Serrada da Velha

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Presença forte nos países do sul da Europa, a Serrada da Velha, em Portugal, pode ganhar vários nomes. Alguns funcionam como espécies de corruptelas ou variações regionais, como a serragem da velha, a sarra da velha, a sarração, a serração, a serradela. Outros são designações alternativas que exprimem ritos semelhantes em simbolismo, embora com ligeiras alterações na forma – a Queima do Judas é, possivelmente, o termo mais usado, mas também encontramos frequentemente festividades com o nome de Enterro do Bacalhau.
Comparando a Queima do Judas, o Enterro do Bacalhau, e a Serrada da Velha, todas elas acontecem por altura da Quaresma, embora cada uma possa ter datas distintas. No caso da Serrada da Velha, em quase todos os casos, ela acontece na terceira Quarta-Feira do período pascal católico, ou seja, contando a Quarta-Feira de Cinzas como a primeira. Há exemplos de excepção, em que se a Serrada se encosta ora mais ao Carnaval ora mais ao Domingo de Páscoa.
Ocorrem maioritariamente no Centro e no Norte do país. Há relatos da sua existência mais a sul, em Lisboa e no Alentejo, mas são registos parcos em quantidade e em qualidade. Do Tejo para baixo, na verdade, as Serradas estão praticamente extintas.
O que é a Serrada da Velha?
O ritual da Serrada da Velha terá, porventura, muitos mais anos do que aqueles que vêm nos papéis. Há quem lhe atribua origem medieval, mas mesmo quando era praticada em centúrias medievas, o costume seria já uma adaptação de práticas remotas, muito provavelmente pré-Cristãs.
A cerimónia, contudo, foi-se alterando com o tempo. Há cerca de cem anos, consistia essencialmente no serrar de um boneco (a velha), ao som da berraria da assistência que, em coro, gritava serra a velha!, serra a velha!. Em substituição do boneco, poderíamos ter um homem vestido de velha, com roupas e máscara a representar uma anciã da aldeia, e que, no momento da serragem, era substituído por um cortiço que ia a corte – nessa altura, o homem mascarado deveria suplicar para que não o serrassem, ao mesmo tempo que os restantes intervenientes aplaudiam a serração. A acompanhar o acto, recorria-se também à leitura de um testamento, quase sempre dedicado às gentes mais velhas do burgo, com intenção de as afrontar, denunciando a sua idade e o facto de já estarem perto da morte.
Como veremos adiante, havia e há muitas outras formas de celebrar a Serração da Velha, mas a descrita acima era, nas primeiras décadas do século XX, a mais usual.
A partir das décadas de 1960 e 1970, o rito foi perdendo força, chegando a desaparecer da maioria dos lugares onde era executado. Mas claro, o povo anda à deriva quando perde as referências e, nos últimos vinte a trinta anos, assistimos ao ressuscitar de muitas Serradas entretanto perdidas – ou seja, testemunhámos uma ressurreição da tradição, para usar léxico pascal.
O retorno da Serração da Velha, todavia, deu novos acabamentos à prática secular. Já é raro o caso em que realmente se serra um boneco ou um cortiço, embora ainda haja uma ou outra vila e aldeia a manterem o hábito antigo. Agora, regra geral, a velha é queimada e não serrada, o que aproxima a cerimónia daquilo a que assistimos na Queima do Judas.
Simbolismo
A Serrada da Velha pode ter duas interpretações, sendo que a primeira interpretação não anula a segunda, e a segunda não anula a primeira. As duas leituras que fazemos dela distinguem-se apenas quanto ao contexto em que tentamos compreender a aparente bizarria desta prática – num caso, vista de uma perspectiva cristã, noutro, de uma perspectiva pagã.
