Queima das Fitas – Entrevista ao Dux Matias Correia
Monumentos
Natureza
Povoações
Festas
Tradições
Lendas
Insólito
Roteiros
Se Coimbra é a cidade dos estudantes, e se a Queima das Fitas se apresenta como a grande festa académica onde os discentes se despedem do ano lectivo, é conclusão lógica que a Queima das Fitas se queira assumir como a grande festa da cidade. Apenas as Festas da Rainha Santa Isabel, sobre as quais já por aqui versei, e que por acaso acontecem a seguir à da Queima, se comparam em prestígio e em dimensão, com a ressalva de terem uma origem sobretudo religiosa, acompanhadas pelo inevitável programa profano. Poderia sempre alegar acerca de uma dimensão Divina na Queima das Fitas, apontada a Baco ou às Saturnais romanas em detrimento do catolicismo, mas estaria a ser injusto com os organizadores, que trabalham a fundo num evento que é bem mais do que uma borracheira.
Para falar um pouco sobre aquele que é, para caloiros e veteranos, o principal evento estudantil conimbricense, fui conversar com o actual Dux Veteranorum da Universidade de Coimbra, Matias Correia, que amigavelmente me recebeu no Pólo II.
Trouxe comigo uma lista de perguntas mas não temos de seguir esta ordem, nem sequer estas perguntas. Se calhar até começo pela minha experiência pessoal. Eu próprio já fui à Queima das Fitas de Coimbra duas vezes. Uma como estudante. E outra mais tarde quando já trabalhava.
Quando é que foi enquanto estudante?
Deve ter sido por 2003 ou 2004…
Pronto, é que a festa evoluiu bastante. 2003 ou 2004 é pré Bolonha.
Certo. E a segunda vez, em que já não era estudante, deve ter sido por volta de 2014. Tive duas experiências muito diferentes. Eu adorei cá vir como estudante. E a segunda vez que vim, há cerca de dez anos, já não tive a mesma sensação…
Veio com uma visão diferente.
Sim. Via-me quase como um outsider. Não estava trajado, ao contrário da primeira vez. É comum este choque de percepções?
Sim, esse sentimento é natural. É a diferença entre virmos estando dentro da mesma classe que os de cá. Veio como estudante. Assumo que não tenha vindo sozinho e que tenha vindo com amigos e que esses amigos também eram estudantes. As expectativas são outras. Depois quando volta, passados cinco ou seis anos, a mística já desapareceu. Sente-se do lado de fora. E depois temos isto das modas. As modas jovens mudam muito rápido. O cortejo a que foi em 2004 é completamente diferente daquele que viu em 2014, e este é completamente diferente do cortejo de 2024.
Em 2004, por exemplo, ainda se usavam garrafas de vidro. As pessoas queixavam-se muito. Havia lixo de vidro deixado pelas ruas. Era problemático. Havia acidentes, pessoas cortadas… Proibiram-se as garrafas e agora temos as latas. E as latas trouxeram a novidade dos banhos de cerveja. Os banhos de cerveja são uma coisa recente, mas em 2014 já deve ter apanhado.
E o que é o banho de cerveja?
É o efeito de champanhe que os alunos fazem quando agitam as latas e depois as abrem. É uma tradição nova. Não a podemos considerar uma tradição histórica de Coimbra. Isto são modas que vão aparecendo e que mudam a Queima de um ano para o outro. Quando me tornei Dux Veteranorum em 2019, essa moda já estava muito enraizada e pouco pude fazer quanto a isso. Isto para lhe dizer que entre 2004 e 2014 as Queimas são bem distintas. O processo de Bolonha também veio mexer com as coisas. [Antes] era normal termos por cá os veteranos, veteraníssimos, os tais dinossauros, com mais de quinze matriculas. Eu sou um pequeno dinossauro porque só tenho doze – e entrei para Dux com oito matriculas, tinha muita gente no Conselho de Veteranos que era bem mais velha do que eu. Quando se começou a implementar Bolonha, a malta começou a completar os cursos mais cedo, em três anos ou cinco anos.
