Sarrabulho Doce

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O Sarrabulho Doce, tal como as famosas Papas de Sarrabulho que aconchegam os dias de frio do Norte, é feito com sangue de porco. E porém, para se distinguir das papas – porque se come no final das refeições e não no seu início -, leva mel.
Já sei, já sei, quem nunca provou ou quem nunca sabia sequer da sua existência estará a pensar: sangue numa sobremesa? É normal que os mais cautelosos garfos se refugiem na doçaria convencional cuja base está nas gemas de ovo e não num exotismo desta espécie. Mas guardem um dia das vossas curtas vidas (porque mesmo as longas vidas continuam a ser curtas) para experimentarem um dos mais carismáticos doces do Portugal rural. Afinal, não é o delicioso Pudim Abade de Priscos untado com toucinho de porco também?
O lado doce da Matança
O Sarrabulho Doce está vinculado às Matanças do Porco que se fazem no Outono um pouco por todo o território nacional, mas em especial no Douro Litoral, no Minho, e em Trás-os-Montes. Nesses vales chuvosos do Norte é particularmente bem cuidado no concelho de Penafiel (aquele que Maria de Lourdes Modesto recolheu para o seu “Cozinha Tradicional Portuguesa“), no concelho de Valpaços (aí nomeado Sangue Doce, designação que não deixa ninguém ir ao engano), no concelho de Lousada (na povoação de Caíde de Rei, onde se situa a actual Confraria que o protege e divulga). No entanto, é possível experimentá-lo em alguns sítios do sul português, como no Alentejo, cuja dieta se faz maioritariamente à custa de carne suína, em especial no distrito de Portalegre.
Trata-se de um prato de Outono e Inverno, porque as matanças ocorrem aí, quando a terra entra em ressaca das colheitas e o povo precisa de arranjar provisões alternativas à agricultura – os enchidos conservados a fumeiro são uma das iguarias favoritas, e para isso, por volta de Outubro, sacrifica-se um porco para abastecer a despensa nos meses mortos. No próprio dia comem-se sobretudo rojões. As sobras, a gordura, as vísceras, são depois entaladas em tripa natural e arejadas com o fumo das lareiras invernais – daí surgem os chouriços e chouriças, as linguiças, as farinheiras, as morcelas, as alheiras, por aí fora. Quanto ao sangue, além de ser usado em alguns dos enchidos, é também reservado para pratos substanciais: os já referidos Sarrabulhos, que podem ou não ser doces, ou os Sarapatéis, mais comuns no sul do país e nem sempre de sangue suíno.
Como as matanças se fazem cada vez menos, consequência da desertificação das nossas zonas rurais, também o Sarrabulho Doce se tornou mais raro. Ainda assim, há festas regionais e umas mesas do nosso Interior que o gostam de servir. A bem da memória.
Receita do Sarrabulho Doce
Ora aqui está um problema. A receita usada para o Sarrabulho Doce depende de terra para terra, na forma, nos ingredientes, nas doses. Qualquer cantinho nortenho onde se faça a matança tem a sua fórmula para adocicar o sangue do porco e o transformar em sobremesa.
Cada cabeça, sua sentença, diz o povo, e portanto irei reduzir-me a quatro recolhas documentadas em livro – uma já mencionada, a que Maria de Loures Modesto fez em Penafiel; outra também de Maria de Lourdes Modesto, mas em Valpaços; por fim, recorro a um par de receitas de Guilherme Felgueiras, retiradas do livro “Portugal Lambareiro“, que complementam a informação das duas primeiras.
Na versão de Modesto, o Sarrabulho Doce à moda de Penafiel é o mais simples e processa-se em três etapas. De um lado, talhamos um pedaço de gordura de porco, de preferência a que se junta ao intestino, e derretemos na frigideira. De outro, cortamos pão de dois ou três dias em pequenos pedaços e colocamos no forno a ganhar bronze. O sangue entra a seguir: depois de esfarelado, rega a frigideira com gordura e aí é deixado a ferver. O pão, entretanto já alourado, é posteriormente adicionado ao caldo de sangue e gordura, juntamente com nozes, passas, mel e, para quem aprecia, também Vinho do Porto. Da parte deste escriba, é preferível poupar o Vinho do Porto para acompanhamento ao prato.
A versão de Guilherme Felgueiras para a mesma receita resolve pôr mais ingredientes ao barulho. Àqueles já descritos, adiciona água, caldo de carne, amêndoa, canela e sal. Do pão usa-se o miolo e não vai ao forno.
Quanto ao Sangue Doce de Valpaços, segundo Modesto, leva açúcar em vez de mel. O açúcar deve ser misturado com água até fazer ponto de pasta. Ao mesmo tempo, esfarela-se o sangue depois de cozido e o pão de um ou dois dias, um de cada vez, com recipientes próprios para um e outro. Ao composto de açúcar, em lume baixo, juntam-se amêndoas sem pelo, depois o pão triturado, e por fim o sangue. Extinguimos o lume. Enquanto o tacho ainda está quente, somamos uma colher de banha e uma pitada de canela em pó. Está pronto.
A esta abordagem, Guilherme Felgueiras acrescenta passas, canela, e um pouco de vinho branco.