A Serrada da Velha no contexto cristão
Como foi dito, a Serrada da Velha ocorre, na vasta maioria das vezes, na terceira Quarta-Feira do período da Quaresma católica. A Quaresma hoje, como se sabe, não é levada com a austeridade de outros tempos. Até à primeira metade do passado século, muitas eram as famílias, sobretudo das zonas rurais, que encaravam o período entre a Quarta-Feira de Cinzas e o Domingo de Ramos como um verdadeiro catonismo – a carne saía da dieta, a reclusão escurecia os dias, a oração virava imperativo de manhã até à noite.
Neste cenário de rigorosa solenidade, a juventude, sempre irreverente, insurgia-se contra os dogmas impostos pelos mais velhos. E a meio da Quaresma havia um novo Carnaval – um dia em que, por regra, os jovens mandavam as regras litúrgicas à fava e faziam o que bem lhes dava na gana, sendo uma dessas coisas o Serrar da Velha, uma maneira de insultar os anciãos recorrendo à alegoria.
Assim se explica que, em muitos exemplos nacionais, a Serração consistisse na criação de grupos de rapazes que, pela noite, planeavam um itinerário que visava visitar todas as idosas da povoação, e, à porta de cada uma delas, deviam entoar versos de escárnio e maldizer onde a velhice da visada era o tema central. As velhas nem sempre se ficavam, e recebiam os provocadores com baldes de água fervida ou de urina. Em casos extremos, até espingardadas para o ar poderia haver.
A Serrada da Velha no contexto pagão
A outra explicação, esta entrando de caras no campo naturalista, diz respeito àquilo que a velha simboliza. Seja em forma de homem mascarado, seja em forma de cortiço, seja em forma de boneco, a personagem da velha representa o Inverno. Afinal, é nele que a natureza envelhece: as árvores despedem-se da folhagem, a agricultura tira férias, os dias ficam mais curtos.
Por outro lado, o Carnaval e a Páscoa balizam o período em que o verde volta a pintar os campos. É por isso que assistimos, no Entrudo português, mormente o transmontano, ao chocalhar com que os Caretos fertilizam as mulheres da terra. É também por isso que, na Páscoa, somos brindados com tantos elementos alusivos à fecundidade, como os coelhos (conhecidos pela sua capacidade reprodutiva) ou os ovos (símbolo do nascimento ou do começo). Da mesma forma, observamos como a Igreja decidiu colocar Jesus morto e renascido nesta altura do ano. Também Eostre, Deusa germânica da Primavera, e por razões análogas, é associada à ressurreição.
A Serração seria, então, uma celebração de um recomeço, a nova chegada da Primavera, depois de três meses em que os solos andaram a morrer aos poucos. O serrar (ou queimar) da velha significa o matar do Inverno. Por isso se escolhiam e escolhem as velhas das aldeias e vilas do país como alvo de cantigas e quadras de gozo – elas, desgraçadamente, representam a morte, o que já lá foi, a esterilidade de Dezembro, de Janeiro, e de Fevereiro, por oposição ao atrevimento jovial dos rapazes que fazem a festa.

Homens serram um cortiço

As Velhas queimadas, em Ponte de Lima
Serradas da Velha em Portugal
Eram muitas. Não havia concelho beirão, duriense, transmontano, ou minhoto, que não tivesse uma mão cheia de Serradas da Velha, cada qual com a sua particularidade, por mais pequena que fosse.
Deixamos em baixo algumas das mais conhecidas Serrações do país. Algumas mantêm-se. Outras desapareceram. Umas quantas ressurgiram. E centenas delas ficaram de fora deste texto, porque é impossível ir a todas. A essas, as minhas desculpas.
Serrada da Velha de Ponte de Lima
Talvez a mais conhecida e ainda hoje realizada religiosamente na terceira Quarta-Feira da Quaresma. São construídas bonecas em papel, tidas como as velhas, que, depois de apresentadas em cortejo pela vila, devem ser queimadas em simultâneo no Largo de Camões. O maldizer também não é esquecido.
