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Imagem de marca da juventude universitária, e actualmente reconhecido fora de fronteiras por ser o possível inspirador das roupagens utilizadas nos livros e filmes de Harry Potter (resultado da estadia de J. K. Rowling pela Invicta), o Traje Académico é usado em praticamente todo o país onde haja politécnicos ou faculdades. Terras que de Outubro a Maio se cobrem de moços com indumentária a preceito que, de longe, parecem bandos de pontos negros em rondas pelas aulas, pelas tabernas, pelas repúblicas. Coimbra é aquela a que mais o associamos, mas também o Porto, ou Braga, ou Covilhã, entre outras.

O Traje Académico vê-se comummente apelidado de Capa e Batina, em referência às suas duas principais peças, mas nem sempre foi assim.

Origem do Traje Académico

O que mais se aponta como semente do actual traje é a vestimenta sacerdotal da Baixa Idade Média – a sotaina, um casaco que se abotoava do lado anterior, e descia até aos joelhos -, altura em que os então chamados Estudos Gerais se implantaram no país, desde a primeira escolha que os colocou em Lisboa até à deliberação final de D. João III que, depois de muitas indecisões, os transferiu terminantemente para Coimbra. Não que a observação esteja completamente errada, mas o caminho até à corrente versão da Capa e Batina foi longo e, a partir do século XIX, começou a afastar-se do recorte eclesiástico. Mas por partes.

Que a Igreja teve durante mais de metade da história do país o pelouro dos estudos, não há qualquer dúvida. Os mosteiros, com as suas Ordens e os seus Colégios, organizavam-se na instrução dos jovens, normalmente para os incorporar depois na sua vida conventual. Em Coimbra, por exemplo, é conhecido o trabalho de formação do Mosteiro de Santa Cruz, que chegou a ser opositor sério à reitoria da Universidade assim que esta se fixou na cidade. Não é surpresa, assim sendo, que os primeiros estudantes, crescidos num contexto religioso, se vestissem como religiosos.

Mesmo depois, quando o leque de estudantes alargou para gente exterior à causa Católica, os recém inscritos acabavam por ir na onda, e seguiam a moda dos jovens que cursavam teologia. Até ao primeiro terço do século XVIII, quase todos os formandos, juntamente com os formadores, envergavam algum tipo de vestimenta relacionada com a que os padres, os frades ou os monges usavam.

 

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Ainda assim, o traje era heterogéneo. Não havia um costume oficial, apenas a proibição de certas peças tidas como provocadoras ou desrespeitadoras da condição da vida estudantil – leiam-se os estatutos publicados pelos reis D. João I, D. Manuel I, D. João III e D. João IV acerca da indumentária académica e percebemos que, mais do que listar o que um discente deveria usar, a preocupação virava-se para listar aquilo que um discente deveria não usar, nomeadamente ao nível das cores, onde a garridice era vista com animosidade. Importante era que o público conseguisse distinguir um estudante dos demais, até porque quem cursava estava abrangido pelo Foro Académico, um código legal autónomo, diferente do aplicável ao resto dos habitantes, instaurado por D. João I. E, até mais do que o público, a autoridade também teria de ser capaz de reconhecer um aluno no meio de um pelotão de civis, já que a polícia que fiscalizava o povo separava-se da guarda que supervisionava os lentes e discentes – a este respeito, o mesmo se aplicava à prisão académica, igualmente isolada da prisão civil.

O distanciamento do Traje Académico relativamente à sotaina usada pelos eclesiásticos deu os primeiros sinais quando vigorava a administração do Marquês de Pombal, eventualmente por este o considerar demasiado parecido com o costume dos Jesuítas que veio a expulsar do país. À sotaina (ou loba, como por vezes era tratada quando não tinha mangas), que entretanto já havia sido progressivamente substituída pela abatina, supostamente mais curta mas mais cara, acrescentou-se uma capa comprida que caía até aos pés e cobria os calções. Foi a primeira vez em que o termo Capa e Batina passou a ser usado com sentido, até porque finalmente poderíamos considerar o Traje Académico um produto minimamente uniformizado, não só nas Universidades como também em alguns liceus. Entre 1718 e 1834, o traje tornou-se obrigatório na cidade de Coimbra, mais uma vez, com o propósito de identificar os estudantes da restante população.