Digo-o para lhe mostrar que os veteranos [antes de Bolonha] tinham uma maturidade diferente. A partir de Bolonha faltaram esses veteranos mais velhos para supervisionarem o cortejo e dizerem aos mais novos “epá, não faças isso”. A malta ficou mais liberal a nível do comportamento. Vou dar-lhe outro exemplo de uma coisa que me faz muita impressão hoje: se olharmos para os cortejos de 2004 ainda vemos todos os alunos vestidos com Capa e Batina lá em cima com as fitas a abanar e agora os alunos não querem levar fitas porque entendem que assim não conseguem fazer o banho de cerveja – isto para nós é o pior que pode acontecer porque é negar a tradição.
Ou seja, dez anos é muito tempo. Mesmo quem veio em 2014 e vem outra vez agora vai notar. É esse cliché de se pensar “no meu tempo é que era”. Quase todos temos isso. É natural. Por exemplo, eu, claro, estou ligado à praxe, e há comportamentos que eu vejo que para mim, neste momento, não fazem sentido. Esse sentimento que teve entre 2004 e 2014 é comum. É geracional. Nós gostamos do antigamente mas também temos de compreender estas evoluções. Se de 2004 para 2014 houve uma transição do pré Bolonha para o pós Bolonha, agora há outra, que é o pré Covid e o pós Covid. O covid foi um grande choque comportamental.
Durante a pandemia, foi só um ano em que não houve Queima das Fitas?
Sim.
E já agora, porque estava a falar das fitas, vemos desmistificar um bocadinho. Não são as fitas que são queimadas…
Exactamente, não são. As fitas que dão nome à festa são muito antigas, do início do século XX. Eram fitas propriamente ditas – não havia mochilas, isso é uma modernidade, mesmo as malas de cabedal eram um luxo -, portanto os alunos usavam sebentas com folhas soltas e atavam as folhas com essas fitas que tinham cores consoante a faculdade. Quando os estudantes entravam no último ano, sobretudo os dos cursos de direito e medicina que eram anos muito práticos, já não precisavam das sebentas. Passavam então as sebentas de geração em geração – também era uma coisa muito venerada cá em Coimbra, a santa sebenta. E as fitas eram queimadas – essas sim, eram queimadas, e estou a falar de 1910, 1915, 1920.
Depois houve outra tradição que começou a aparecer, a das fitas da pasta, uma tradição mais ou menos paralela à anterior e que confunde as pessoas porque tem o mesmo nome. Também são fitas, mas diferentes. São as que nós damos aos estudantes para assinar, de várias cores [em representação] das faculdades. Essas fitas não se queimam, os estudantes usam-nas mas não as queimam. O que se queima é o grelo.
E o que é o grelo?
O grelo é uma fita de algodão que se usa em volta da pasta. Vem em substituição das antigas fitas quando se deixou de usar sebentas e se passou a usar pasta. As [antigas] fitas deixaram de ter uso porque já não era preciso atar os apontamentos. Mas a malta queria na mesma participar na tradição da queima.
Surgiram então essas outras fitas para assinarmos, que são de cetim, e o grelo, que é de algodão. O grelo, como é para gastar e queimar, é barato. Aliás, muitas vezes até eram as avós que faziam os grelos aos estudantes. Esse grelo é que é hoje queimado.
O cortejo a que foi em 2004 é completamente diferente daquele que viu em 2014, e este é completamente diferente do cortejo de 2024.
Então as fitas actualmente servem como identificação da faculdade do estudante…
Mais do que isso: as fitas servem para identificar o mérito académico do estudante.
Indo à praxe, e eu falo apenas da parte da praxe coimbrã, que tem raízes diferentes de outras, há uma componente normalizadora: a Capa e Batina é igual para todos os estudantes, é um uniforme, e é um uniforme etnográfico, como forma de representar uma classe. A Capa e Batina aqui em Coimbra não era só o traje da Universidade. Os liceus também usavam Capa e Batina. O objectivo da Capa e Batina era uniformizar os estudantes. Uma pessoa de fora que não me conheça não consegue distinguir o Dux Veteranorum do caloiro. A ideia da Capa e Batina é que, para dentro e para fora, os estudantes sejam vistos como iguais, todos parte da mesma classe, que é a classe estudante. No entanto existem as insígnias, e é através das insígnias que nós nos podemos demonstrar, e demonstramo-nos pelo mérito académico. Aqui entram as fitas. Só usa as fitas quem está a terminar o curso. Quem está de fitas mostra que está a acabar o curso.
