Lampantana
Monumentos
Natureza
Povoações
Festas
Tradições
Lendas
Insólito
Roteiros
Algumas interrogações persistem em relação a este prato que agora atribuímos, com um misto de certeza e dúvida, ao concelho de Mortágua. A Lampantana é uma Chanfana? Foi considerada sempre igual à que hoje se serve? Que história lhe serve de razão para existir?
Nem tudo tem resposta – e nem tudo precisa de resposta. Mas uma coisa sabemos: os mortaguenses adoptaram-na como iguaria regional e colocaram o seu nome no mapa do país. Para eles, Lampantana não é uma Chanfana – porque a primeira recorre à carne de ovelha e a segunda à de cabra. E só por isso há justificação para discorrermos sobre ela.
História da Lampantana
A história da Lampantana confunde-se com a da Chanfana porque, na realidade, ambos os termos já serviram para nomear a mesma coisa.
Chanfana parece ser substantivo mais antigo. Encontramo-lo em alguns textos e poemas oitocentistas, curiosamente como forma pejorativa de designar uma refeição feita à base de miúdos, ora de toiro, ora de porco, por vezes semelhante ao que hoje apelidamos de Sarapatel. Como exemplo, veja-se parte de uma estrofe de António Lobo de Cavalho: “A qualquer que ali passa o cheiro engana: / Gasta os seus cobres e depois afflicto / A vómitos conhece o que é chanfana”. Alguns dicionários sublinham esta adjectivação antes usada quando explicam Chanfana como uma “comida mal feita”. Teríamos de esperar até quase ao século XX para encontrarmos definições de Chanfana próximas da actual. Uma das mais famosas veio de Torga, no seu curto mas brilhante livro “Portugal“, onde elogia uma Chanfana de carne de cabra, ou seja, conforme é presentemente reconhecida.
E no entanto, uma Chanfana, antes (e mesmo agora, dependendo da zona), podia ser um repasto elaborado com carnes velhas, mas tanto de cabra como de carneiro (ou ovelha). A esta mesma receita também se chamou, no passado, Lampantana, embora com menor frequência. Ou seja, tudo leva a crer que uma Lampantana, em tempos, foi o mesmo que Chanfana – e na realidade, viajando, por exemplo, até à Beira Litoral, reparamos que esta associação ainda acontece. Aliás, uma pesquisa ao “Dicionário Prático da Cozinha Portuguesa” dá-nos esta explicação: “Lampantana – idêntico a Chanfana”. Indo a Maria de Lourdes Modesto, Lampantana é igualmente identificada como uma Chanfana. E José Quitério corrobora, afirmando que “Lampantana é como que uma Chanfana”.
A ideia de termos uma Lampantana como um acepipe de carne de ovelha, por oposição à Chanfana que usa apenas a de cabra, parece ser exclusiva das terras do vale de Mortágua. Saídos desse perímetro, os significados misturam-se.
O que levou Mortágua a separar as águas, não sabemos ao certo. Há quem recorra a um texto do Dr. José Baptista que regista uma comezaina ocorrida no final da década de 1920, e cujo principal destaque é, precisamente, a refeição à base de carne de ovelha cozinhada com vinho, sendo este uma espécie de amaciador daquela. Tal prosa tem, contudo, alguns detalhes questionáveis ou mesmo incorrectos, colocando a credibilidade do texto em causa. Não obstante, o concelho de Mortágua tem sido incansável na promoção da sua Lampantana como activo diferenciador – para a maioria dos mortaguenses, e eu conversei com alguns, uma Lampantana é obrigatoriamente de carne de ovelha ou de carneiro, e a de cabra ou de bode destina-se a um outro repasto, o da Chanfana.
Quanto à origem, também há divergências. Que se trata de um prato festivo, apresentado quando a comunidade se juntava, ora para um casamento, ora para um baptismo, ora para uma celebração cíclica ou religiosa, não oferece grande dúvida. Que é uma criativa forma de aproveitar a carne de um animal idoso, provavelmente sem leite para dar, também não conta com grande resistência opinativa. Menos consensual é que o seu nascimento tenha acontecido por altura das Invasões Francesas, muito embora eu, pessoalmente, não ache uma teoria descabida – a este respeito, conta-se que as tropas francesas, aquando da Segunda e da Terceira Invasão, para contrariarem a política de terra queimada levada a cabo pelo exército anglo-luso, tiveram de recorrer ao vinho e às carnes de segunda categoria para combater a fome, e daí terão surgido a Chanfana e a Lampantana.
Receita
A receita tradicional necessita de um forno de pão aquecido a lenha. Como as gentes citadinas não contam com tal aparelho, substituam-no pelo forno de casa, desde que muito bem aquecido.