Com a vitória do Liberalismo, movimento de pendor laico quando não anti-clerical, o uniforme estudantil ficou ainda menos relacionado com as roupas eclesiásticas. A força de uma nova classe, ligada ao comércio e à indústria, emprestou alguma da estética ao novo traje, claramente aburguesado no recorte, mas de material barato. O chapéu (ou gorro), que até aí frequentemente se usava, deixa de existir. Os calções são sucedidos por calças. A batina volta a encurtar. A capa, contudo, permaneceu. E juntaram-se, como novidade, o colete e a gravata. A obrigatoriedade foi aligeirada, embora ainda existisse durante a permanência nas aulas e no perímetro universitário. Isto em Coimbra, porque noutros pontos do país, foram várias as instituições que dispensaram uniforme, e outras, sobretudo em Lisboa e no Porto, que adoptaram uma vestimenta de feição militar. Espanha, por esta mesma altura, viria a abolir o seu traje de estudante.

No final do século XIX e início do século XX, muitos eram os que desdenhavam o Traje Académico. A laicização da sociedade – que começou com o Marquês e avançou com a derrota Miguelista -, aliada às influências progressistas vindas da Europa pós Revolução Francesa, iria culminar no fim da Monarquia. Os primeiros anos de República, como acontece sempre em mudanças significativas de sistema político, caracterizaram-se pela desconfiança a tudo o que lembrava o passado regime, e a Capa e Batina incluía-se no lote de activos a atirar para o lixo da história. Porém, não houve uma proibição total do seu uso, apenas livraram os estudantes da imposição de a usarem. De forma gradual, contrariando a intelectualidade, muitos discentes mantiveram a intenção de o usar, mormente em Coimbra e no Porto (em Lisboa, que em geral sempre foi menos conservadora e mais permeável a novas modas, a sua utilização reduzia-se a um punhado de liceus e à Faculdade de Direito).

Foi neste período, à medida que o desdém republicano pelo Traje Académico ia esmorecendo, que, enfim, os liceus e faculdades foram convergindo para um modelo muito próximo daquele que hoje vemos: capa, batina, colete, gravata, sapatos, meias, todos em preto; apenas a camisa, como contraste, era branca. Em 1924, um decreto instituiu-o à escala nacional. Pelo caminho, Porto e Lisboa, primeiro nos liceus, e só depois nas universidades, entenderam que as mulheres, na altura uma pequeníssima minoria no contexto académico, também tinham direito ao seu traje, e que este deveria incluir uma saia (ou saia-casaco) mas excluir a gravata – Coimbra segue a recomendação, mas só na década de 1950. Mais tarde, os Códigos de Praxe – em especial o Código de Praxe de Coimbra, publicado pela primeira vez em 1957 -, viriam a apontar, ponto por ponto, peça por peça, como o estudante deveria trajar. Os Códigos de Praxe, todavia, eram escritos pelos Conselhos de Veteranos de cada uma das Universidades. E com a instalação, a partir das décadas de 1970 e de 1980, de novos pólos universitários em vários pontos do país, aos quais se somaram ainda os politécnicos, diversos Códigos de Praxe nasceram. E, consequentemente, outro tipo de costumes surgiu.

Significado do Traje Académico

Como já comentei, o Traje Académico, mesmo na altura em que era menos regulado (e portanto mais diversificado), servia um propósito: identificar quem estava abrangido pelo Foro Académico, ou seja, quem era aluno ou professor. Ponto final. Isto e apenas isto. De resto, a ideia de se atribuir a determinada actividade ou corporação uma indumentária era coisa comum, alargada a bem mais do que a comunidade universitária.