Está no quarto ou quinto ano…
Bolonha veio estragar um pouco as contas. Agora há cursos de três anos. Mas sim, quem ia para o quinto ano, no quarto ano queimava o grelo e durante o quinto ano usava as fitas.
E usava onde?
Na pasta. Eu hoje tirei as minhas porque agora também dou aulas, sou professor aqui e hoje foi a minha primeira aula prática, mas ainda estava com as fitas na pasta desde a Queima.
Mas voltando ao mérito académico, as fitas são então o único meio que o aluno tem de se distinguir. Não é através do dinheiro. Era isto que a praxe permitia. A praxe só permite que um aluno se distinga pelo mérito académico e o mérito académico é alcançado quando se está a terminar o curso. Depois podemos personalizar as fitas com as assinaturas da família, dos pais, dos professores…
O cortejo [da Queima das Fitas] representa isso: o dia em que os fitados podem dizer ao público e à cidade que são finalistas, é um grito de uma geração. As fitas são, portanto, a única medalha que nós podemos usar porque o seu uso depende apenas de nós, de sermos ou não um bom estudante.
Dux Matias Correia em Traje de Gala, na Queima das Fitas
Por acaso, agora que estamos a falar do Traje Académico – e eu escrevi sobre ele ainda este mês -, esclareça-me uma dúvida com que fiquei… A condição para se usar a Capa e Batina é ser estudante. Ou seja, no caso de Coimbra, é estar matriculado na Universidade de Coimbra. Contudo, parece haver uma espécie de costume de pôr os caloiros a usarem o traje apenas no final do ano lectivo, aquando do primeiro dia da Queima das Fitas, isto é, na Serenata Monumental… Afinal quando é que um caloiro pode trajar? Pode fazê-lo mal seja formalizada a matricula? Ou há uma consciência dos caloiros de trajar apenas quando chega a Queima?
Na tradição histórica coimbrã, o caloiro pode logo usar Capa e Batina. O que sucedeu é que, apesar do Código de Praxe nunca ter colocado entraves ao seu uso, começou a adiar-se a estreia da Capa e Batina para a altura da Queima. Foi uma moda que começou nos anos oitenta e noventa. Diria que 99% dos caloiros de hoje só entendem usá-lo pela primeira vez na Serenata da Queima das Fitas. Há excepções, como as tunas. Nas tunas, os caloiros usam Capa e Batina, e aí o hábito está perfeitamente integrado na tradição académica.
Mas sim, a maior parte dos estudantes entende que o uso de Capa e Batina deve ser uma recompensa por se chegar ao final do primeiro ano. Um aluno pensa qualquer coisa como “participei na praxe, participei no curso, agora a minha recompensa é usar Capa e Batina”. Embora não seja isso que o Código de Praxe dita.
A Capa e Batina é um uniforme nacional, já foi consagrado assim. No 25 de Abril isso perdeu-se porque houve um grande movimento político que era muito anti-praxe. Cá em Coimbra, a praxe só voltou nos anos oitenta.
E antes disso houve a crise académica também…
Exactamente. Antes disso a Capa e Batina era um uniforme nacional. E nós em Coimbra temos essa visão: a Capa e Batina é um direito do estudante do ensino superior. E é um uniforme nacional.
Mas que varia de universidade para universidade…
Sim, mas a génese está cá… É definida através do Código de Praxe, e nós mantemos esta postura mais purista de que é nossa… reconhecemos as variantes que existem mas orginalmente é de cá, começou em Coimbra. É importante perceber a questão etnográfica das coisas, e eu por acaso ligo bastante a isso. Há [noutras universidades] variantes de Capa e Batina que são feitas sem perceber a raiz, ou seja, mudam [o traje] do nada, e inventam artificialismos…
Há o exemplo da Universidade do Minho ou da Universidade da Beira interior que adoptam elementos regionais para o Traje Académico…
Sim. Algumas adaptações foram bem feitas, outras mal feitas. Eu próprio, como uma espécie de etnógrafo amador, reconheço que uma universidade que está muito ligada à sua terra queira adoptar traços da sua terra na Capa e Batina. O erro está é em só reconhecer esse traje e não aquele que já existia. Por exemplo, nós temos aqui a Escola Agrária que tem a sua própria Capa e Batina mas que também tem estudantes que usam a Capa e Batina nacional. Conheço malta que tem os dois trajes.
