Caldas de Vizela – Entrevista a Júlio César Ferreira

by | 15 Mar, 2024 | Cidades, Lugares, Minho, Povoações, Províncias

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Conheci o Júlio depois de uma visita guiada pelo núcleo histórico de Vizela, intercalada com um almoço na Adega Avelino, no mês de Janeiro de 2024.

Haveria de voltar a Vizela duas vezes no espaço de um mês. Numa primeira vinda quis mostrar à minha mulher o pundonor daquele povo com as bandeirinhas da concelhia nos varandins. Na segunda visita já pus o pé na tábua com a fixa ideia de entrevistar o Júlio, uma enciclopédia vizelense, coleccionador de postais antigos da cidade e Presidente da Casa do Povo. Foi mais uma conversa do que uma entrevista, sem suporte de material para correcção.

Finalizou-se a entrevista, mais uma vez, com novo repasto na Adega Avelino, e agora com direito a conhecer um precioso segredo da casa – um dossiê organizado por Albano Ribeiro, entre 1982 e 1998, que, a pedido do pai, foi compilando as notícias que relatavam qualquer empurrão, préstimo, percalço ou obstáculo à autonomia de Vizela face a Guimarães. Só numa tarde, ganhei dois extraordinários testemunhos da força da comunidade vizelense. Valeu a pena.

Começo a entrevista com uma tentativa de desmistificação. Penso que era a Agustina Bessa-Luís que dizia que o sítio onde nascemos é aquele que mais desconhecemos. Muitos são os lisboetas que não conhecem o Cristo Rei, ou os portuenses que nunca subiram aos Clérigos, por exemplo. Em relação a Vizela, isto acontece? A malta de Vizela conhece ou usa as suas termas? Ou é coisa para o visitante ir?

Vou chamar também de malta de Vizela porque estamos aqui numa cavaqueira. A malta de Vizela tem um orgulho muito grande naquilo que é deles. Os vizelenses são extremamente bairristas. E há um grande número de pessoas que tem as termas no coração e que sabe muito sobre as termas. [Os vizelenses] preocupam-se com as termas, querem saber das termas, falam muito sobre as termas. Haverá, logicamente, se calhar mais na juventude, a ideia de que as termas existem para ali, que é uma coisa para os velhotes – porque são os velhotes que padecem e as águas fazem-lhes bem. É verdade que a maioria dos vizelenses não sabe onde ou como é que [as termas] começaram, mas mesmo assim tem orgulho em dizer: “a minha terra é uma terra termal”.

O vizelense é um bocadinho bairrista, se calhar por todos aqueles anos de luta, porque Vizela perdeu a sua autonomia em 1406, e a partir daí nunca se calou. Tudo isto, até há vinte e cinco ou vinte e seis anos [nota: Vizela voltou a ser concelho em 1998], alimentou muitos egos, muita vontade. Alimentou este bairrismo que lhe digo. E acho que a grande maioria dos vizelenses sabe o que são termas, já foi às termas, e gosta de levar para fora o nome das Termas de Vizela.

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Houve um período mais ou menos recente em que estas termas fecharam…

Sim. Houve ali qualquer coisa relacionada com uma bactéria que apareceu e o delegado de saúde provocou ali umas encrencas. Houve qualquer coisa que provocou um bater do pé para encerrar as termas. Depois estiveram encerradas, efectivamente, durante algum tempo.

Entretanto, há uma grande manifestação para reabrirem as termas. E a Câmara chegou então à conclusão que o melhor era fazer um acordo com a Companhia de Banhos. Esse acordo foi feito. Abriu-se depois um concurso internacional. Julgo que no primeiro concurso não apareceu ninguém, e no segundo apareceu a Tesal, uma empresa espanhola. E está assim desde essa altura. Tem havido umas questiúnculas que nunca sabemos se correspondem à verdade ou não. Porque o acordo foi feito para xis anos, julgo que vinte e cinco. E, se forem vinte e cinco, faltam [poucos] anos para terminar esta concessão. A concessão foi feita neste sentido: o actual usufrutuário das águas, ou seja, do edifício, paga à Câmara Municipal e a Câmara Municipal, por sua vez, paga à Companhia de Banhos. Creio que é assim, mais ou menos, que está.

