, é uma versão já muito adulterada do primeiro Paço Régio, muito por culpa da requalificação realizada por dois dos reis mais interventivos no património nacional: D. Manuel I e o seu filho D. João III.
Aos dias que correm, o acesso ao Paço das Escolas é feito por dois lados – um a poente, outro a nascente.
A poente, a entrada faz-se por uma geometria de escadas que desemboca na Porta de Minerva, uma admissão benzida pela Deusa da Sabedoria romana, a lembrar-nos que este foi, também, uma villae, um centro urbano desenvolvido por Roma chamado Aemnium, bem próximo de um outro que, à altura, gozava de maior prestígio – falamos de Conímbriga, já no concelho de Condeixa.
A nascente, o ingresso é feito por uma porta com duplo interesse, dado o seu pórtico maneirista ser ornamentado do lado do Paço das Escolas e do lado exterior, já virado para o Largo D. Dinis. No arco que enfrenta o Paço das Escolas temos uma estátua de D. Dinis. No arco oposto, uma outra que representa D. João III. Ambos são considerados os pais da Universidade – D. Dinis enquanto rei fundador dos Estudos Gerais, D. João III enquanto responsável pela última e decisiva mudança das faculdades para a cidade de Coimbra. Nos dois lados, por cima dos monarcas, há uma escultura feminina alusiva à Sapiência. Nas colunas, imagens reflectem as quatro principais faculdades da primitiva Universidade. Entre os dois arcos, um tecto abobadado funciona como cobertura, e num dos pontos uma porta em ferro justifica o nome atribuído ao conjunto: a Porta Férrea, que, pelo século XIX e até durante uma parte do século XX, deveria estar sempre fechada enquanto as aulas decorriam. A Porta Férrea foi, desde o momento em que foi desenhada por António Tavares, em 1633 e 1634, um elo entre dimensões – quem dali passasse estaria no mundo estudantil, um universo com leis próprias (o Foro, como o tratavam), que progredia independente da regulamentação do concelho, como um castelo dentro de outro castelo ao qual a guarda convencional não dispunha de qualquer autoridade (mesmo hoje, por questões de princípio, a polícia antes de entrar no Paço prefere ligar ao reitor). Era também na Porta Férrea que os estudantes, assim que licenciados, deitavam as cinzas das suas fitas e urinavam para cima delas (acto popularmente conhecido como a mija).
A Porta Férrea vista do Paço das Escolas
A Porta Férrea vista de fora do Paço das Escolas
Já com pés firmes no amplo pátio, do mesmo sítio onde fica a estátua que é justo preito a D. João III, conseguimos então mirar um conjunto de obras de vários estilos explicativo das diferentes cronologias em que o espaço foi intervencionado. A sudoeste, na fachada, há dois portais impossíveis de ignorar. Um, de traço clássico, dá entrada na Biblioteca Joanina (ou antes, dá saída, já que a actual porta de acesso está mais abaixo, depois de descermos as escadas de Minerva). O segundo, imediatamente a seguir ao primeiro e que na verdade é uma porta lateral da Capela de São Miguel, exibe um entrelaçado que reconhecemos de imediato como manuelino, com simbologia a emparelhar Cristo e D. Manuel, em mais uma mostra de como o rei D. Manuel I quis, pela força da estética, convencer o povo da sua legitimidade (como se sabe, o Venturoso não foi escolhido por via directa), apoiada na crença de ser rei por direito divino.
Do lado oposto à fachada acima descrita, a ocupar todo o eixo oriental, impõe-se um longo edifício requalificado, com linhas sóbrias e simetrias maneiristas, antes usado como Paço dos infantes e posteriormente entregue como aposento da família real, como residência de certos reitores, e como albergue de alguns alunos que aqui vinham fazer admissão nas faculdades. Ganhou o nome de Colégio de São Pedro.
E enfim, no topo norte, o emblemático alpendre renascentista, conhecido por Via Latina (nestas arcadas podiam os estudantes interromper a passada dos professores caso o fizessem em latim, e daí surgiu o nome). A escadaria defronte da Via Latina já foi pisada, certamente, centenas de milhares de vezes, entre os turistas que seguem os tours pré-pagos e os alunos que por ali se juntam para a foto da turma. Ao centro, para lá dos três arcos altaneiros, vemos uma espécie de retábulo, mas as figuras lá presentes fogem da religiosidade – no coração da peça está D. José, o rei do Marquês de Pombal, acompanhado por dois Atlantes nas colunas, numa recordação de como os Estatutos Pombalinos foram de substancial importância na vida da Universidade do século XVIII. Fazendo o perímetro da Via Latina até ao seu ponto mais a poente damos com a entrada para os Gerais, um belo claustro de dois pisos povoado por alunos e lentes. Para lá deste, o torreão do século XVIII, a celebríssima torre da Universidade, elemento por que mais Coimbra é conhecida, com os seus quatro sinos já por aqui versados, muito em especial o malogrado sino da cabra, que, para mal dos estudantes, dava sinal para o início das aulas.
