Torre de Centum Cellas

by | 27 Nov, 2021 | Beira Baixa, Insólito, Lendas, Províncias

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Quem sai de Belmonte pela Nacional 18, para norte, em direcção à Guarda, deve obrigatoriamente parar a meio do caminho para ver, nem que seja de longe, a torre de Centum Cellas, um improvável monumento em solo ibérico cujas linhas nos atiram para a arquitectura pré-colombiana da América do Sul.

Situa-se num socaldo recortado no sopé da vertente sul do Monte de Santo Antão, em Colmeal da Torre, e toma proveito da feraz confluência de dois rios: o rio Zêzere, que dispensa apresentações, e a ribeira de Gaia. É Monumento Nacional há já quase cem anos.

A torre

A Torre de Centum Cellas ganhou vários nomes – além do mencionado, também é conhecida por Centocelas, Cento Celas, ou mesmo Torre de São Cornélio, este último derivado de uma crença popular a que já iremos adiante.

Com nascimento no século I d.C., somos levados a crer, até pela mudança de corte na pedra, que era composta por dois pisos na sua versão original, aos quais se acrescentou um hipotético terceiro piso numa outra época. Que época foi essa discute-se – talvez no século III, quando a torre e a sua envolvente foram vítimas de um devastador incêndio e novas obras lhe acrescentaram renovada feição; ou talvez por épocas medievas, havendo quem defenda uma eventual participação visigótica.

Será precisamente o incompleto terceiro piso de que acabámos de falar, com os seus vãos abertos na parte de cima, em conjunto com os vãos recortados geometricamente nos dois primeiros pisos, que nos faz relacionar Centum Cellas com certas construções Incas ou Maias. No entanto, sabemos hoje, graças a trabalhos arqueológicos desenvolvidos sobretudo na década de 1990, que a Torre de Centum Cellas não deve ser olhada isoladamente, já que é apenas um pedaço de algo bem maior. À sua volta encontram-se ruínas daquilo que se presumem ser corredores, salas, e armazéns. Algumas ruínas ficaram por descobrir e dificilmente ainda existirão.

Dos dois pisos que conseguimos distinguir, defende-se que o primeiro seria onde a vida social acontecia, o salão nobre, por assim dizer. O piso térreo serviria de arrecadação.

Sendo evidente a sua unicidade, pelo menos na península (existe um Centcelles na Catalunha, mas de muito diferente estética), há muitos que a comparam à Torre das Águias (ou Torre de Almofala), na Beira Alta.

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Qual a função de Centum Cellas?

Durante muito tempo, a indagação acerca da função desta invulgar torre foi a million dollar question para etnógrafos, arqueólogos, historiadores e curiosos. Até certo ponto, ainda é, embora os trabalhos de arqueologia desenvolvidos nos últimos trinta anos tenham apagado boa parte do mistério.

Das teorias mais fundadas às mais fantasiosas, tudo esteve em cima da mesa.

Achou-se ser uma espécie de torre de menagem ou de vigia de um acampamento romano e, de facto, talvez tenha tido um propósito militar algures na sua história, mas não terá sido essa a motivação para ser construída em primeiro lugar.

Houve também quem a identificasse como um templo, ou no mínimo um posto de observação astronómico. A teoria baseia-se no facto dos vértices da planta da torre coincidirem com os pontos cardeais. Sendo verdade que coincidem, o mesmo acontece com outras edificações à sua volta, como o larário de devoção aos Deuses, situado a oriente. Na realidade, quase todo o complexo está orientado nesse sentido, o que retira a ideia de sacralização particular da torre.

Para outros, tratava-se de uma prisão, tendo em conta o nome com que é habitualmente tratada: Centum Cellas, ou seja, a torre das cento celas. Esta hipótese vai buscar mais à tradição oral do que aos trabalhos historiográficos e falaremos dela um pouco mais à frente. De qualquer forma, o latim cella não tem uma correspondência directa para cela prisional, mas sim para cela enquanto pequeno quarto.

Alternativas de tendências mais ocultas chegaram a ser faladas: talvez, dada a sua estética orientalizante, tenham sido judeus sefarditas a edificá-la – afinal, Belmonte, a terra do cripto-judaísmo, está mesmo aqui ao lado. Ou até egípcios. Ou gregos. Ou mesmo, veja-se, Incas ou Maias, e aqui já entramos nos mitos da Atlântida, que defendem que o seu povo insular debandou para o ocidente europeu e para a américa central depois da ilha ser engolida pelo oceano.

Também veio à baila a ideia de ter existido aqui um albergue, ideia reforçada por este ser um poiso apropriado para quem seguia a estrada que ligava Mérida a Braga. De todas as especulações feitas, esta parecia-me a mais verosímil… até chegar Helena Frade para desmistificar tudo o que já havia sido dito.

