Alheira
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Sendo verdade ou não, a alheira, também conhecida regionalmente como tabafeia, está irremediavelmente ligada aos judeus ibéricos que, pela conhecida discriminação e posterior perseguição que sofreram – primeiro em Espanha, logo depois em Portugal -, fizeram dela um dissimulador da cultura judaica, de acordo com o saber popular.
História de um enchido sefardita
Pouco se sabia, entre o povo, dos invulgares ritos da comunidade judaica que se ia acumulando nas encostas norte dos montes portugueses (aquelas onde, por falta de sol, ninguém queria viver, por cá designadas como judiarias). Mas um hábito parecia ser conhecido de todos – qualquer judeu (ou mesmo muçulmano) era avesso à carne de porco.
O porquê da proibição da ingestão de carne suína por parte das comunidades judaicas já nos trouxe variadíssimas respostas, que para o objectivo deste texto não consideramos pertinente aprofundar. Importa perceber, sim, que o hábito era respeitado por qualquer judeu que levasse a sua religião a sério. E também que a Inquisição que se iniciou em terras espanholas fez com que muitos deles passassem para o lado de cá da fronteira, sobretudo junto à raia das províncias de Trás-os-Montes e Beira Alta.
No entanto, pressão política vinda de Espanha pôs Portugal a perseguir também os judeus que cá se encontravam – algo que se oficializou, e radicalizou, com a Inquisição portuguesa. E uma das formas de identificar quem era ou não judeu passava pela dieta. Não comendo os judeus carne de porco por a considerarem impura, alguma coisa tiveram de inventar para fingir que a comiam. Desenvolveram assim um enchido semelhante ao chouriço mas com carne de aves em substituição da suína. Assim disfarçaram a sua fé. Mais tarde, após os anos da Inquisição, foi descoberto o artifício, mas o hábito de comer alheira já estava criado – e a partir daí, por influência cristã, o porco começou a ser usado na elaboração da alheira tradicional.
Há dúvidas legítimas quanto à veracidade deste relato e podemos dizer, tal como acontece numa lenda, que elementos romancistas e históricos se misturam para abrilhantar a narrativa. É evidente que a perseguição (e até a tortura e a morte) de judeus aconteceu em Portugal, e que por isso estes tenham desenvolvido práticas de todo o tipo para esconder a sua religião. Se a alheira é uma delas ou não, não temos a certeza.
Na realidade, um enchido de porco e um enchido de carne de aves têm sabores distintos, o que leva a que perguntemos como foi possível que o engodo tenha durado tanto tempo sem que ninguém desconfiasse. Por outro lado, o Abade de Baçal apelidou a alheira de chouriço dos judeus, o que parece indicar que ele, um estudioso de Portugal, acreditava pelo menos parcialmente nos relatos que acabámos de contar. Da mesma forma, Mouette Barboff, francesa que se deixou encantar pela controvérsia, colocou em livro a sua teoria onde defende que muitos dos rituais de preparação da alheira têm grande correlação com outros de origem judaica, relançando a discussão em torno da origem e história do enchido. E a autoridade no que toca a enchidos nacionais, Nuno Diniz, numa saudosa entrevista que lhe fiz, disse-me que toda a narrativa que correlaciona as alheiras com a dissimulação religiosa dos judeus é uma “história engraçada”, mas que não passado de folclore, porque a alheira sempre levou porco, como tal nunca se tratou de uma tentativa de ocultar o que quer que fosse.
Geografia e tipos de alheira
A alheira, actualmente, come-se em qualquer ponto do país, o que não quer dizer que seja bem feita em todo o lado. Para termos as melhores alheiras no prato, é preciso ir para o norte interior. É lá, na mística província de Trás-os-Montes, que ela é estimada, quer na criação, quer no cozinhado posterior. A Beira Alta vê nela parte da sua tradição também, embora em menor grau.
À medida que começamos a descer, aumentam as probabilidades de encontrarmos verdadeiros crimes a este enchido que merecia maior respeito – alheiras fritas já é mau o suficiente, alheiras fritas com batatas fritas piora o caso, e alheiras fritas com batatas fritas e ovo estrelado é mau demais.
Quem quiser uma boa alheira no sul, o ideal é deslocar-se a alguma taberna cujo cozinheiro seja comprovadamente transmontano, ou no mínimo nortenho. Um que privilegie a alheira assada no forno em detrimento da de frigideira com azeite suplementar – a alheira já tem gordura mais do que suficiente para ser cozinhada, não será preciso injecção extra de azeite ou manteiga. E deixe-se lá isso de uma alheira rebentada é uma alheira estragada – não só não é como até pode saber melhor (experimentem trincar a massa que extravasa a tripa e digam se o percalço não valeu a pena).
Mas voltando a território transmontano, sublinhe-se que até por lá há guerras sobre qual a alheira prima, isto é, a melhor das alheiras. Sabemos qual a que tem fama a rodos, a de Mirandela, mas existe ainda a do Barroso e a de Vinhais, isto falando apenas das protegidas, porque temos todas as alheiras caseiras elaboradas consoante a herança gastronómica que cada transmontano recebeu. Foquemo-nos, contudo, nas oficiais.
