Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra

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Nada encanta mais este que vos escreve do que uma magna colecção de velhos livros – especialmente se a denunciar antiguidade pelo alinhamento de lombadas em pele curtida, numa mistura de cheiro a madeira e cabedal que nos agasalha como nem o mais gordo cobertor conseguiria. E nesse aspecto, há duas que em Portugal se destacam: a Biblioteca do Convento, em Mafra, e a Biblioteca Joanina, em Coimbra, ambas produto de um tempo iluminista e de um rei iluminado. Calha agora escrever sobre o caso beirão, uma magnífica exibição de livros num dos mais opulentos monumentos do Portugal setecentista.
A biblioteca de um rei leitor
É Maria Beatriz Nizza da Silva, biógrafa de D. João V, que o refere: “entre a devoção e o divertimento, o quotidiano do monarca parece ter sido ocupado pela leitura”. E um outro encomiador do monarca torna a vincar a sua predilecção bibliotecária: “Que despesa não custaram os inumeráveis livros que fez imprimir, dentro e fora do Reino”. Com efeito, D. João V era homem dado às letras, como seu amante e promotor.
Nesse sentido, compreende-se que a um pedido do reitor da Universidade de Coimbra a uma necessidade de expansão da Casa da Livraria, justificada por falta de espaço para receber todos os livros de que dispunha, o rei tenha feito uma contraproposta acima da requisição. Não bastaria apenas arranjar espaço. D. João V, com a carteira recheada de ouro brasileiro, entendeu que estava em causa a dignidade de Coimbra enquanto cidade de conhecimento, e lançou um projecto consentâneo com os pergaminhos da instituição universitária: três majestosos salões dedicados ao conhecimento, de um exotismo e de uma pomposidade sem igual, construídos sobre a prisão académica. De embalo, patrocinou também a ampliação da colecção, com a aquisição de vários livros nos campos da história, da geografia, do direito, da teologia, da filosofia, das humanidades, das ciências, da arquitectura, da medicina.
Entre 1717 e 1728 edificou-se a biblioteca, de um Barroco tardio, que a partir daí se passaria a chamar de Joanina como referência ao monarca que a financiou. E contudo, esta só passou a ter recheio (leia-se: livros), a partir de 1750, ano em que morreu, o que talvez justifique uma outra afirmação de Nizza da Silva quando dá conta de que “a relação do rei com a biblioteca da universidade [de Coimbra] pouco tinha a ver com o seu conteúdo”, o que faz sentido tendo em conta que o conteúdo apenas apareceu depois do seu falecimento.
Mesmo depois de armada com publicações de apoio ao estudo, de edições raras, de papiros e mapas e cartas de séculos passados, apenas em 1777, ou seja, sessenta anos depois do início da sua construção, na transição do reinado de D. José para o de D. Maria I, se tornou funcional, no sentido de servir os alunos e os professores da universidade coimbrã, actividade que manteve até meados do século XX, com vários episódios de aquisição de novas colecções pelo meio – nomeadamente aquando da extinção das ordens religiosas no período pombalino, momento em que muitas edições dos colégios de Coimbra sitos na Rua da Sofia foram para aqui transferidos; mas também de ilustres doações de D. Pedro II e da Universidade Central de Madrid, por exemplo.
A partir da segunda metade do século XX, a Biblioteca Joanina foi integrada na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, cujo edifício principal se situa do lado de fora do Paço das Escolas.
Sala de livros, quarto de morcegos
Teófilo Braga, segundo Presidente da República, escreveu sobre o rei D. João V em tom pouco elogioso, ao dizer que o monarca foi particularmente despesista, apontando as suas “construções faraónicas” inspiradas nas luxuosas obras do longuíssimo reinado de Luís XIV em França. Não esquecendo a posição de onde Teófilo Braga escrevia, ou seja, do seu militante republicanismo e, consequentemente, do seu assumido anti-monarquismo, não devemos chutar a observação para canto apenas por vir de uma cabeça enviesada. De facto, D. João V reinou de barriga cheia, sustentado pelo precioso metal brasileiro, e ficou conhecido pelos seus apetites faustosos – veja-se, por exemplo, o seu célebre coche, exposto no Museu dos Coches, em Lisboa, para percebermos algumas das suas dispendiosas manias.
Que isso não ofusque a inquestionável beleza barroca da Biblioteca Joanina por si fundada. No exterior, curiosamente, há alguma resistência ao excesso de ornamentação. A portada, virada para o Paço das Escolas (note-se que, actualmente, os turistas entram por uma porta lateral que dá acesso ao piso intermédio, e não pela entrada principal), deve mais ao Renascimento, tendo em conta as colunas jónicas e o arco sobreposto à porta. O que goza de elaboração estilística é mesmo o escudo real, entre os motivos marítimos do Manuelino e a profusão de formas do Barroco.
Mas o espanto fica todo guardado para o interior, um enfiamento de três salas forradas a estantes de carvalho de várias cores, com mobília de influência oriental (ou “no gosto chinês”, como escreveu Sant’Anna Dionísio), numa afirmação de um Portugal imperial, pluricultural e cosmopolita. A balaustrada e os seus apoios são tão belos que rivalizam com os livros. As mesas em ébano e gandarú contrastam com o chão esbranquiçado. E ao fundo, como obra central, um quadro de D. João V que encanta tanto na tela como na moldura, onde anjos recolhem uma cortina doirada para mostrar o monarca em jeito cénico, como um Deus, como Tote.
As pinturas nos tectos – uma das coisas que D. João V nunca chegou a ver porque apenas aconteceu mais de vinte anos após a sua morte – são feitas a trompe-l’oeil, num jogo de profundidade que casa com a planta longitudinal do monumento. A primeira sala mostra o retrato de “As Quatro Partes do Mundo”, com a representação de quatro mulheres respeitantes à Europa, à Ásia, à América, a África, numa referência ao conhecimento como fenómeno de absorção transcontinental. A segunda sala projecta o “Espelho da Sabedoria”, com alusões femininas aos seus quatro pilares (a honra, a virtude, a fortuna, a fama) e com a personificação da Sabedoria numa mulher de seios expostos com um destes a produzir leite – símbolo da vida e do saber, como Maomé o disse, “sonhar com leite é sonhar com a ciência”. E a terceira sala expõe o “Espelho do Conhecimento”, com alegorias à justiça, à teologia, às ciências naturais, às artes – quatro faculdades da Universidade de Coimbra.
Os detalhes também nos convencem. As escadas usadas para aceder aos livros fora do alcance de um braço, estão incorporadas nas madeiras. Se, por acaso, nos vinte minutos a que cada visita nos dá direito calhar vermos um livro a ser retirado ou colocado de um lugar menos acessível, podemos mirar o maravilhoso engenho. Tudo pensado, tudo disfarçado, tudo embelezado. Uma obra-prima que o Telegraph apelidou de “sumptuosa” e o conde Atanazy Raczyński descreveu como “a mais bela” biblioteca que viu.
Algures num destes recantos estão ainda guardados os menos óbvios visitantes da biblioteca – morcegos que na sua rotina nocturna saem dum arrumo que a nossa vista não identifica e voejam pelos três salões à procura de alimento. A dieta dos morcegos é a salvação dos livros, que vêem os insectos comedores de páginas e papiros dizimados por um improvável predador. Os dejectos dos guardiões da Biblioteca Joanina que ameaçam a lustrosa mobília são bloqueados com recurso a courama.