Depois há modas como o uso de lapelas à general ou colheres nas gravatas que são tudo coisas que não têm fundamento histórico. Alguém se lembrou um dia de pôr aquilo, achou que tinha piada, e deixou. Até pode ter piada, mas se queremos que o uniforme seja levado a sério e que represente a cidade, não podemos simplesmente inventar modas.
Bem, mas estamos aqui a sair um bocado da conversa da Queima. Podia ficar aqui mais duas horas a falar disto…
Não faz mal…
Pronto… para concluir, a nossa visão é de que Capa e Batina nasceu aqui, as normas para o seu uso nasceram aqui, e reconhecemos perfeitamente que haja adaptações noutro lado. As adaptações não podem é ser feitas em substituição [da nossa]. E que [as restantes universidades] não entrem no pensamento de achar que a nossa é que é. Como referi, foi uniforme nacional e houve um resvés à tradição quando cada capelinha começou a dizer “aqui mando eu”. É que isso depois gera um certo sectarismo ao nível do ensino superior. E uma das vantagens que o ensino superior podia ter, mesmo a nível político, é precisamente [que seja visto] como uma união [de universidades]. Mesmo as praxes, fora de Coimbra, são muito usadas como factor de cisão e não como de união. Coimbra tem uma união particular com o Porto porque seguimos a mesma raiz. Mesmo a nível da Associação Académica, com quem temos maior relação é com o Porto. A nossa equipa [que organiza] a Queima das Fitas dá-se muito bem com a do Porto, e convidamo-nos mutuamente a assistir à Queima de cada um.
se queremos que o uniforme seja levado a sério e que represente a cidade, não podemos simplesmente inventar modas
Voltando então à Queima das Fitas, há algum protocolo para como deve ser usado o traje durante o evento?
Sim, existe. Há, por exemplo, a Praxe de duas insígnias: há as insígnias das fitas escritas e a da cartola. Está estipulada no Código de Praxe. Existem outros rituais que não têm de se fazer, no sentido em que não são obrigatórios mas que as pessoas naturalmente acabam por aceitar como regra. E que podem ser só circunscritos à Queima das Fitas.
Esse cortejo das cartolas que ocorre na Queima das Fitas é respeitante a alunos do último ano?
É do ano do mestrado. Mais uma vez, uma mudança que Bolonha trouxe. Dantes, no quarto ano usavam-se as fitas, e no quinto usavam-se as cartolas. Agora as fitas usam-se no terceiro ano, porque as licenciaturas têm três anos, e só se usa a cartola no quinto ano. Se [o aluno] não for para mestrado, não usa cartola.
Muito bem… Quanto às várias festas dentro da Queima das Fitas… Podemos ter uma ideia do que se faz?
São tantas… A Queima das Fitas divide-se em duas grandes componentes: a tradicional, que são cerca de doze a catorze actividades, não vou dizer treze porque dá azar; e depois tem as outras actividades como as das Noites do Parque, as desportivas, o rally da Queima das Fitas, que é dos mais antigos do país… É um fenómeno de grande dimensão.
Eu gosto muito de salientar o que se faz na componente tradicional. Temos a Venda das Pastinhas que é uma actividade solidária que vem desde 1930, onde o orfanato Doutor Elysio de Moura faz umas pastinhas em cartão com quadras populares e os estudantes na sexta-feira de manhã vão à escola e acompanham as crianças a vender as pastas pela cidade, muitas vezes levam gaiteiros atrás a anunciar [o evento]. Todo o dinheiro reverte para as crianças. Antigamente chamavam a isto a Venda das Pastas mas agora passámos a dizer Venda das Pastinhas Doutor Elysio de Moura. É das actividades mais antigas que nós temos.
