Portugal dos Pequenitos
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Dirão alguns que foi um projecto propagandístico do Estado Novo, e não estão errados. Outros que se tratou de uma realização pessoal de um homem de causas, e também não se enganam. A trupe das artes cá reconhece genialidade na arquitectura e no desenho dos volumes, com razão. E do meu lado, acrescento que nenhum espaço em Portugal consegue pôr as crianças a brincar como se fossem adultos, e os adultos a brincar como se fossem crianças, por gerações a fio, sem sequer darmos por isso. Lá fomos enquanto filhos, lá retornamos enquanto pais. E com isto, o parque-jardim-museu do Portugal dos Pequenitos vai lançado a caminho dos cem anos.
Um trio improvável
Para entender a obra de décadas que foi (e ainda é – porque novos investimentos foram feitos já no século XXI) o Portugal dos Pequenitos é preciso penetrar no sentimento de três personalidades capitais do século XX português: Oliveira Salazar, Presidente do Conselho e homem que ditava os destinos materiais e espirituais de Portugal; Bissaya Barreto, médico e matemático e maçon que dedicou a maior parte da sua vida à promoção de acções sociais na sua Beira Litoral, mormente na área da saúde; e Cassiano Branco, arquitecto que traçou paradigmas do modernismo luso como o Cinema Éden, o Coliseu do Porto, o Grande Hotel do Luso.
Oliveira Salazar explica o tempo em que o Portugal dos Pequenitos surgiu, Bissaya Barreto justifica a cidade onde ele se encontra, e Cassiano Branco ajuda a compreender o espaço e os volumes que aqui observamos. Dito assim, parece que os três absorviam o mesmo sistema de valores ou, até, que partilhavam uma amizade. De todo. Se Salazar e Bissaya Barreto eram aquilo que se pode considerar amigos – tendo em conta o mútuo passado como estudantes de Coimbra, bem como a frequência com que se encontravam, e descontando a discordância que tinham em determinadas matérias, como a do republicanismo militante do segundo face à simpatia monárquica do primeiro -, já Cassiano Branco desprezava Salazar, cujo gosto provinciano pela ruralidade batia de frente no cosmopolitismo do arquitecto, isto para não ir aos métodos despóticos do ditador português que levaram Cassiano a apoiar o candidato a presidente Humberto Delgado, escolha que lhe valeu a prisão.
Contudo, da improvável comunhão entre o Portugal salazarista, o empreendedorismo filantropo de Bissaya Barreto, e o génio artístico de Cassiano Branco, fez-se um espaço infantil, para muitos considerado o primeiro parque temático nacional e um dos primeiros internacionais, que, contra certas expectativas, sobreviveu ao teste do tempo – o que é particularmente meritório tendo em conta o contexto político em que nasceu, onde valia a defesa de um Portugal virado para o mar, civilizador de mundos, e o contexto político actual, de um Portugal continental, de costas para o Atlântico, membro da União Europeia.
Da primeira pedra à nova casa de xisto
O professor e médico Bissaya Barreto nasceu em Castanheira de Pêra e estudou em Coimbra. Era, como tal, um beirão de gema, e quem quiser conhecê-lo a fundo pode ir à sua velha residência, situada junto ao Jardim Botânico coimbrão, agora transformada em espaço museológico. Desenvolveu, ao longo da sua carreira, longa obra de cariz social, com enfoque na zona Centro do país, boa parte dela dedicada aos miúdos mais desfavorecidos, como foi o caso das Casas da Criança. A primeira Casa da Criança que criou foi em Coimbra, do lado de Santa Clara, e teve nome dedicado à Rainha Santa Isabel, para não variar. Terminada em 1939, abriu a 12 de Julho de 1940. Em complemento à casa, Bissaya Barreto planeou também um jardim que ele veria como uma sala de aula a céu aberto, um jardim “lúdico-pedagógico”, onde os gaiatos pudessem brincar e aprender ao mesmo tempo: a ele se daria o nome de Portugal dos Pequenitos.
Sob os conceitos balizados por Raul Lino como definidores da dita casa portuguesa, que tão eloquentemente explica no seu livro “A nossa casa – Apontamentos sobre o bom gosto na construção de casas simples“, Bissaya Barreto idealiza o parque como reflexo de um Portugal rural e tradicional, mas também imperial e ultramarino. Em suma, o Portugal como o idealizou Salazar, de quem, como já disse, era amigo. Para isso contratou Cassiano Branco, um arquitecto de fino traço, inovador e modernista, que muitos entenderiam como oposto à ideia chave do jardim conceptual, mas que esteve, neste mesmo período, responsável pela estruturação da grande Exposição do Mundo Português, uma majestosa montra do país colonial, apresentada quando praticamente toda a Europa central se encontrava em guerra.
