Lenda do Juiz de Fora
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Como sói dizer-se, há numa lenda sempre um fundo de verdade. Porém, a Lenda do Juiz de Fora pode bem ter mais do que apenas um fundo. Das várias versões que se conhecem, todas coincidem nisto: um juiz que, por abuso de poder, foi brutalmente assassinado. Não havendo documentos que comprovem a revolta dos mortaguenses contra o juiz de fora, há sinais de que aquilo que se vai relatar pode, mais vírgula menos vírgula, ter acontecido.
A lenda
Algures no século XIV, um juiz destacado para a vila de Mortágua colocou o povo em sentido. Vinha com ordens régias francamente impopulares: apoiar os direitos da fidalguia em detrimento dos da plebe, aumentar os impostos a quem trabalhava a terra e avolumar o financiamento à igreja, ao mesmo tempo que comprometia algumas benesses fixadas para o concelho. A juntar, havia as constantes decisões enviesadas do juiz, sempre contra os populares, sempre favoráveis à abastada elite dos tempos medievais. Às queixas do povo não dava sequer ouvidos. E as penas eram frequentemente desproporcionais face à gravidade do crime cometido.
Um dia, os mortaguenses, cansados daquele homem, que ainda por cima nem sequer era da terra, planearam uma vingança. O ataque à casa do juiz iniciou-se com o repique de um sino e uma massa de gente indignada dirigiu-se até à porta do juiz. Este, ouvindo as vozes da revolta, escapa-se pela janela das traseiras e foge até onde consegue. Mas a ribeira acaba por o encurralar. O povo de Mortágua cerca-o e agride-o violentamente, com os punhos, com as forquilas, com os cajados. É, por fim, estrangulado, sendo corpo inerte deitado ao rio.
O rei, sabendo do que se tinha passado, ordena que um delegado régio se desloque à vila para perceber quem tinha matado um homem que, afinal, fora enviado pelo monarca. O delegado, assim que chega a Mortágua, pergunta à gente da terra quem tinha assassinado o juiz de fora. A resposta que recebeu foi sempre a mesma, da miúda à velhota, do pastor ao caçador: “foi Mortágua”. E, assim, assumindo-se a responsabilidade como colectiva, ninguém na vila mortaguense foi considerado culpado.
Daí até hoje, passantes em Mortágua não hesitam em repetir a pergunta aos locais – “afinal, quem matou o juiz?”. Até há bem pouco tempo, alguns mortaguenses, talvez cansados da inquirição, levavam a interrogativa a mal e respondiam com o máximo número de insultos que uma frase permitia.
Variantes
Existe uma versão em tudo semelhante àquela acima descrita, mas mais detalhada, como é o caso do texto deixado por Tomás da Fonseca, natural do concelho de Mortágua, que afirma que o juiz de fora era um tal de João Menga.
Uma outra versão, esta substancialmente diferente, defende que o juiz de fora confrontou um fidalgo da terra e não o povo. José Viale Moutinho defende que esse homem era Gil Fernandes de Carvalho, Mestre da Ordem de Santiago e Senhor do Morgado de Carvalho. Neste caso, o juiz terá mandado castigar um moço de esporas ao cuidado de Gil Fernandes, e este, sentindo o gesto como uma afronta pessoal, ordenou que o juiz fosse, segundo Viale Moutinho, “espancado até à morte”.
Terá a Lenda do Juiz de Fora acontecido?
Há certos pormenores da Lenda do Juiz de Fora que se traduzem em factos históricos. O mais óbvio é a existência, no passado português, dos chamados juízes de fora, homens alheios ao concelho, autorizados pelo rei e munidos de poder régio para exercer alguma forma de justiça nas povoações para onde eram destacados. Um outro dado histórico que se identifica na lenda é a animosidade de que, frequentemente, estes juizes eram alvo – eram normalmente pagos com o dinheiro da própria população que vigiavam, e o povo olhava para eles como gente alógena, desconhecedora dos comportamentos locais, e portanto pouco competente para decidir acerca dos hábitos rotineiros da comunidade.