Outra que também é pouco conhecida é o Chá das Cinco. Chamava-se chá por causa da ocasião, não necessariamente por haver chá – o Casino da Figueira da Foz, por exemplo, tinha muitos Chás. Nós por aqui temos o Chá Dançante também que não tem qualquer chá. Esse é a partir da meia noite. Mas [voltando ao] Chá das Cinco, é um evento muito interessante porque é o momento em que os estudantes convidam todos os lares da cidade para um baile onde oferecemos chá e bolachas e música, e cujo objectivo é meter os velhotes a interagir com os estudantes mais novos. Os próprios estudantes vão lá puxá-los para dançar e eles ganham quinze anos de vida. Confesso até que ver a vivacidade com que os velhotes saem de lá me emociona.
Isto são actividades que quando a gente fala da Queima das Fitas as pessoas não ligam. Para elas a Queima das Fitas é a bebedeira lá no parque, com artistas e por aí fora.
E claro, temos a Serenata na Sé Velha, que é o ex-líbris. Todas as serenatas que andam por aí, vão buscar à nossa.
E que o Porto também faz.
O Porto também faz. Por acaso fui à Serenata do Porto há dois anos e como sou puritano tenho ali muitas coisas a apontar… [risos] Voltamos às variantes que se vão fazendo em relação à verdadeira fonte. Por exemplo, em Coimbra só os actuais estudantes é que podem cantar na Serenata Monumental. Até temos um problema, que é um problema mais técnico, relacionado com isso: todos os anos a malta experiente sai e a malta nova entra, e essa malta nova ainda não sabe cantar, é natural. É difícil arranjar gente que chegue aos standards que nós pretendemos. Há anos em que temos estudantes muito bons a cantar, há outros que não e é preciso desenrascar. Podíamos sempre ir falar com antigos estudantes, como acontece no Porto, mas mantivemos a regra de que a Serenata deve ser feita com os estudantes actuais. E que têm de cantar repertório oficial de Coimbra.
A Sé Velha de Coimbra recebe todos os anos a Serenata Monumental
Este ano houve aí um ligeiro twist com a questão da Serenata se fazer ou não se fazer…
Este ano o problema começou por não nos deixarem organizar a Serenata na Sé Velha. Queriam que passasse para a rua Larga. Até diziam “ah, e dá para mais gente, e tal”… mas isso para nós não funciona porque deixávamos de ter uma serenata para passarmos a ter um concerto. A Serenata tem de ser intimista. Diziam que na Sé Velha iríamos ter menos pessoas e nós respondíamos: “pois seja”. A Serenata não é um concerto de fados. Tem de ser no coração da cidade de Coimbra. Ao cantar-se sem microfones a acústica é naturalmente propícia ao evento. É por causa disso que insistimos que a Serenata tem de ser ali. O nosso objectivo não é chegar a mais pessoas, é manter aquilo o mais puro e identitário possível.
E como se compara a Queima de Coimbra em relação a outras Queimas?
Como disse antes, a Queima das Fitas de Coimbra tem duas componentes muito importantes, mas o enfoque deve ser sempre na componente mais tradicional. Nós podemos não ter as Noites do Parque… Imagine que há uma cheia e ficamos sem as Noites do Parque, a Queima das Fitas acontece na mesma. Continuamos a ter a Serenata, a Venda das Pastinhas, o Chá das Cinco, o Chá Dançante, a Queima do Grilo, a Imposição das Insígnias, isso tudo. Se só há Noites do Parque, então deixa de ser a Queima das Fitas. A Queima das Fitas sobrevive sem Noites do Parque, mas não sobrevive sem as fitas.
A crítica que faço, particularmente a Lisboa, é que eles não organizam uma Queima das Fitas, organizam sim um festival de Verão. Lisboa organiza concertos, e a Queima não é isso, é uma celebração dos estudantes pelo facto de serem estudantes: os caloiros celebram deixar de ser caloiros, os quartanistas celebram o passar a usar as fitas, os cartolados celebram o mestrado…
Nós na Queima temos um orçamento muito grande, não vou dizer valores, mas posso dizer que tem vindo a crescer bastante, e já por várias alturas se pensou em profissionalizar a festa. Mas nós queremos manter isto como uma organização de estudantes. Todos os anos há problemas, e muitas vezes problemas que se repetem, porque a malta é nova, e tal… Mas sempre que olhamos para trás pensamos “não, a festa não é para profissionalizar, é para ser organizada pela academia”.