Serrada da Velha de Vilar de Perdizes
O concelho de Montalegre nunca desilude. Desta vez, em Vilar de Perdizes, os homens juntam-se e dirigem-se às casas das velhotas e cantam-lhes versos. São brindados com alguns presentes em troca.
Serrada da Velha de Tourém
Ainda no concelho de Montalegre, Tourém junta à Sarração alguns chocalhos, boas doses de Queimada Galega, e muito escárnio contra a terceira idade, que já aprendeu a saber lidar com a brincadeira. No fim, uma enorme fogueira queima a velha invernosa.
Serrar a Belha de Vale de Telhas
Com gaitas mirandesas, concertos e ronda de tabernas. Ao início da noite dá-se o espectáculo da Serração, onde uma velha (um gigante boneco), inquirida no purgatório, é condenada à queima.
Serração da Velha de Vinhais
Neste dia, apresentavam-se gaiatos junto à fachada das moradias das mulheres mais velhas de Vinhais e, com serrote e cortiço na mão, dedicavam-hes quadras pouco abonatórias.
Sarração da Velha da Póvoa de Varzim
Uma versão mais democrática. Antes, na Póvoa de Varzim, serrava-se não só a velha como também o velho, isto é, todo o idoso ou idosa que se aparecesse a público no dia da Sarração, levava com um enxoval de afrontas aos seus largos anos de vida.
Serrada da Velha de Vizela
Em Vizela, a tradição cumpre-se com o arder da Velha. Em tempos idos, a queima era feita com várias velhas feitas de papel de jornal, cada uma representando uma velha gaiteira vizelense.
Serração da Velha de Afife
Na costa minhota, a velha é um boneco e deve representar alguém da terra – uma das senhoras mais idosas, claro. Há cortejo pela noite e, no final, é lido o testamento e queimada a velha.
Serrar da Velha de Penafiel
Em Penafiel, finge-se um funeral para a dita velha. Esta, depois de uma eucaristia muito pouco católica, é colocada num caixão funerário, regada com álcool, e deixada a arder até que as cinzas tomem o seu lugar.
Serrada da Velha de Lebução
Tanto quanto sei, o costume morreu. Mas antes, nesta povoação de Valpaços, a selecção das velhotas que deviam ser serradas era bastante gráfica: toda e qualquer mulher que já fosse avó seria presa fácil dos foliões.
Sarra da Velha de Vila Nova de Gaia
Em Gaia, são várias as freguesias que cumprem o rito. Em São Félix da Marinha, por exemplo, os homens vestem-se do avesso e vão provocar as senhoras de idade com cantares e tiradas incendiárias.
Serração da Velha de Oliveira do Conde
Oliveira do Conde, concelho de Carregal do Sal, tem uma versão diabólica do costume. Entre muitas provocações à malta da terra, um Diabo é levado a escolher qual das velhas que foram a julgamento deve ser serrada.
Serrada da Velha de Idanha-a-Velha
Na Idanha adjectivada como Velha, não poderia faltar Serração. Novamente, juntam-se homens que, com ferros e chocalhos, promovem barulheira às portadas dos anciãos conterrâneos.
Serrar da Velha de Vila Nova de Outil
Ainda pelas Beiras, Vila Nova de Outil, no concelho de Cantanhede, fez recentemente um pequeno cortejo nocturno, com archotes, onde um cântaro de ferro é serrado por detrás de um boneco em representação da velha. Um dos poucos casos em que a Velha foi serrada à maneira antiga.
Serração da Velha de Freixianda
Mais para o sul, mas não assim tanto, Ourém tem numa das suas freguesias uma curiosa (e ligeira) forma de Serrar a Velha: com cantoria, em jeito de Janeiras, de casa em casa.
Serrada da Velha da Primeira Lombada
Saltando para fora do Continente, também na Madeira se praticava a Serração, e ainda hoje se faz ritual bem próximo do que antes existia: um grande cortejo alimentado à cacofonia dos tarecos que para lá são carregados com o objectivo de expulsar os maus ventos do Inverno que termina.