A força política em tempos medievais repartia-se, sumariamente, entre o rei (e a sua família), as casas senhoriais, e o clero. O povo, como é sabido, obedecia. Mas havia uma outra variável mais permissiva com a classe plebeia – o concelho, uma versão antiquada do actual município. Os concelhos, apoiados nas cartas de foral, gozavam de certa independência face aos três principais poderes – e tinham, até ao reinado de D. Afonso IV, os chamados juízes da terra, eleitos pela população que representavam. Problema: os juízes da terra eram acusados de não fazer cumprir a lei por serem conhecidos ou amigos ou mesmo familiares das pessoas que, supostamente, deviam penalizar. E daí a criação dos juízes de fora, eleitos pelo rei, que, sobretudo a partir do século XIV, começaram a ser enviados para administrar questões de justiça nas concelhias nacionais. Exprimiam o centralismo da monarquia, por oposição a uma certa vontade de autogestão que provinha das gentes do concelho. Não espanta, claro, que muitos fossem olhados de soslaio.
Se houve, em Mortágua, um juiz de fora que provocou de tal forma a população que esta, por sede de vingança, o decide matar, é outra história. A versão escrita por Tomás da Fonseca, atribuindo o nome de João Menga ao juiz, torna o relato verosímil. No entanto, Tomás da Fonseca era um republicano com reflexos revolucionários – foi contestatário de Sidónio Pais e, depois, de Oliveira Salazar -, e, como tal, poderá ter querido dar a uma lenda de cariz revolucionário um toque de plausibilidade.
No entanto, a Carta de Foral atribuída a Mortágua no reinado de D. Sancho I menciona, segundo a Câmara Municipal, uma pena para quem ouse matar o juiz, uma especificação que não encontramos em cartas de foral de outros concelhos e que sugere que alguma coisa se terá passado para alguém se dar ao trabalho de detalhar essa disposição. Contudo, a ter existido algum tipo de agressão ou mesmo assassinato de um juiz em Mortágua antes de esta ser beneficiada com uma carta de foral, o juiz em causa não seria de fora mas sim da terra, já que aqueles apenas foram instituídos no início do século XIV.
Mortágua – o que fazer, onde comer, onde dormir
Portugal ficará sempre em dívida com Mortágua depois de esta ter desgastado o exército napoleónico quando a Terceira Invasão Francesa chegou para tomar definitivamente o país - conhecessem os francos a Lenda do Juiz de Fora e saberiam que, neste terra, não se brinca. O confronto ocorreu na franja sul do actual concelho, comummente conhecida como Batalha do Bussaco, e ainda hoje podem ser vistos os moinhos onde Wellington, do lado inglês, e Masséna, do lado francês, descansaram e prepararam o plano de ataque. Na sede de município, um Centro de Interpretação da batalha pode também ser visitado.
Deixando o passado, outros pontos de interesse do concelho recomendáveis são o Santuário do Senhor do Mundo (o monsanto mortaguense, numa colina a sul da vila), o Santuário de Chão de Calvos (cenário onde acontece a Feira dos Calvos, em Outubro) e o belo Percurso das Quedas de Água das Paredes (um dos poucos redutos que não foi engolido pelo negócio do eucalipto).
O que não pode falhar é um faustoso almoço de Lampantana, o prato tradicional cá do burgo, a lembrar a Chanfana mas, de acordo com os mortaguenses, com ovelha em vez de cabra, e idealmente cozinhada no quase extinto barro vermelho de Gândara. A Adega dos Sabores e o restaurante A Roda servem-na com distinção. Também restaurante mas já encostado à confecção de lambarice, está o magnífico Porta 22, responsável pela saborosa Delícia de Mortágua.
Para dormir, as casinhas de madeira da Mimosa Village, afundadas entre serras, são apetecíveis. Mais impessoal, mas com piscina, temos a Casa de Santo António, bem perto da albufeira da Barragem da Aguieira, um dos melhores destinos balneares de todo o distrito de Viseu.