Festas da Cidade e da Rainha Santa Isabel

by | 14 Ago, 2024 | Beira Litoral, Festas, Julho, Províncias, Tradições

Monumentos

Natureza

Povoações

Festas

Tradições

Lendas

Insólito

Roteiros

Que todas as festas municipais de Portugal combinam religião e diversão é tão evidente que não vale a pena desenvolver muito a coisa. No entanto, poucas são as que o fazem com tanta harmonia como a da cidade-estudante. Até no nome – Festas da Cidade e da Rainha Santa. Mostram-nos logo ao que vêm, com o profano nas festas da cidade, e o sagrado nas festas da santa.

E contudo, no caso de Coimbra, há uma novidade. A componente sacra, que incorpora, sobretudo, as duas grandes procissões à Rainha Santa, só acontece de dois em dois anos, ou sendo mais específico, nos anos pares. As festividades lúdicas, por outro lado, já são anuais, ou seja, em anos pares e ímpares. Mas que não haja dúvidas, sei-o eu e qualquer gente que lá tenha posto o pé: as melhores festanças são mesmo as que integram o Divino e o popular, duas faces de uma só moeda, porque é nesses casos que se concentram os melhores concertos, que há mais diversidade de programa, e que se alcança maior público.

As procissões à Rainha Santa

Quando falamos numa Rainha Santa em Portugal, isso traduz-se pela Rainha Isabel de Aragão, mulher de D. Dinis, mãe de D. Afonso IV, avó de D. Pedro I – este último também atado ao passado romântico e trágico conimbricense por todos os lugares atribuídos a si e à sua Inês de Castro, a começar pela famosa Quinta das Lágrimas.

Ora, a Rainha Santa, cultuada um pouco por todo o país mas em especial na região Centro, com uma extensão alentejana para os lados de Estremoz por ter aí morrido, passou boa parte da sua vida em Coimbra – nada que espante, considerando que até meio do século XIII era por cá que se encontrava a corte, e mesmo depois da mudança para Lisboa as estadias da família real no actual Paço das Escolas continuaram a acontecer, sendo aí que nasceu boa parte da I Dinastia. Depois de viúva, foi nesta cidade beirã que decidiu ficar, no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, estreitando um dia a dia de contemplação, nunca esquecendo os desfavorecidos da vida, a quem dava muito do que tinha – como se consegue perceber pelo Milagre das Rosas, que sendo uma crença (aliás, uma crença que é reproduzida em termos muito semelhantes noutros países da Europa, com outros intervenientes), ilustra como nenhum dado histórico a benevolência de D. Isabel.

Foi, de resto, esse milagre que, somado a vários outros (como o do inalterado estado de preservação do corpo depois da sua morte), originou um crescente culto devocional à urna da rainha, que embora tenha finado, como antes disse, em Estremoz, rapidamente viu os seus ossos para Coimbra trasladados, na altura para o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, aquele que ajudou a fundar, e mais tarde, por causa das cheias que tal convento frequentemente sofria, transferido para uma nova tumba, desta feita no novo Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, onde agora se encontra.

Siga-nos nas Redes Sociais

A partir daí, a devoção a Isabel de Aragão não cessou. Começou como um acto popular, mas logo se apresentou reconhecido com o selo da Santa Sé assim que a sua beatificação foi confirmada, em 1516, e depois beatificada, em 1625. Entre a primeira e a segunda data, foi criada uma Confraria a si dedicada, instituição onde figuram e figuraram alguns elementos da Casa Real portuguesa e que está por trás da planeamento das antigas e das correntes procissões coimbrãs.

As romarias da Rainha Santa passaram de fenómeno local para regional, e de regional para nacional. Com a união da coroa espanhola e portuguesa, ou seja, no período filipino, o culto atravessou a península e instalou-se também em Aragão, o seu cantão de nascença.

Com os habituais trambolhões da história, como aconteceu com a implantação do Liberalismo ou, mais tarde, da República, ambos movimentos que desconfiavam de grandes manifestações de carácter religioso, a Confraria testemunhou períodos de debilidade. Convém dizer que as procissões à Rainha Santa dependem directamente da saúde financeira e anímica da Confraria, e que certos contextos menos favoráveis da última obrigaram a que, por exemplo, as romagens se tornassem um evento bienal – e não anual, como antes ocorria.

Por muita tempestade que tenha havido, a realidade é que as procissões ainda se realizam, ainda que de dois em dois anos, mas sempre em dose dupla, e com grande participação de fiéis de Coimbra e arredores.

A primeira romaria, designada como Procissão da Penitência, tem dia marcado – é numa quinta-feira, normalmente a quinta-feira a seguir ao 4 de Julho, sendo esta última a data da sua morte. A imagem da rainha – que conta já com mais de cem anos, e cuja existência muito deve a um dos mais saudosos presidentes da Confraria, o Dr. Francisco Sousa de Gomes, que com ajudas de custo vindas da Rainha D. Amélia conseguiu substituir uma velha e indigna escultura pela actual – passeia-se pelas duas margens da cidade, durante a noite, com um exército de crentes ora na esteira ora a abrir caminho à sua passagem. O ponto de partida é o seu lugar de descanso, o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, e daí segue até ao Mosteiro de Santa Cruz, por ironia aquele que mais se opôs à fundação das Irmãs Clarissas. Pelo meio, num dos momentos mais marcantes das Festas da Cidade e da Rainha Santa, o andor estanca na travessia do Mondego, junto à ponte, e aí se lança um bonito fogo-de-artifício com aparato simbólico: a explosão pirotécnica lembra um bouquet, ou por outra, desenha no negro da noite uma espécie de ramalhete de rosas, num piscar de olho ao milagre de Isabel. A escultura da rainha irá depois permanecer por três dias no mosteiro crúzio até ao dia da segunda procissão.