Na última década do século XX os resultados de um profundo trabalho arqueológico parecem ser transparentes. A torre de Centum Cellas seria o espaço central e quotidiano de uma villae, isto é, de uma casa de campo romana. O afortunado romano que teria feito as malas para cá viver chamava-se Lucius Caecilius e a razão da escolha do lugar estaria relacionada com a cassiterite existente nos rios aqui presentes, de onde se extrairia o estanho para produção de material militar, entre outras coisas. A torre, pela força da pedra com que foi feita, manteve-se por dois mil anos, ao contrário das restantes divisões da casa que se foram arruinando ou, em certos casos, substituídas por novos edifícios.

Posteriormente, é certo que todo o espaço foi revivido para diferentes propósitos. Em tempos medievais sabemos que lhe foi dada importância: houve um foral entregue por D. Sancho referenciando Centucelli; várias sepulturas medievas podem ser vistas na zona do pátio, a norte da torre; e uma capela foi levantada, dedicada a São Cornélio, cujas fundações ainda são visíveis.

Ainda assim, há quem não esteja convencido quanto à real utilidade da torre e da suposta villae de Centum Cellas – no vasto mundo da internet, é fácil darmos com opiniões discordantes das que foram apresentadas pelos arqueólogos. As teorias continuam a surgir. Mais escavações estão previstas num futuro bem próximo, bem como a criação de um centro interpretativo a dez passos da torre que terá a hercúlea tarefa de apresentar todas as explicações já ouvidas. Veremos que mais surpresas daqui saem.

As lendas de Centum Cellas

Claro que um sítio destes, enigmático, misterioso, fantasmagórico, não escapou à imaginação popular. São diversas as lendas relatadas sobre o complexo, e em particular sobre a torre.

Uma delas defende, muito sucintamente, que Centum Cellas terá sido levantada por uma mãe com o seu filho às costas. Estamos perante uma narrativa que alude a um ser mágico da Beira Alta e de Trás-os-Montes, a Almajona (ou Almazona), mulheres muito altas que trazem crianças às cavalitas.

Outra versa sobre um bezerro de ouro que terá sido deixado (ou escondido) junto à entrada da torre, e que ainda hoje lá se encontra. O bezerro, e em específico o bezerro de ouro, representa a riqueza – “é o Deus dos bens materiais posto no lugar do Deus do espírito”, segundo Chevalier. Remete-nos a lenda do bezerro escondido para uma eventual ostentação ligada à torre de Centum Cellas?

E ainda outra parte do pressuposto de que aqui estaria uma enorme prisão onde São Cornélio viveu enquanto recluso, sublinhando para isso o nome por que é conhecida: Centum Cellas, isto é, Cem Celas. Daí se explica que, mais tarde, a capela aqui construída se chamasse Capela de São Cornélio. Em relação a esta crença, trata-se essencialmente de uma transposição de uma realidade estrangeira para o lendário português. São Cornélio morreu, de facto, num porto situado na região do Lázio com o nome, à altura, de Centum Cellae – actualmente conhecido por Civitavecchia, como aqui se pode ler. A errónea transição do Centum Cellae romano para a Centum Cellas portuguesa aconteceu algures na transmissão de conhecimento oral, e assim o povo passou a acreditar que o bem aventurado Cornélio, Papa por apenas dois anos, morreu cá.

Belmonte – o que fazer, onde comer, onde dormir

Situado na raia mágica beirã, Belmonte é o concelho mais a norte do distrito de Castelo Branco. Famoso pela sua cultura criptojudaica, resultado da perseguição de que os seus judeus sefarditas foram alvo, a vila tem hoje uma das mais activas comunidades judias do país. As suas festas, como a Festa das Luzes ou a Festa de Nossa Senhora da Esperança, em Dezembro e Abril, respectivamente, e os seus monumentos e museus, como a menorá, a sinagoga ou o Museu Judaico de Belmonte, reflectem essa ligação a um passado real mas escondido.

Ainda na vila, não podemos perder o castelo e a Igreja de Santiago, a judiaria circundante, bem como os restantes espaços museológicos (que são muitos e bons, tendo em conta a dimensão de Belmonte): o Museu dos Descobrimentos, o Museu do Azeite, e o Ecomuseu do Zêzere.

Fora da sede de concelho e de visita imperativa é o enigmático Centum Cellas, monumento que não encontra paralelo no país, nem na península, e que mais facilmente associamos a civilizações sul americanas, de origem pré-colombiana, transportando-nos para os mitos da Atlântida.

Para dormir, sugere-se a Pousada Convento de Belmonte, cuja piscina nos dá uma das melhores fotografias sobre a Estrela, ou a Casa Marias, bem situada e muito aconchegante. Na restauração, recomendam-se vivamente a Casa do Castelo (o borrego e o cabrito são demasiado bons para os dispensarmos) e, para quem está disposto a gastar um pouco mais, e o Convento de Belmonte Gourmet (cozinha de chef, na companhia de lareira e de uma bela vista de montanha).

Para mais dormidas no concelho de Belmonte, ver caixa de promoções em baixo:

Mapa

Coordenadas de GPS: lat=40.37765; lon=-7.34273

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