Que hoje ouçamos jovens trajados a defender que o Traje Académico teve como principal justificação a nivelação de todos os estudantes por igual, isto é, de reduzir cada aluno ao mínimo aparato para que não fosse possível discriminar ricos e pobres, tem a sua razão de ser: há, em qualquer tentativa de uniformização, um consequente resultado de esbatimento das diferenças, sejam elas de classe ou não. Contudo, historicamente, é sabido que os estatutos lançados pelo reino visavam em primeiro lugar transmitir uma estética de sobriedade, pouco espampanante – ou seja, tratava-se de emprestar à Universidade um vestuário digno e austero, porventura qualidades já defendidas pelos eclesiásticos que tratavam do ensino, mais do que de eliminar qualquer mostra de ostentação. Os luxos estavam lá, no tipo de peças, na qualidade dos tecidos, no recorte das lobas e das sotainas, até nos acompanhantes (alguns discentes levavam consigo criados ou cozinheiros).

A intenção de colocar o Traje Académico como um veículo de abolição das diferenças de classe entre os estudantes é bastante recente, e talvez apenas tenha surgido de maneira explícita já na segunda metade do século XX, com o nascimento do Código de Praxe da Universidade de Coimbra ou perto disso. E mesmo assim, posso eu dizê-lo, a minha avó, estudante em Coimbra na década de 1950, confirmou-me ser hábito os alunos mais abastados usarem roupa própria para afirmar a sua condição social – isto é, o traje só uniformizava quem o queria usar, quem não o queria usar podia, à sua maneira, distanciar-se dos demais.

E isto para não ir a certas explicações alternativas que atribuem o envergamento do traje, nomeadamente da sua cor escura, ao intuito que cada rapaz tinha de se esconder no breu da noite, livre de supervisão e pronto para a sua vida boémia, vida essa que dançava, por vezes, no limbo da legalidade.

Porém, com o tempo, e à medida que novas Universidades foram criadas no país (como a Universidade do Minho, a Universidade da Beira Interior, a Universidade do Algarve), o Traje Académico ganhou um novo significado que, para alguns, é muito questionável. Com o ensino superior alargado a bem mais distritos do que os de Coimbra, Porto, e Lisboa, uma vontade de autonomia despontou, e daí resultou um vasto número de trajes que, tendo o negro como cor base, se foram desviando da vestimenta tradicional coimbrã, portuense, ou lisboeta. Resumindo, a intenção deixou de ser identificar o aluno, fosse ele de onde fosse, mas sim identificar o lugar onde o aluno estudava. Para os puristas, a ousadia vai contra a herança cultural estudantil, pois nunca, em nenhum momento da história, se verificou a intenção de separar os alunos consoante a instituição onde estão matriculados, mas sim de separar o aluno do vulgo.

Mal ou bem, os novos trajes vieram para ficar. Se entre o Porto e Coimbra, ou entre Coimbra e Lisboa, as diferenças são de detalhe, o mesmo não se consegue dizer de outras Universidades, públicas e privadas, porventura mais recentes, que resolveram adicionar um elemento etnográfico próprio da sua região, ou até elementos exteriores a qualquer folclore local. Na Universidade do Minho adoptou-se o tricórnio, chapéu de três pontas de origem quinhentista, e bermudas (no caso dos homens). Na Universidade da Beira Interior, com gabão para os homens e capa com capuz para as mulheres, o look académico aproxima-se das endinheiradas famílias serranas do interior. A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro guarda um traje preparado para o frio, com sobrecapa que remete para o Capote Alentejano ou até para a Capa de Honras transmontana. Na Universidade do Algarve, há um chapéu a homenagear o Infante Dom Henrique, e um colete de tom azulado. Na Universidade da Madeira continuamos no azul, mas neste caso aplicado ao casaco. Em Évora, vá lá, o estilo é clássico e pouco se desvia do que se vê em Coimbra. E em Aveiro, há gabão e as mulheres usam laço em vez de gravata. No Politécnico de Santarém, todo o desenho da vestimenta lembra o modo de trajar do campino ribatejano, do chapéu à jaqueta. No Politécnico de Leiria, a camisa não leva gola e os botões da mesma são de punho, e também conta com chapéu. Em Lisboa, temos coisas tão fora como o traje do IADE, que é composto por kilt à escocesa, ou a ESCS, onde as mulheres vestem colete.