“O Espelho da Sabedoria”, na primeira sala

“O Espelho da Sabedoria”, na segunda sala

“O Espelho do Conhecimento”, na terceira sala
Bíblias, primeiras edições, e outras raridades
Na Biblioteca Joanina, onde os livros têm entre oitocentos e duzentos anos de vida, toda a página é uma preciosidade. Mas há edições particularmente raras que gozam de estatuto próprio, e muitas dessas estão normalmente guardadas em cofre. Indo às estrelas da equipa, aqui contamos com uma Bíblia Hebraica quatrocentista sobrevivente da Inquisição e com uma outra conhecida como a “Bíblia Latina das 48 Linhas”, com os revolucionários “Teoria das Marés” e “Astronomia Nova” e “Uberrimum Speare Mundi” de Newton e de Kepler e de Sacro Bosco, respectivamente, com uma edição raríssima dos Lusíadas, com o célebre atlas da anatomia humana de Vesalius “De Humani Corporis Fabrica”, com os 32 volumes de “La Galerie Agréable du Monde”, uma edição das Epístolas de São Jerónimo datada de 1570, as “Ordenações Manuelinas” de 1514, o pioneiro “Menina e Moça” de Bernardim Ribeiro, o belíssimo livro dedicado às viagens de D. João de Castro, os pertinentes “Estatutos da Universidade de Coimbra de 1591”, o “Cancioneiro Geral” de Garcia de Resende do distante ano de 1516, entre tantos outros.
No total, entre o depósito que existe nos pisos inferiores e a biblioteca do salão nobre onde se encontram os títulos mais antigos, são cerca de 60000 livros, boa parte deles escrita em latim. Se formos à totalidade da Biblioteca Geral que, como se viu, soma à Biblioteca Joanina todo o espaço que está em frente à Faculdade de Letras, os números ultrapassam os dois milhões de unidades.
Recentemente, uma parceria com a Autoridade Literária de Sharjah tornou possível a digitalização de 30000 dos livros disponíveis na biblioteca, num esforço que será desenvolvido durante seis anos e que teve o custo de oito milhões de euros. O velhíssimo espólio literário coimbrão vê-se assim modernizado com a chegada da era digital.

Balaustrada no primeiro piso de Biblioteca Joanina

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Mapa
Coordenadas de GPS: lat=40.20719 ; lon=-8.42633