Museu de Portimão
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Às raras pessoas que vão para o Algarve à procura de outra coisa que não apenas preguiçosa exposição ao grande astro, posso dizer, sem peias nem ameias, que no Museu de Portimão há um dia muito bem passado sem sequer ter de se ir em busca do mar. Aceito que aqui não dá para atrigueirar a pele, mas dá para embelezar a mente, o que a longo prazo até é melhor.
São vários espaços multifuncionais que trabalham a memória do património portimonense, o material e o imaterial, que apresentam exposições permanentes e itinerárias, conferências, entregas de prémios, concertos, cinema, eventos pedagógicos infantis e juvenis, centros interpretativos, maratonas fotográficas, arquivos municipais, e mais uma ou outra coisa que me ficou por contar.
Não surpreende que esta casa já tenha sido premiada e louvada tanta vez, cá dentro e lá fora, e que um desses troféus seja o reputado Museu do Ano do Conselho da Europa, o célebre EMYA, entregue no ano de 2010. Uma patente que, em Portugal, até à data, apenas o Museu da Água se podia gabar de ter.
A Fábrica Feu e Portimão fez um museu
Portimão, pela geografia com que os Deuses o abençoaram, só podia ser terra industrializada. Mesmo antes do século XIX, antes das máquinas a vapor, já se previam bons ventos para a então Vila Nova, comprovados pelo comércio nesta confluência de mares – “mar por onde se pesca, mar por onde se troca”, como escreveu Joaquim Romero de Magalhães. E com efeito, nos idos oitocentistas, aquando da Revolução Industrial, a então vila foi impulsionada pela posição ribeirinha que tanto prometia – uma ampla frente para o estuário do Arade, protegida do mar mas ao mesmo tempo pertíssimo dele, espécie de passadeira marítima entre o Atlântico e o Mediterrâneo. A principal actividade a trazer crescimento e trabalho foi a da produção de conservas, alimentada pela pesca de cerco – sobretudo a da sardinha, mas também da cavala, do atum, do biqueirão, do chicharro -, e musicada pelo som marcial do Leva-Leva.
Na zona da ribeira, saltaram fábricas de conservas de peixe que nem cogumelos. O empreendimento começa por ser estrangeiro, porém, poucos anos depois, os portugueses juntam-se à aventura. É com uma destas iniciativas que, em 1889, se decide abrir a Fábrica de São Francisco (porque se situava ao lado do agora arruinado Convento de São Francisco), também conhecida por Fábrica Feu (porque era esse o apelido dos seus fundadores, empresários de família catalã mas residentes no sul de Espanha). Com ela nasce a marca La Rose, nome que se dito aos nossos avós ainda pode ser associado a sardinha e a azeite. Tornou-se uma das mais conhecidas unidades de feitura de conservas do Algarve, especialmente por ter conseguido integrar todo o processo de fabrico na sua linha de produção e, por conseguinte, por ser das que mais gente empregava – tinha frota própria, um cais autónomo onde o peixe era descarregado, toda a parte de transformação do pescado em enlatado, e até as latas e os rótulos eram criados dentro das instalações Feu.
A indústria da conserva teve sempre vida feliz no Algarve e em Portimão durante quase toda a primeira metade do século XX. Chegou a dar trabalho, directa ou indirectamente, a dois terços da população. De facto, se a I Grande Guerra puxou a procura para cima, beneficiando nós de estarmos num dos lados da equação, a II Grande Guerra empurrou-a para baixo, dado sermos neutrais e a preferência ter recaído para produtores aliados. Mesmo assim, o mercado aguentou-se, e é preciso esperar pela década de 1960 e de 1970 para vermos uma progressiva queda. O aumento do custo de produção, a falta de investimento ou de incentivo ao investimento, o incremento da concorrência estrangeira, e por fim as circunstâncias políticas do pós 74 sentenciaram o desfecho. Hoje, em Portimão, nenhuma sobra. A Fábrica Feu fechou no final da década de 1970. As outras idem, mais cedo ou mais tarde. Presentemente, no sul, apenas Olhão mantém palpitação, ainda que ligeira se comparada à de outros tempos, estando toda a restante produção na costa Centro e Norte do país.