A segunda romaria ocorre três dias após a primeira, no Domingo, e tem o nome de Procissão Solene. Ao contrário da primeira, é organizada nas horas do sol e faz regressar a imagem da Rainha Santa Isabel ao lugar de origem. Goza da companhia das mais altas patentes conimbricenses, desde a Universidade, à autarquia, passando pelo bispado. O povo, claro, também se mobiliza em larga escala. Na Procissão solene vemos todas as conjugações de Coimbra – a fé, o comércio, os estudos.

Ambas as procissões parecem celebrar não só a padroeira da cidade mas também os ciclos, a roda do tempo, muito em concreto a chegada do Verão, que tem como um dos seus grandes anunciantes a explosão de cores que saltita das roseiras – as mesmas roseiras a que o milagre alude, pondo D. Dinis imóvel de espanto ao ver a sua mulher mostrar um molhe de rosas quando ainda corria o Inverno.

Ainda na esfera de influência da Confraria e das autoridades clericais estão dois eventos que se destacam. Um deles raramente se realiza, mas abrem-se excepções para ocasiões de excepção, como é o caso dos jubileus ou datas de igual importância: é a exibição da mão da Rainha Santa para adoração dos fiéis, e nesses anos as visitas ao mosteiro são limitadíssimas. O outro é uma recuperação de um rito antigo, o dos Casamentos da Rainha Santa, tradição em tudo idêntica à dos Casamentos de Santo António que são celebrados em Junho por Lisboa – em Coimbra, os matrimónios acontecem nos anos ímpares como forma de compensação pela falta de romarias.

Estátua da Rainha Santa Isabel junto ao Mosteiro de Santa Clara-a-Nova

Estátua da Rainha Isabel defronte do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova

Escultura da Rainha Santa Isabel

Imagem e túmulo da Rainha Santa Isabel, no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova

Fiéis nas Festas da Cidade e da Rainha Santa, Coimbra

Mosteiro de Santa Clara-a-Nova em dia de festa

A festa profana

O âmago das Festas da Cidade e da Rainha Santa Isabel era o Jardim da Sereia. O seu crescimento, sobretudo na componente musical, obrigou a uma expansão para outros pontos de Coimbra, uns mais óbvios do que outros. Anuncio apenas alguns dos sítios por onde já passou o certame para se perceber a dimensão da grande comemoração popular coimbrã: a Feira Popular, montada na margem esquerda do Mondego; o Parque Verde do Mondego, na margem direita; a Sé Nova e a Sé Velha, ambas na Alta da cidade; a Rua da Sofia e seus anexos, como a Praça 8 de Maio ou o Terreiro da Erva ou o Café Santa Cruz, todos na Baixa; o Largo do Romal e a Praça da República; o Museu Municipal, a Casa Museu Miguel Torga, o Museu Nacional Machado de Castro; o Teatro Académico de Gil Vicente; o Jardim da Casa da Escrita; a Praia de Torres do Mondego; a Quinta das Lágrimas; a Câmara Municipal; a Casa da Mutualidade; o Posto de Turismo; o Centro Hípico…

O programa dispersa-se por dezenas de áreas, com um enfoque maior na música – além do inevitável Fado de Coimbra e da música sacra que enche as igrejas, aqui não faltam os grandes nomes da pop nacional, a lembrar que as Festas da Cidade são suportadas por orçamentos generosos (em 2012 até se conseguiu encaixar a actuação de Madonna no Estádio Cidade de Coimbra para a abertura do festim). O fogo de artifício, sempre um belo espectáculo à beira rio, é guardado para o dia da santa, 4 de Julho, e para a já mencionada Procissão da Penitência. Há também Feira de Artesanato com honrosa preocupação pelo produto regional. Aqui e ali surgem exposições, colóquios e rotas turísticas de diversas temáticas mas onde a vida e o legado de Isabel de Aragão são geralmente seleccionados como tópico principal. No desporto temos escolhas que variam consoante o ano, mas desde ralis a ciclismo, ou bridge, ou golf, ou hipismo, ou pesca, ou paraquedismo, ou ginástica, ou kayak, ou natação, tudo e mais alguma coisa se praticou durante a ocasião. E os workshops, e o cinema, e as visitas guiadas…

Se por acaso conseguirmos fazer um checkup a somente um terço do repertório das Festas da Cidade e da Rainha Santa, isso será suficiente para de lá sairmos com a sensação de que toda a pólis conimbricense foi conhecida, estudada e assimilada em pleno. É raro ter uma celebração municipal que consiga cobrir tanto da cultura endémica, e ainda mais invulgar o fenómeno se torna se atendermos à escala da terra em questão, que no caso é uma das maiores urbanizações do país e, por sinal, aquela que podemos considerar como a primeira capital portuguesa (ou segunda, se contarmos com Guimarães como capital condal). Nem Lisboa, nem o Porto, têm algo assim, tão irrestrito. Em Coimbra, as Festas da Cidade são mesmo de toda a cidade – apanham tudo, e ai de quem sugira deixar alguma ponta solta.

A fotografia de capa deste artigo foi gentilmente cedida por Arménio Correia e pode ser vista aqui.

Torre da Universidade e Paços das Escolas

Coimbra

Um curto roteiro histórico com o melhor de Coimbra. Surpreendentes destinos, saborosos repastos, sossegadas dormidas.

Promoções para dormidas em Coimbra

Mapa

Coordenadas de GPS: lat=40.20948 ; lon=-8.41834

Siga-nos nas Redes Sociais