E nota-se muita diferença em Vizela entre o período em que as termas estiveram fechadas para depois quando foram reabertas?

A diferença começa antes. Até à altura em que não tinha encerrado, havia muita gente que ficava e que fazia compras. Os comerciantes sentiam a presença das pessoas. Mas com a evolução automóvel, as pessoas vêm e voltam logo para casa. Trazem carro próprio. É muito mais fácil. Muitas vezes nós reclamamos: “já não é como era antigamente”. É diferente, é diferente.

Não obstante, ainda há gente que vem e que fica. Porque há tratamentos que demoram algum tempo. Uns fazem tratamentos de lama, outros de banheira, vamos dizer assim. E isso obriga-os a estar aqui [mais tempo]. Podem ficar aqui quase até à hora do almoço. Esse movimento, nos restaurantes, ainda se faz sentir, porque muitas pessoas terminam os seus tratamentos à hora de almoçar. Alguns aproveitam para visitar Vizela e mais tarde regressam já noutra perspectiva, para conhecer melhor [o concelho].

E depois uma das coisas que continua a trazer gente aqui são as pessoas. As pessoas daqui sempre sentiram – e sentem – que quem vem às termas deve ser tratado com carinho. Porque isso traz mais-valias para Vizela e isso é que nos interessa. Nota-se sobretudo no período entre meados de Abril e Setembro. Nesse período é que vemos mais gente aqui. Notamos que há gente diferente – até pela forma de vestir nós sabemos que se tratam de visitas termais.

Chaminé junto ao rio Vizela

Uma antiga chaminé como testemunho do passado industrial

E voltando agora a um outro tempo em que as termas perderam importância. Estamos a falar de 1930 para a frente, sensivelmente, em que Vizela se virou para a indústria. Que indústrias eram estas?

Essencialmente têxteis. Porque a partir de 1920 e 1930 o têxtil começa a impor-se. Do lado mais a norte, por causa do rio Ave, e nós aqui por causa do rio Vizela. Porque essas empresas eram criadas junto do rio para aproveitar as águas. Se repararmos, quase todas elas estão na margem do rio. Aquelas outras que se criaram mais tarde, nos finais dos anos setenta, e que estão fora das margens do rio, vão captar a água ao rio na mesma. Nós vemos isso com a Mundotextil, que é uma empresa de grande gabarito, que vai buscar as águas ao rio Vizela. Tem de ser assim. Há tinturarias, necessitam de água limpa… Antigamente tirava-se a água de qualquer forma. Com a entrada de Portugal na CEE, tivemos de nos ajustar. E agora o rio já vem muito mais limpo. Já se vê o fundo. Já se vê o leito.

Por acaso, hoje estive nas Cascatas de Santa Eulália. Fiz aquele percurso…

Ah, foi lá?

Sim. E ali a ribeira de Sá, que é um afluente do rio Vizela, está limpa de poluição, correcto?

Está limpa, sim. E agora há por lá umas trutas.

E há quem lá tome banho? Junto às cascatas?

Junto às cascatas, no Verão, há lá gente sempre. Agora, [com o passadiço], não sei como vai ser. Porque as cascatas eram quase incógnitas. A primeira vez que eu fotografei aquilo foi nos anos oitenta. Depois nos anos noventa voltei lá. Só meia dúzia de pessoas é que conhecia aquilo, aqueles que gostam de fotografia ou que gostam de desporto na natureza. Os escuteiros também. E por isso dizemos que divulgar pode ser mau. Esperemos que não seja o caso das Cascatas de Rompecias – é assim que se chamam.

Espero bem que com a inauguração [do passadiço], e com a ida de novas pessoas lá, se tenha cuidado. Há sempre alguém que se distrai, infelizmente. Cada um de nós tem de ser um pouco polícia. Polícia no bom sentido, claro. Se alguém deita lixo para o chão deve ser chamado à atenção.

Mas penso que vai ser importante para Vizela. Da mesma forma que me perguntou se havia gente de Vizela que não conhecia as termas, há muita gente que lhe digo que vai conhecer aquelas cascatas agora. Eu já conhecia há muitos anos porque aquilo nasce no terreno de um amigo pessoal. É de facto um lugar espantoso. Muita gente vai ficar admirada quando lá chegar.

