Monumentos Megalíticos de Alcalar
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O território que compreende os Monumentos Megalíticos de Alcalar tem sido estendido por mais e mais metros quadrados à medida que os trabalhos de arqueologia e as requalificações dos espaços foram acontecendo, década após década. As visitas turísticas acompanharam a expansão e a renovação dos espaços. Antes, estavam circunscritas a pouco mais do que ao chamado Monumento nº 7, um dos tholos da necrópole, sem dúvida o mais imponente de todos, mas ainda assim, uma pequena parte daquilo que se pode considerar informalmente como o povoado de Alcalar. Porque sendo rigoroso, é disso que se trata, um burgo do Calcolítico, iniciado há cerca de cinco milénios que, subtraindo as diferenças tecnológicas, não demonstrava comportamentos muito distintos das civilizações que se seguiram ou sequer das ditas contemporâneas.
A vasta malha de Alcalar
Na margem direita da ribeira da Torre – corrente de águas com origem na Serra de Monchique que actualmente desagua quase junto ao litoral algarvio, no estuário do rio Alvor -, um conjunto de construções proto-históricas foi sendo descoberto e redescoberto desde o século XIX até ao corrente ano. Depois de mais de um século de escavações, classificações, e renovações, tornou-se possível fazer zoom out aos cerca de 20 hectares de terreno para engendrar um apanhado de tudo o que se sabe sobre o povo, a cultura, e a geografia de Alcalar.
Nos outeiros estavam as aldeias, presentemente separadas em seis polos. De nascente para poente, temos a da Amoreira, a do Mosqueiro, a de Freiras, a de Alcalar, a de Monte Canelas, e a do Poio. Aparentemente, a povoação de Alcalar era a maior de todas e assume-se como ponto nuclear, sendo as restantes uma espécie de satélites da primeira (nada que não aconteça no tempo presente, como são exemplo as novas cidades que se criam na periferia de uma metrópole). É muito plausível que cada um destes núcleos habitacionais se especializasse em determinada actividade – os de feição serrana estariam predispostos à acção mineira ou à caça, os ribeirinhos à pesca ou ao comércio, por exemplo.
Nas terras baixas, moravam os monumentos megalíticos, de função principalmente funerária, mas ritualística também. Um destes conjuntos, o principal, agrega, entre vários tholos, os dois que são visitáveis, catalogados como Monumento nº7 e Monumento nº9. Mais esparsas estão outras antas e tholos situados a noroeste, a sul, e a sudeste do eixo mor. No topo norte, para lá do Monte Canelas, foram desvendados hipogeus, provavelmente usados para enterros colectivos.
Para melhor compreender como se relacionava esta intricada malha urbana, seria interessante completar um roteiro de aldeia em aldeia, com passagem pelos vales megalíticos, porém, boa parte de Alcalar é agora ocupado por terrenos privados, e estamos assim dependentes de autorizações de terceiros para que isso seja uma possibilidade. Que isso não seja impeditivo de explorarmos a proto-urbanização algarvia por via da palavra.
A relação entre um e outro espaço, o do burgo, e o da necrópole, é simultaneamente de proximidade e de distância – o mundo dos vivos, nos relevos superiores, o mundo dos mortos, nos inferiores. Rui Parreira e Elena Móran, que se dedicaram a conhecer Alcalar em profundidade, assinalam que o território dos defuntos funciona como uma “barreira simbólica e protectora do castro”. É também relevante ver como usaram a palavra castro, tendo em conta que normalmente empregamos o termo para descrever a civilização castreja que existiu mais de dois mil anos depois da que aqui se aborda, e com muito maior penetração no Norte de Portugal.
A verdade é que Alcalar pode ser considerada uma organização bem próxima da posterior cultura castreja, tendo em conta que muitos dos elementos tradicionais dos castros de 600 ou 500 antes de Cristo podem ser encontrados aqui: a atractividade do topo das colinas para levantar fortificadas defesas de protecção às áreas residenciais; a preferência pelo casario de planta circular; a estrutura social já reveladora de uma vincada divisão do trabalho e até de uma estratificação classista; o domínio da metalurgia, mesmo que o metal dominado não seja exactamente o mesmo (Alcalar tratava do cobre, mais tarde do bronze, enquanto os castrejos trabalhavam o ferro); a consciência da morte e a sua ritualização; os ofícios inerentes à sobrevivência, como a caça e a agricultura.
A morte em Alcalar
A vida fazia-se em volta de uma porção de terra arável que garantia o planeamento das actividades agrícolas. O abastecimento de água potável, vinda de várias fontes originadas nas elevações de Monchique, e a estrada fluvial em que a ribeira da Torre se transformava para escoamento de produto, também ela garante de peixe e marisco determinantes na dieta desse tempo, tornavam Alcalar num torrão de promessas para quem lá vivesse. A somar, para norte, nas encostas da serra, havia fauna para a actividade cinegética e minas para a extracção do cobre, e para sul havia o mar, muito mais perto do que agora está, já então palco de influências várias, da cultura ao comércio.