A Queima das Fitas sobrevive sem Noites do Parque, mas não sobrevive sem as fitas.
E em relação ao luto, que tem vindo a ser uma arma académica para os estudantes passarem uma opinião… o luto de 1969 teve quanto tempo?
De 1969 até à década de oitenta.
E não houve Queima durante esse período?
Nem Queima, nem Capas e Batinas. Houve tentativas para se organizar novas Queimas mas sem grande sucesso. Em 1978 houve uma tentativa para se organizar o cortejo e também não correu bem. Em 1979 conseguiu-se fazer o cortejo e oficializou-se novamente em 1980.
Quanto à Latada, que está aí à porta… são festas bem diferentes, mais não seja pelo calendário, porque a Latada no início do ano lectivo e a Queima no fim. Mas no que toca à alma de cada uma, como as distingue?
Distinguem-se em muita coisa. É a diferença entre um olá e um adeus. A Latada é um cumprimentar, diz-se “bom dia e espero que te divirtas”. A Queima é uma despedida. Há um impacto distinto no caloiro que vem à Latada para o aluno que é rasgado na despedida da Queima.
Agora, também posso dizer que a Latada tem uma componente mais política do que a Queima das Fitas. Nos anos sessenta, as Latadas eram usadas como críticas ao Estado Novo. Usava-se o isco ideal: os caloiros. A PIDE vinha atrás de alguém e dizia-se “epá, coitado do caloiro não tem culpa nenhuma, está só ali a segurar num cartaz e ninguém sabe quem é que o escreveu…”. [Nessa altura] a Latada ganhou uma componente de crítica política fortíssima que se mantém.
Na Queima das Fitas também há sátira mas não é dirigida ao corpo político. Havia uma actividade na Queima das Fitas que era a Récita dos Quintanistas…
… quintanistas porque estão no quinto ano?
Certo, embora agora já não se chame assim, mas sim Récida das Faculdades. Consistia num grupo de alunos que estava para terminar os estudos e que organizava um teatro a criticar o seu próprio curso. Como já estavam a terminar o curso, não tinham medo de represálias, e o objectivo era esse: criticar a própria universidade. Isto para dizer que na Queima a sátira não é exactamente política mas sim aos próprios professores ou a um evento que ocorreu dentro da Universidade… A Latada não, é mais política, e como exemplo temos a luta contra o Estado Novo. E também é mais focada nos caloiros, enquanto a Queima é mais para os finalistas. A Latada é o início, a Queima é o fim.
Depois há a dimensão… A Latada deve ter umas dez actividades fora do parque. Na Queima temos umas sessenta.
Rasganço junto à Porta Férrea
Falando um pouco do Rasganço. A minha avó foi estudante em Coimbra e disse-me que se realizava na Porta Férrea. Há alguns testemunhos dos Rasganços dessa época, inclusivamente de nomes incontornáveis como de Miguel Torga…
… sim, eu conheço o testemunho do Torga. Ele não era muito favorável a estas coisas… Não era uma pessoa muito favorável à praxe… [risos]
… não era, é verdade, mas ele acaba a dizer que até gostou do Rasganço…
Sim, sim…
Mas e então no Rasganço, o que é que fazem aos trapos?
Ficam lá. Por vezes deixam-se na própria Porta Férrea. O Rasganço normalmente acontece na Alta mas não é exclusivo da Alta. Os Rasganços que nós vemos, vemos porque acontecem na Porta Férrea, que é um sítio mais público. Errado é assumir que só acontecem lá. Há Rasganços em espaços privados porque alguns preferem que não seja público. Sim, existe uma prevalência pela Porta Férrea mas ele não tem de ocorrer na Porta Férrea. Recentemente houve um gesto que se começou a fazer no Rasganço – eu vi esse fenómeno começar a aparecer -, em que o rasgado dá um pedaço da sua Capa e Batina à outra pessoa como memória. Antigamente cortava-se a gravata, ficava para os pais ou para a Tasca do Pratas.