Ritos e manias

Se é verdade que para cada universidade há protocolos distintos na maneira de usar o Traje Académico, é possível estabelecer um conjunto de regras relativamente homogéneo que, se não é aplicável a todo o instituto de ensino superior português, fica lá perto.

A maior parte das normas de utilização está relacionada com a capa. Esta pode ser usada sobre as costas, sobre o ombro, ou carregada pelo braço. Quando caída nas costas, é habitual que se façam dobras na zona do pescoço – o número de dobras varia, há quem entenda que deve ser igual ao ano em que o aluno se encontra, outros, mais práticos, defendem que deve apenas ter dobras suficientes para que a capa não rasteje no chão. Há excepções, como no caso do luto (refira-se que a Universidade de Coimbra esteve anos em luto contra o Antigo Regime, a partir da Crise Académica de 1969), que impõe que a capa se utilize sem dobras, apertada nos colchetes; ou como no caso de certos momentos solenes, relacionados com eventos institucionais ou religiosos, que ditam o uso da capa sem dobras mas sem estar apertada nos colchetes. Na Serenata Monumental, o sumo acontecimento do ano lectivo coimbrão, a capa deverá estar obrigatoriamente traçada sobre o ombro esquerdo, e o mesmo se aplica às trupes que queiram fazer praxe.

A capa pode também contar com pequenos rasgões na base, cada um celebrando uma especial ocasião onde o seu detentor tenha participado, e as incisões devem ser feitas apenas com recurso às mãos e aos dentes. Corre a crença de que esta não deve ser lavada porque lavar a capa é desfazê-la de memórias. Não se trata de uma regra, mais de uma vontade. Sendo certo que a cor preta da capa acaba por esconder muita sujidade, por vezes a desbunda própria de uma mocidade afundada em minis e bagaço deixa marcas que são difíceis de trazer ao peito, pelas nódoas ou pelo fedor, e portanto, limpá-la, mesmo que a seco, torna-se uma inevitabilidade.

Quanto às insígnias, os emblemas que são cosidos no lado interior da capa e que apenas ficam visíveis quando esta é colocada ao ombro, vendem-se opiniões para todos os fregueses. Há quem opte por não pôr. Há quem opte por pôr apenas um ou dois. Há quem opte por pôr uma cascata deles, de tópicos tão desfasados como a universidade, a naturalidade, o clube, a família, gostos pessoais, e por aí fora… capas que são por vezes apelidadas, em tom pejorativo, como árvores de Natal.

Quanto à batina, também no luto existe código de conduta: as abas devem estar abotoadas uma à outra. Os pins que podem ou não podem ser colocados na lapela estão regulados pelos diferentes Códigos de Praxe, mas é comum que haja grande limitação ao seu uso, e que as suas temáticas se reduzam à identificação da universidade ou da faculdade. Há certas insígnias que se podem colocar na batina que têm determinado significado, quase sempre conectadas com a altura do curso em que o aluno está: são elas as fitas, as nabiças, as sementes, os grelos.

Em Coimbra, embora não haja uma proibição a que os caloiros enverguem o traje, é comum este apenas ser vestido na Serenata Monumental que marca a abertura da Queima das Fitas. E prosseguindo com a Queima das Fitas, nesses dias os finalistas utilizam uma cartola e uma bengala a assinalar que estão a completar o curso em substituição do traje de sempre.

Por fim, temos de lembrar o fenómeno do Rasganço, que na cidade-estudante é operado normalmente junto da Porta Férrea no momento em que um aluno completa o curso. Consiste num grupo de colegas que faz uma espera ao amigo finalista com o objectivo de lhe pulverizar o traje (apenas a capa e a gola da camisa ficam isentas da trituração). Miguel Torga relatou a sua hostilidade pelo ritual – e no entanto, quando foi dele vítima, admitiu que não conseguiu disfarçar o regozijo.

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