Dando um pulo até à ao último quartel do passado século, a Câmara Municipal de Portimão, apoiada pela vontade popular, dá sinais de querer fundar um grande museu de Portimão, um canto onde se possa admitir o passado que se perdeu mas que não se esqueceu. A ideia virou vontade, e a vontade virou acção. O novo monumento deveria estar num lugar que reunisse em si o que mais era sinónimo da cidade de Portimão: a indústria, os bairros operários, a pesca, o rio. Tornou-se apetecível um edifício de antiga imponência, que acompanhava a sinuosidade do Arade numa disposição longitudinal. E assim, em 1996, se chegou à decisão de comprar à descendência Feu o que tinha sobrevivido dessa velha fábrica, ainda recordada por uma parte da cidade como o sítio que lhe deu um emprego para a vida. Entre projectos e burocracias da praxe, a obra começa em 2004 e termina em 2008. Fica fundado o Museu de Portimão. Dois anos volvidos, vence o reputado prémio sobredito, o prestigiado EMYA. Depois vem todo o trajecto até aqui, que o tornou uma medalha da cultura algarvia e um dos principais pontos de interesse da província, muito por culpa do seu ex-Director e corrente Director Científico, José Gameiro, à actual Directora Isabel Soares, e a uma equipa que só pode gostar muito do que faz para o fazer tão bem.
Lembrar Portimão
O principal assunto do Museu de Portimão é o das conservas – é onde se faz a maior aposta, e isso nem sequer é escondido, com a requalificação dos equipamentos e o investimento em bonitos manequins a explicar esses tempos.
No entanto, enquanto exposição permanente, há uma abordagem à história e às tradições portimonenses que vale bem a atenção. Um dos seus enfoques está no seu passado pré-histórico ou proto-histórico, com uma detalhada maquete que ilustra a complexa povoação de Alcalar, no interior algarvio, a cerca de vinte minutos de carro da cidade. O tema é envolvente, mas sobre isto não me prolongarei porque tenho planeei dedicar-lhe um texto próprio. Avança depois cronologicamente pela época romana e fenícia, com achados peculiares, como acontece com as ânforas (estas para armazenagem de pescado) que ainda hoje são tão parte do sul português, bastará ver o orgulho com que o Alentejo ainda produz o seu Vinho de Talha. Logo vem uma passagem pelo período visigodo e finalmente, antes da fundação do Reino de Portugal e dos Algarves, uma outra pelos séculos de permanência moura ou norte africana – neste último caso, destaca-se a importância arqueológica da Alcaria de Arge, um burgo muçulmano situado na convergência da ribeira de Boina com o rio Arade.
Paralelamente, a exposição vai cruzando os mais importantes períodos históricos de Portimão com a sua vida económica. A madeira usada para a construção naval do Portugal do além-mar, vinda da Serra de Monchique. A agricultura, encimada pela confecção de azeite e pelo cultivo do figo e da amêndoa e da alfarroba que, depois de secos nos saudosos fumeiros, eram exportados para os países do norte. O desenvolvimento do negócio das salinas, resultando no sal que condimentava e no sal que conservava.
E no meio disto ainda houve espaço e tempo para homenagear um dos mais conhecidos homens de Portimão, Manuel Teixeira Gomes, Presidente da República e amante das artes, sendo ele mesmo a assinar o decreto que elevou a sua terra natal à condição de cidade, estatuto nunca mais perdido. Escreveu Manuel Teixeira Gomes sobre as particularidades de um panorama limitado a nascente pela Ponta do Altar e a ponte pela Ponta da Piedade, o qual definiu como uma paisagem grega – “era talvez ali que Atenas devia ter existido”. Portimão nunca lhe saiu do pelo, por muito viajado que fosse.