O Claustro dos Gerais visto do topo, onde se destacam os arcos alinhados em dois pisos
Via Latina, uma lembrança da erudição dos lentes da Universidade de Coimbra
Antigo albergue de estudantes, o Colégio de São Pedro é um dos melhores exemplos do maneirismo coimbrão
Os salões e a capela
Coimbra é uma cidade para ver os interiores. Quem diz que se consegue visitar todo o burgo num só dia não faz ideia do que está a perder, porque só entre a Alta e a Baixa há dezenas de lugares a conhecer do lado de dentro, e isto descontando a parte a sul do Mondego que ainda pertence à concelhia. Assim acontece também com os edifícios que emolduram o Paço das Escolas.
Um deles, o grande salão nobre conhecido por Sala dos Capelos ou Sala dos Grandes Actos, é uma majestosa câmara, antes usada como palco do trono real e sendo depois adaptada por Marcos Pires às funções académicas (o trono, agora, pode ser visto como a cadeira do reitor, o rei da Universidade). As principais cerimónias da academia aqui decorrem – os Doutoramentos Honoris Causa, a Abertura Solene do Ano Lectivo, a Imposição das Insígnias. Recebe os doutorados e os reitores em rituais que distinguem a grandiosidade do serviço pedagógico. Destacam-se a cobertura apainelada e as pinturas que rodeiam o salão respeitantes aos reis de Portugal (e com o extra de D. Isabel, nunca esquecida pelos conimbricenses), com excepção da Dinastia Filipina, isto é, dos três monarcas espanhóis que durante sessenta anos juntaram Portugal (e não só) ao seu reino.
De menor relevância mas ainda assim a merecer breve visita está a Sala de Armas e a Sala Amarela. A primeira mostra as alabardas da antiga Guarda Académica, um corpo policial que vigiava o cumprimento do Foro e que, no limite, se obrigava a encarcerar quem não o respeitasse – fosse ele um aluno, um professor, um funcionário. A segunda, que vem na continuação da anterior, levou tal designação pelo forro a seda que estampa as paredes, numa referência à cor da faculdade de Medicina (o amarelo), cuja congregação aqui se reunia – guarda retratos de vários reitores.
O salão dedicado às grandes cerimónias da Universidade de Coimbra tem o nome de Sala dos Capelos ou Sala dos Grandes Actos
Os reis de Portugal, com excepção da Dinastia Filipina, na Sala dos Capelos
As escadas dedicadas a Minerva, Deusa romana da Sabedoria
Portal de Entrada (agora de saída) da belíssima Biblioteca Joanina
Na Sala das Armas, à direita, as armas da antiga guarda universitária
A Sala Amarela remete para as cores da cada faculdade, neste caso para o amarelo usado pelos estudantes de Medicina
A Sala do Exame Privado era o antigo quarto exclusivo do rei de Portugal. Como com tudo o que aqui mora, foi ambientado à nova realidade universitária e durante um tempo operou como saleta reservada aos exames feitos à porta fechada e diante de um grupo de lentes, uma tradição terminada com a implantação dos Estatutos Pombalinos. Também a cerimónia de Abertura Solene do Ano Lectivo passa por cá. O tecto alude às quatro primordiais faculdades da Universidade de Coimbra. As pinturas referem-se a reitores passados.
Por fim, a capela, a bela capela dedicada a São Miguel, arcanjo que, de acordo com a crença popular, ajudou Afonso Henriques – ele próprio um ultra defensor de Coimbra enquanto casa da corte nacional -, na conquista para sul. Começou por ser um oratório. D. Afonso I e depois D. Manuel ajudaram a convertê-la num lugar de liturgia – actualmente ainda são por cá praticadas missas domingueiras, até casamentos de gente que é ou foi parte da anciã instituição do ensino português. No retábulo-mor, o trono e as pinturas são superlativos. O desproporcional órgão, inicialmente pensado para outro espaço, tem bonitos motivos orientais e é um exemplo de preservação. Os azulejos, alfacinhas, foram colocados no século XVII e dão-lhe um toque mudéjar. O lampadário sobressai do altar, é de uma prata resplandecente que apetece levar para casa. A rematar, do lado do Evangelho, uma escultura é dedicada à padroeira dos estudantes, sugestivamente chamada Senhora da Luz: nada mais apropriado, a luz como sinónimo de conhecimento, por oposição à escuridão da ignorância.
A propaganda régia da Universidade de Coimbra não se fica apenas pelo manuelino – retábulo nas arcadas da Via Latina com D. José ao centro
Portal e janela manuelinos do lado exterior da Capela de São Miguel
Tecto e órgão no interior da Capela de São Miguel
Coimbra
Um curto roteiro histórico com o melhor de Coimbra. Surpreendentes destinos, saborosos repastos, sossegadas dormidas.
Promoções para dormidas em Coimbra
Mapa
Coordenadas de GPS: lat=40.20749 ; lon=-8.42602