Que Cassiano Branco – envolvido num projecto do conservador Bissaya Barreto, fomentado pelo ditador Oliveira Salazar, e conceptualizado com base no pensamento tradicionalista de Raul Lino -, era a ovelha negra do rebanho, não parece ser questão sequer discutível. As opiniões sobre o porquê do arquitecto aceder ao pedido dividem-se. Uns dizem que se tratava de fazer pela vida. Outros que, assumindo o trabalho como seu, Cassiano Branco entregou-lhe uma pitada de ironia, como que a caricaturar o modelo da casa feliz portuguesa. Há opiniões que entendem que Cassiano Branco aceitou a proposta como via para contar a história da arquitectura portuguesa. E temos ainda alguns que juram que o arquitecto adorou o projecto, entregando-se a ele como a nenhum outro. É possível uma quinta hipótese que mistura um pouco de tudo isto.
Certo é que o empreendimento foi para a frente. A partir de 1938, Cassiano Branco executou protótipos da casa regional portuguesa enquanto Bissaya Barreto mantinha olhar atento sobre os mesmos – sabemos que alguns esboços originais, de recorte minimal, foram posteriormente alterados, de modo a ficarem mais gráficos, por certo que por ordem do filantropo de Castanheira de Pêra. Esta seria considerada a primeira fase da obra, que abarca o segmento actualmente situado mais a sul do parque, dedicado ao Portugal Regional. A sua estreia aconteceu no mesmo ano de abertura da Casa da Criança Rainha Santa Isabel, na verdade até um mês mais cedo do que esta, a 8 de Junho de 1940. Sucedeu-se a segunda fase, correspondente à fábrica do Portugal Monumental, ou seja, à réplica a menor escala de elementos sacados aos mais icónicos monumentos nacionais. E por fim, a terceira fase, concluída em 1962, na qual se desenvolveram os volumes dedicados às colónias (agora ex-colónias), de maior dimensão, onde se incorporaram espaços de exposição com informação, objectos e arte retirados a cada cantão do Portugal de Além-Mar – neste segmento incorporaram-se as correntes regiões autónomas. No total, entre 1938 e 1962, somaram-se vinte e quatro anos de trabalho: a obra de uma vida, portanto, tanto para Bissaya Barreto como para Cassiano Branco.
Depois disso, já num contexto pós 1974, o parque do Portugal dos Pequenitos tem vindo a receber alguns ajustes e periódicas requalificações, novas casas (como a Casa do Xisto), frequentes exposições (Joana Vasconcelos apresentou um bule em ferro dimensionado para a miudagem que por cá se mantém com a designação de Casa de Chá), e um vasto programa para o público infantil e juvenil (como peças de teatro, visitas guiadas, sessões de leitura). Um lugar de basto dinamismo que tem conseguido contrapor a reaccionária imagem que lhe ficou associada desde o berço.
Casa do Monte Alentejano, símbolo do latifúndio sulista
A Casa de Amarante em miniatura
Nem as superstições se esqueceram: aqui uma alminha numa casa ribatejana
As regiões, os monumentos, as ex-colónias
A área dedicada ao Portugal Regional fica na ponta sul do jardim, onde antes existia a primitiva entrada. Sendo a actual admissão do lado oposto, essa secção é agora a última a ser visitada. O percurso, assim, faz-se em sentido oposto ao da cronologia da construção do parque. Começa nas colónias, o segmento que teve edificação mais recente, e termina nas casotas das velhas províncias portuguesas, o eixo mais velho do empreendimento.
Para tentar descrever o roteiro tal e qual é feito, irei seguir a orientação norte-sul, ou seja, começando no Império, aquele que, à excepão do Brasil, existia na abertura do Portugal dos Pequenitos, e que foi praticamente abolido com a Revolução de 1974, até enfim terminar com a cedência de Macau em 1999. Inclui Brasil, Angola, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Índia, Timor, Macau. Esta secção pode ser catalogada como museológica, dado que em cada ex-colónia é explorada a sua riqueza etnográfica – a título exemplificativo, na Índia projectam-se os cheiros das especiarias, na Guiné promove-se a cultura do caju, em Macau afirma-se o pagode oriental. Actualmente, cada uma destas casas está cercada por flora autóctone. Ao centro, como núcleo genealógico, vemos a Capela das Missões, veículo de evangelização do Novo Mundo.
A intercalar a passagem entre o Portugal de Além-Mar e o Portugal Monumental, passamos por um curto corredor atravessado por uma via onde, à direita, vemos o bloco dedicado à ilha da Madeira, e à esquerda, o dedicado à ilha dos Açores. O cruzamento que articula os acessos entre as ex-colónias e os monumentos portugueses, e que ao mesmo tempo comunica para os espaços das actuais regiões autónomas esconde um desenho que só em planta é evidente: forma a mítica cruz de Cristo, insígnia da Ordem de Cristo que marcou as caravelas portuguesas da epopeia quinhentista. Outro pormenor que poderá escapar aos visitantes apressados: os pavilhões da Madeira e dos Açores estão cercados de água, numa alusão ao seu carácter insular, e de flora típica da jardinagem de cada terra (estrelícias no caso madeirense, hortênsias no açoriano).