Alheira de Mirandela
A célebre Alheira de Mirandela não é, historicamente falando, de origem mirandelense. Ou pelo menos não é só daí. Ganhou esse nome porque as alheiras que daí partiam pela saudosa linha do Tua levavam o carimbo da estação, e daí se associar Mirandela ao enchido.
Leva carne de porco bízaro (pelo menos 50%, podendo a restante carne ser de outras raças suínas), carnes de caça (pato, faisão, lebre, perdiz) e carne de galinha. Conta com menos carne de porco do que as suas concorrentes, compensando com maior fatia de carne de aves. A tripa envolvente é de vaca. O tempo de fumagem deve ser de oito dias.
Todos os seus ingredientes bem como o processo de fabrico deve ser feito no concelho de Mirandela.
Alheira de Barroso-Montalegre
A zona do Barroso não podia estar de fora. Também ele se dedicou a uma particular forma de trabalhar a alheira transmontana.
Leva carne de porco bízaro (pelo menos 50%, podendo a restante carne ser de outras raças suínas), carne de coelho, e carne de aves variadas (galinha, peru, pato). Na confecção tem a novidade de levar cebola e salsa, ao contrário das restantes. A tripa envolvente é de porco. É a que conta com menor tempo de fumagem: apenas três dias, máximo quatro.
Todos os seus ingredientes devem vir dos concelhos de Boticas, Montalegre ou Chaves. O processo de fabrico deve ser feito no concelho de Montalegre.
Alheira de Vinhais
Por fim, a Alheira de Vinhais, que é das três a menos exigente quanto à geografia. A matéria que compõe o enchido pode vir de qualquer sítio desde que no distrito de Vila Real ou Bragança, e deve ser elaborada nos concelhos de Carrazeda de Ansiães, Macedo de Cavaleiros, Miranda do Douro, Freixo de Espada à Cinta, Vinhais, Vimioso, Alfândega da Fé, Torre de Moncorvo, Mogadouro, Vila Flor, Bragança.
Leva carne de porco bízaro e tem uma novidade: a carne das aves serve apenas para dar gosto ao caldo, não entrando no enchido. A tripa pode ser de vaca ou de porco. O tempo de fumagem é igual ao da Alheira de Mirandela: oito dias. É a única que permite que a lenha do fumeiro seja de madeira de castanheiro.
Como fazer
Como vimos, para cada tipo de alheira há uma forma distinta de a elaborar. Como tal, o que aqui faremos é uma descrição um pouco genérica de como se chega ao produto final ultrapassando as especificidades de cada tipologia.
Assim, podemos resumir todo o processo em três partes: a preparação das carnes, o enchimento, e a assadura.
Por partes, e pelo princípio.
As carnes (de porco, de galinha ou peru, e eventualmente de caça se houver) devem ser colocadas em água a ferver com osso e cartilagem – não demasiada água, basta que esta cubra o total da superfície da carne, e que esteja temperada com muito alho e sal. A carne irá soltar-se do osso com a cozedura. De qualquer forma, quando acharmos que está pronta a ser desfiada, retiramo-la do tacho e só o fazemos depois de a deixar arrefecer um pouco. O caldo da cozedura deve ser guardado porque irá entrar em campo não tarda.
Enquanto as carnes cozem, devemos fatiar pão, preferencialmente de trigo. As fatias devem ser finas e depois colocadas num alguidar. Após as carnes estarem desfiadas, pegamos no caldo usado para cozer as carnes e deitamo-lo sobre o pão (convém que o caldo esteja suficientemente espesso, se for preciso ajudando com azeite). Deixamos empapar por uns minutos, tapando o alguidar. Depois misturamos tudo de maneira a criar consistência na massa. O resultado é uma espécie de papa de pão, algo semelhante a uma açorda. Adiciona-se à mistura colorau picante ou doce e juntamos as carnes já desfiadas e tornamos a mexer. Acrescente-se mais alho picado. O alho é essencial na alheira, basta ver pelo nome.
Passando à segunda fase mas voltando um pouco atrás: antes de tudo isto deveremos ter a tripa preparada, nem que tal tenha de ser feito no dia anterior. Pegamos na tripa e fazemos o que sempre se faz com ela: lavamos e lavamos e lavamos. A tripa, depois de seca, será usada para envolver as carnes que dão forma ao enchido – não esquecer de dar um nó inicial numa das pontas antes de começar o enchimento, usualmente com corda de algodão. Quanto mais quente estiver a carne, mais fácil é de a moldar à tripa. No fim, atamos a outra ponta ficando assim a alheira com a forma de cerradura que conhecemos. Pegamos na alheira, ou nas alheiras, e penduramo-las junto às brasas – uma lareira, de preferência, caso contrário que se use carvão.
Por fim, chegada a hora da refeição, deveremos colocar novamente as alheiras em água a ferver, mas por pouco tempo – um minuto bastará. Aproveite-se essa água para cozer as batatas e os grelos depois de retirarmos as alheiras. Alheiras e batatas e grelos vão de seguida ao forno, regados com azeite. Por lá devem permanecer uns vinte minutos, ou meia hora, dependendo da temperatura. Retiramos quando a alheira estiver bronzeada.