Também há quem jure que para ficar inconfundível tem de ser cozinhada numa caçoila de barro preto de Molelos. Outros insistem no barro, mas que este não deve ser de Molelos e sim no barro vermelho de Gândara, povoação vizinha de Mortágua conhecida pelo seu chão lamacento. Entre um e outro há alguma diferença, tendo em conta que o primeiro, em princípio, não é vidrado do lado de dentro, e o segundo é – o que significa que o barro de Molelos absorve mais o vinho e a gordura, e o barro de Gândara absorve menos.
Quanto à fórmula, não tem muito que enganar. Colocam-se na caçoila as carnes de ovelha ou de carneiro cortadas em pedaços relativamente grandes, juntamente com alho, cebola, sal, louro, colorau, azeite, pimenta, banha de porco, e azeite. Há quem adicione toucinho, noz moscada e salsa, e piripiri em vez de pimenta. Depois vem o vinho, sempre tinto. Se quisermos seguir os passos de Mortágua, o ideal é usarmos um Dão robusto. Noutras zonas, como por exemplo no distrito de Aveiro, utiliza-se um Bairrada. Regamos bem as carnes e os condimentos até submergirem. Daí leva-se, então, ao forno, previamente aquecido.
O tempo que fica no forno depende um pouco do quão quente ele está. Convém ir dando uma mirada para garantir que o vinho não é totalmente evaporado e absorvido – é essencial que, no final, sobre um caldo a banhar a carne. Também se deve ir mexendo tudo para que não haja carnes mais assadas do que outras. No fim, deve-se acompanhar de batatas cozidas e grelos.
Onde provar
Antes de se especular sobre a pergunta onde provar?, direi que mais importante é saber quando provar?, e quanto a isso a resposta é simples: todos os anos, nos últimos dias do mês de Outubro, o município de Mortágua abre as hostes ao Fim de Semana da Lampantana, um festival gastronómico que, de entre todos os manjares típicos mortaguenses, coloca a Lampantana como principal interveniente. Para ajudar, o vinho é normalmente oferecido pela Câmara Municipal, e o preço é sempre o mesmo em todos os restaurantes aderentes, que são, quase sempre, para lá de uma dezena.
Há ainda uma outra feira que tem lugar na Estação de Comboios de Cantanhede, com o nome de Mostra Gastronómica da Chanfana e da Lampantana, esta a ter lugar em Março.
Fora de calendário festivo, no concelho de Mortágua são especialmente conhecidas as Lampantanas do restaurante A Roda e da Adega dos Sabores. Recentemente, o Porta 22 também o faz – da última vez que lá passei, servia-a diariamente. Todos estes casos respeitam a versão moderna da Lampantana de Mortágua, ou seja, cozinham-na usando apenas carne de ovelha e, especulação minha, ensopam-na com vinho da região.
Mortágua – o que fazer, onde comer, onde dormir
Portugal ficará sempre em dívida com Mortágua depois de esta ter desgastado o exército napoleónico quando a Terceira Invasão Francesa chegou para tomar definitivamente o país - conhecessem os francos a Lenda do Juiz de Fora e saberiam que, neste terra, não se brinca. O confronto ocorreu na franja sul do actual concelho, comummente conhecida como Batalha do Bussaco, e ainda hoje podem ser vistos os moinhos onde Wellington, do lado inglês, e Masséna, do lado francês, descansaram e prepararam o plano de ataque. Na sede de município, um Centro de Interpretação da batalha pode também ser visitado.
Deixando o passado, outros pontos de interesse do concelho recomendáveis são o Santuário do Senhor do Mundo (o monsanto mortaguense, numa colina a sul da vila), o Santuário de Chão de Calvos (cenário onde acontece a Feira dos Calvos, em Outubro) e o belo Percurso das Quedas de Água das Paredes (um dos poucos redutos que não foi engolido pelo negócio do eucalipto).
O que não pode falhar é um faustoso almoço de Lampantana, o prato tradicional cá do burgo, a lembrar a Chanfana mas, de acordo com os mortaguenses, com ovelha em vez de cabra, e idealmente cozinhada no quase extinto barro vermelho de Gândara. A Adega dos Sabores e o restaurante A Roda servem-na com distinção. Também restaurante mas já encostado à confecção de lambarice, está o magnífico Porta 22, responsável pela saborosa Delícia de Mortágua.
Para dormir, as casinhas de madeira da Mimosa Village, afundadas entre serras, são apetecíveis. Mais impessoal, mas com piscina, temos a Casa de Santo António, bem perto da albufeira da Barragem da Aguieira, um dos melhores destinos balneares de todo o distrito de Viseu.