Em escala maior do que o casario regional, a Capela das Missões medeia o espaço das ex-colónias
As ilhas, neste caso a dos Açores, estão envolvidas por lagos que reafirmam o seu carácter insular
O culto dos heróis das Descobertas como parte da narrativa propagandística do Estado Novo
Antes de chegarmos à próxima etapa, um muro separador exibe um mapa com as rotas das naus das Descobertas. Ao lado, a estátua do Infante Dom Henrique, visto como o motor da grande empresa que foi o Portugal ultramarino, como se pode comprovar num outro monumento do Estado Novo, o Padrão dos Descobrimentos, edificado por ocasião da coeva Exposição do Mundo Português em que Cassiano Branco esteve também envolvido, e onde o Infante se encontra como destacada figura de proa.
Segue-se então o Portugal Monumental, lugar de reprodução dos incontornáveis edifícios históricos nacionais, onde se dá especial destaque a Lisboa (como capital de Portugal e também como antiga capital do Império) e a Coimbra (como hospedeira do parque), mas também às restantes províncias de Portugal Continental. Esta é, talvez, a mais fantasiosa parte de todo o jardim. Cassiano Branco desmontou e tornou a montar partes caracterizadoras de cada monumento e juntou-as em volumes comuns, num resultado tão insólito que aproxima as peças do surrealismo da década de 1920. Exemplifique-se: na parte dedicada a Lisboa temos, num só bloco, a cobertura do Teatro Nacional D. Maria II, a fachada dos prédios da Baixa Pombalina, o arco que inicia a Rua Augusta, a torre do Castelo de São Jorge, o decoro manuelino dos Jerónimos, o baluarte da Torre de Belém, as saliências afiadas da Casa dos Bicos, e a atalaia da Sé de Lisboa. Coimbra segue o mesmo caminho e engole referências arquitectónicas do Paço das Escolas, do Paço Episcopal (agora Museu Nacional Machado de Castro), da Sé Velha, do Mosteiro de Santa Cruz, de Santa Clara-a-Nova e de Santa Clara-a-Velha, bem como de mais de uma dezena de monumentos conimbricenses. O que há a mais em Coimbra e Lisboa, poderão alguns argumentar que há a menos de outras cidades – o Porto, injustamente, tem apenas um seu representante, a Torre dos Clérigos, menos do que Braga, que conta com dois, o chafariz e a Casa dos Coimbras, já de si pouco tendo em conta a riqueza da cidade minhota.
Torre de Belém, Jerónimos, Rua Augusta, Castelo de São Jorge – a capital tem lugar de destaque no Portugal dos Pequenitos
Os mais iconográficos monumentos do Paço das Escolas: a Via Latina, a Torre da Universidade, a porta da Capela de São Miguel
O Paço Episcopal e a Torre de Santa Cruz no polo coimbrense
Passado o Portugal Monumental, e anotando mais um apontamento histórico (e propagandístico, admita-se) que é a estátua ao fundador Dom Afonso Henriques em pose de guerra e a cavalo, chegamos ao paraíso da criançada – sei-o eu, enquanto filho e enquanto pai. Para os mais pequenos, o que até aí se visitou podia ser uma mera antecâmara do que realmente importa, que é isto, o casario do Portugal Regional, montado para uma audiência entre os cinco e os dez anos, e tido como uma cidade de gente pequena que condensa todas as variantes do lar português, de norte a sul.
Não vem para o caso, mas em jeito de confissão, não sei se por saudosismo, se por provincianismo, este é também o sítio onde me sinto mais acolhido. O trabalho de Cassiano Branco, tendo ou não laivos de exagero caricatural, montou uma aldeia prodigiosa e intemporal, por muito anacrónica que seja para os críticos da arquitectura popular ou tradicional. Este escriba tem uma predilecção pelo Norte e Centro-Norte, das aldeias do xisto aos solares minhotos e durienses e beirões, da casa transmontana que guardava o gado à azenha que fazia da água uma espécie de electricidade. Para quem prefere o Sul ou Centro-Sul, há material suficiente para admirar: a casa algarvia de chaminé ornamentada, a alvura da casa do monte alentejano, a luminosa casa senhorial alfacinha, ou a moradia da lezíria ribatejana.
Às casas ditas regionais, acumulam-se outras ligadas a determinadas profissões, bem como alguns elementos característicos da paisagem portuguesa, como a anta megalítica, o castelo medieval, o poço de água. Temos também nova homenagem à Beira de Bissaya Barreto com a representação das minhas de carvão do Cabo Mondego. Tanto em tão pouco espaço, só mesmo obedecendo ao tamanho da garotada.
A cidade das crianças
D. Afonso Henriqes, o pai da nação lusa a articular o espaço entre o Portugal Monumental e o Portugal Regional
As Minas do Cabo Mondego de onde se extraía o carvão
A castiça casa transmontana, onde a parte inferior guardava o gado que aquecia a superior
A Casa Senhorial do Douro é maior do que o restante casario
Promoções para dormidas em Coimbra
Mapa
Coordenadas de GPS: lat=40.20229 ; lon=-8.43438