Todavia, encare-se esta panóplia de temas como um pequeno aperitivo. Porque a riqueza do Museu de Portimão, ironicamente, está nas latas.
Modelos recriam os trabalhos da sala do “Cheio”
Maquete de Alcalar exposta no Museu de Portimão
Conservar conservas
O objectivo da maioria dos museus é conservar – os objectos, os costumes, as memórias… Neste insólito caso, entre as muitas outras funções que já descrevi, o Museu de Portimão dedica-se sobretudo a conservar conservas. Com efeito, seja a visita curta ou longa, é a indústria conserveira que mais espaço ocupa e que mais tempo merece, até porque o início deste percurso histórico está lá fora, no cais, onde o peixe miúdo pescado, nomeadamente a sardinha, desembarcava em direcção à fábrica e o peixe descabeçado e enlatado embarcava para alfândegas europeias e americanas. Mas fiquemo-nos pelas entradas do produto e não pelas saídas, porque são as primeiras que nos dizem respeito.
A primeira estação do peixe era a Sala do Descabeço, um nome cruel mas sincero, porque seria aí que a guilhotina funcionava, em conjunto com todo o tratamento do bicho, do estágio em salmoura à retirada da tripa, da lavagem à cozedura, e da colocação manual nas latas à azeitadeira, tudo feito quase em exclusivo por mulheres, mas também por crianças. Uma curiosidade é que essas meninas tinham de ser boas de ouvido, já que o chamamento era feito por sirene (ou por sereias, como seriam alcunhadas) e cada unidade fabril tinha uma toque diferente – cabia à operária conseguir perceber qual era o seu. Este curso de transformação do peixe em conserva acontecia no dito cheio, por ser nele que se preparava o enchimento. Em oposição ao vazio, também realizado dentro da fábrica, e que tratava da produção das latas e das chaves com que elas se abriam, bem como de toda a imagem da marca – as ilustrações e os logotipos dos rótulos, criados na litografia, eram pequenas peças de arte, um hábito que se mantém nas conservas actuais.
As delicadas mãos das mulheres portimonenses no trato da sardinha
Já agora, um aparte. Os modelos, feitos à escala humana, são muitíssimo bem trabalhados. Os trajes envergados têm ondulações tão autênticas que apetece tocar. As posições dos corpos sugerem os movimentos repetitivos do ofício. O vínculo que cada manequim tem com a maquinaria e os instrumentos de trabalho são de um realismo incomparável. As linhas corporais e faciais cunham uma condição humana fácil de relacionar, ainda que distantes por se encontrarem desvinculadas de um rosto, porventura para mostrar a carga impessoal com que muita desta gente era tratada. Mesmo a exposição fotográfica, que exibe momentos do trabalho realizado nesta mesma sala, exprime uma frieza honesta, a lembrar certas sátiras da sétima arte dirigidas aos expedientes tayloristas tão em voga nas décadas posteriores à Revolução Industrial.
Entretanto, ao mesmo tempo que as fábricas operavam, um outro negócio complementar tomava forma – o dos estaleiros, muitas vezes propriedade dos mesmos industriais das conservas, que usavam os recursos das suas quintas nas serras do Algarve como contribuintes de uma nova frota pesqueira. Estaríamos, portanto, num negócio a 360 graus. Para as conservas era necessário peixe. Para o peixe era necessário faina. Para a faina era necessário barco. E os grandes empresários de Portimão, até para ficarem menos dependentes de terceiros ou de vicissitudes indesejáveis, puxavam tudo para a sua esfera de acção. O ciclo fechava-se nas suas mãos. O que não foi suficiente para evitar o fim do mundo conserveiro. Ficou o museu para contar a história.
Portimão – o que fazer, onde comer, onde dormir
Mapa
Coordenadas de GPS: lat=37.13065 ; lon=-8.53432