Todavia, se é surpreendente o modus vivendi dos povoados de Alcalar, aquilo que mais fascina é o seu encarar da morte. Entre os infinitos exemplos da emoção humana que se podem estudar nos livros de antropologia, há pelo menos dois que são elementares para se compreender a identidade humana e ver como, de alguma forma, esta se desvia do comportamento de outros animais: o sentir que resulta na atitude artística, e, lá está, o sentir que resulta na consciência do mistério da morte. De alguma maneira, escavando o significado de ambos os sentimentos, poderemos estar já a abordar o tema da religião, ou de modo mais genérico, da transcendência.
É por isso que uma gravura como a do Cavalo de Mazouco tem tanta importância. Não é o literal traçado do equídeo, de resto bastante tosco, que tem valor. Mas o porquê do traçado. O que levou alguém a ir para lá do que o seu instinto de sobrevivência exigia? Para quê pintar? Ou esculpir? Ou cantar? No mesmo tom, de onde veio esta ideia do post mortem? Do que está além da vida? Da despedida dos perecidos? Do honrar dos caídos?
Neste sentido, Alcalar e os seus tholos apresentam-se aos estudiosos como um dos melhores casos de estudo, e não apenas a nível nacional – também europeu, também mundial.
Um tholos, para quem não é versado nisto, replica com algumas variantes a arquitectura de uma anta ou de um dólmen, mas acrescenta uma construção mais complexa. Ou seja, mantém o corredor e a câmara, tal como a cobertura que comummente apelidamos de mamoa, mas amplifica a escala e aperfeiçoa a engenharia. São mais comuns no sul de Portugal – talvez por ser nas zonas meridionais do país onde melhor se acedia ao cobre.
No caso de Alcalar, são vários os tholos (e antas) descobertos, de estrutura bastante heterogénea entre si. Contudo, só alguns se mantêm minimamente intactos, e apenas dois foram reparados, estando actualmente disponíveis para visita – os supraditos Monumento nº 7 e Monumento nº 9. O primeiro representa um dos melhores exemplos europeus de sepulcro do Calcolítico, pela dimensão, pela extensão e largura do corredor, pela câmara dotada de nichos que sugerem um cerimonialismo da morte. O segundo, construído dois ou três séculos depois do primeiro, é mais pequeno e tem significativas diferenças de construção nos materiais usados. Mas os dois convergem para a mesma conclusão: são criptas de gente poderosa que antes viveu em Alcalar, por oposição a outro tipo de túmulos, como os hipogeus, igualmente encontrados na Necrópole de Alcalar, e que muito provavelmente serviam para enterros colectivos, o que, mais uma vez, atesta a concepção de uma estratificação social nos povoados que cá se instalaram.
Monumento 9, Alcalar
Cripta no centro de tholos, em Alcalar
Viver Alcalar
O espólio encontrado nas imediações da Necrópole de Alcalar está espalhado por várias capelinhas. No Centro de Interpretação, junto aos monumentos megalíticos do seu núcleo central, podemos mirar algum. No Museu de Lagos, a poucos quilómetros daqui, idem. Li até que Lisboa e Figueira da Foz guardavam tesouros dos mais recentes trabalhos arqueológicos mas esses nunca os vi. Todavia, e não desfazendo os anteriores, é no maravilhoso Museu de Portimão que temos, além dos artefactos, uma bela maquete que reconstitui o esforço colectivo de edificação dos tholos.
Mas há mais. O mesmo Museu de Portimão, um dos grandes promotores do costume algarvio – o de outrora e o de agora -, promove o evento “Um dia na pré-história“, que recria a vivência deste povo do Calcolítico com ajuda de arqueólogos e actores, numa rara parceria entre conhecimento e arte, considerando que o que não falta por aí são programas culturais que nada devem à fiabilidade histórica (como é caso de grande parte das feiras medievais portuguesas). Nessa ocasião, é demonstrada a perícia que os antigos povos proto-históricos tinham no manuseamento do fogo e, consequentemente, na feitura dos alimentos e na fundição do cobre. A juntar, é dada formação sobre amassamento do barro, sobre produção de cerveja, sobre criação de instrumentos de trabalho a partir de pedra lascada, sobre transporte em rolamento de pesadíssimos monolitos, sobre marcação e ornamentação de xistos, e, já que ainda há pouco se mencionou o Cavalo de Mazouco, sobre pintura rupestre e a sua tinturaria natural.
Alcalar não acaba por aqui. Mais maravilhas chegarão. Mas o que existe já é bom que baste. Estando no Algarve, permita-se o uso de um inglesismo: so far, so good.
Portimão – o que fazer, onde comer, onde dormir
Mapa
Coordenadas de GPS: lat=37.19783 ; lon=-8.5891