E afinal quando é que ocorre o Rasganço? Li que antigamente se fazia antes do último exame…
Exactamente, mas isso alterou-se. No século XIX e século XX, no dia do último exame, um gajo saía da sala e pimba, levava logo com ele. Agora o terminar do curso já é mais difuso. Há a entrega da tese, depois volta atrás com as recomendações… Por vezes entre a entrega da tese e ter a licenciatura passam-se dois ou três meses… Portanto agora o que se faz é definir uma data para o Rasganço a determinado aluno. Mas muitas vezes a data decidida é a da entrega da tese ou da defesa da tese.
E quanto ao rito de se urinar nas cinzas da fitas queimadas?
Isso já acabou há muitos anos. Já não existe há muitos muitos anos. Lá para 1920. Consistia em fazer-se uma cova para onde iam as fitas queimadas e urinava-se para apagar aquilo. Fazia-se no Jardim de Camões, onde agora está a Faculdade de Letras. Deixou de ser feito quando acabaram por calcetar a zona ali da Porta Férrea. Há muito pouca gente que sabe disso. Só vem registado nos livros mais antigos.
Nós tentamos ensinar a malta, mas somos cinquenta marmanjos contra outros cinco mil marmanjos que não querem usar Capa e Batina. Fica difícil.
Bem, Matias, acho que está tudo. Falámos um pouco de todas as pequenas coisas da Queima. Não sei se quer acrescentar mais alguma coisa…
Queria só voltar à mudança de comportamentos de que já falei. Nós tentamos ensinar a malta, mas somos cinquenta marmanjos contra outros cinco mil marmanjos que não querem usar Capa e Batina. Fica difícil. A malta vai à futrica que é basicamente ir à civil. Nem levam as fitas. E por vezes vêm-nos criticar e dizer “então e vocês não fazem nada?”. É muito difícil fazer alguma coisa. Somos uma dúzia de veteranos para a academia toda… Dá-me pena que a malta tenha perdido o hábito de levar as fitas no cortejo. Hoje quer-se abanar a lata de cerveja em vez de se abanar as fitas.
São evoluções que nós consideramos nefastas porque retiram o foco do cortejo que é o de celebrar o percurso académico. Estão ali só a celebrar uma grande bebedeira colectiva. É muito difícil lutar contra isto. São modas da juventude e era preciso eu ser muito autoritário e muito paternal para conseguir que eles cumprissem.
São assim tantos os que não levam as fitas?
São quase todos. É mesmo a grande maioria. Há quem já só vá com o colete e nem leva a Capa e Batina. Nós lá dizemos “não, vocês pelo menos no início do cortejo têm de estar todos de Capa e Batina com as fitas”. É que antes não era nada assim. Nós nunca nos vimos na necessidade de obrigar as pessoas a vir de Capa e Batina porque para nós era o normal, era o usual – nós usamos Capa e Batina. E agora os estudantes já deixam a capa em casa.
E o que é que eles alegam para não usar? O calor?
É a cerveja e o calor. Eu o calor dou, porque por acaso [o cortejo da Queima] tem calhado em dias de maior calor nos últimos anos. Eu digo-lhes “epá, é um dia, o único dia em que vocês vão passar lá no palanque com os directores da faculdade”, e eles em vez de estarem [de Capa e Batina], andam ali a atirar cerveja uns aos outros. Ainda por cima agora com as redes sociais os fenómenos são muito mais fáceis de se propagar. Nós sofremos muito com as modas que vêm de fora, do Porto, de Lisboa, de Aveiro, de Leiria, cada uma inventa as suas coisas… E depois querem implementá-las aqui em Coimbra.
Posso dar um exemplo: os acessórios que se começaram a usar na pasta. Cá em Coimbra não se podem usar porque a pasta tem de ser preta, faz parte do uniforme, há essa regra. Quem vende esses acessórios é a Toga que é uma loja que vem do Porto e eles por lá foram permitindo isso. Então a Toga por cá também começou a vender esses acessórios à malta. E o caloiro por mais cinquenta cêntimos compra. É isto…
Coimbra
Um curto roteiro histórico com o melhor de Coimbra. Surpreendentes destinos, saborosos repastos, sossegadas dormidas.
Promoções para dormidas em Coimbra
Mapa
Coordenadas de GPS: lat=40.20401 ; lon=-8.43063