E já que estávamos a falar de fábricas… a célebre fábrica de papel. Porque é que ela ainda é falada hoje?

É simples. Na altura, o papel era feito de trapo. As fábricas que existiam para fazer papel faziam-no de trapo. E a primeira fábrica da Europa a fazer papel a partir de pasta vegetal foi esta do Joaquim Francisco Moreira de Sá, que era avô da grande poetisa Ana de Sá. Foi ele o primeiro a fazer papel a partir de pasta vegetal. Para isso trouxe de Inglaterra um engenheiro e maquinismo. E criou uma fábrica num terreno que pertencia à família, que era da nobre Casa de Sá, uma das casas mais nobres de Vizela – vem desde 1500.

Corre a ribeira de Sá até ao Vizela

A ribeira de Sá logo depois das Cascatas de Rompecias

A fábrica durou pouco tempo. Teve autorização régia para ser construída em 1802. E em 1809 dão-se as Invasões Francesas. Na altura, quando Portugal é invadido, os jovens livres daqui da região lutaram contra os franceses. Ele [Joaquim Moreira de Sá], como cavaleiro pertencente à Casa Real, capitaneou uma série de homens e lutou contra os franceses. Mas foi derrotado. E como represália, os franceses destruíram a fábrica.

Os alemães e os próprios franceses, mais tarde, disseram que foram eles os primeiros a fazer papel [a partir de pasta vegetal], mas não. O Pereira Caldas, que nasceu em 1818, ainda viu vestígios da fábrica, e escreveu sobre isso, fazendo indicação da fábrica de papel de pasta vegetal das Caldas de Vizela, num livro que já não se encontra, está esgotado. Mas há cópias [do livro] em que ele prova e comprova que é aqui que está a fábrica, junto à margem ribeira de Sá, naquele terreno em cima…

Ainda há ruínas?

Há uma ou outra pedra, só. Porque as ruínas foram aproveitadas para as pessoas que construíram ao lado. É natural. Agora, comprova-se efectivamente que a fábrica existiu. De tal maneira que há um poema daquela altura escrito em papel lá feito. Há é dúvidas se chegou a laborar na sua plenitude, e se calhar não. Porque além de fábrica de papel, era tinturaria também, e aquilo era feito por fases. Como entretanto Portugal foi invadido, se calhar não chegou a laborar na sua plenitude. Mas efectivamente, foi Joaquim Francisco Moreira de Sá que fez a primeira fábrica de papel. É mais um orgulho, mais um pergaminho, digamos assim, que Vizela usa, em determinados momentos, para dizer “nós temos história”. E com razão.

E por isso dizemos que divulgar pode ser mau. Esperemos que não seja o caso das Cascatas de Rompecias.

Esquecendo agora a indústria e indo um pouco às festas… Suponho que a festa mais importante do concelho seja a do São Bentinho.

Sim, é uma das mais importantes. [É uma] procissão que se faz em São Miguel das Caldas e em São Salvador de Tagilde – faz-se num ano numa freguesia e no ano seguinte noutra. Os bombeiros levam a imagem do São Bento até lá acima e as pessoas vão todas a acompanhar. Começou em mil novecentos e sessenta e pouco. Mas já antes era feita peregrinação, pelos anos trinta. Partia de uma capelinha particular que o vulgo chama São Crau, mas que é referente a São Cláudio, e que fica na fronteira entre Tagilde e São Miguel das Caldas. Havia duas: uma por altura de São Bento e outra por Janeiro ou Março.

A de São Bento é quando?

A de São Bento é a 11 de Julho. [Depois] houve um pedaço de tempo sem haver peregrinações. A partir dos anos sessenta, recomeçou. Ainda não se sabe exactamente quando, anda para aí muita gente à procura a ver se descobre a data. Creio que recomeçou quando eu parti para a Guiné, portanto em 1969 ou 1970, porque não tenho memória de ver a primeira, e como não tenho memória é porque se calhar estava ausente.

A [nova] procissão começa desde São Miguel. Leva a imagem e esta é depois recolhida na igreja de Tagilde.

Então a imagem não pernoita no santuário de São Bento.

Fica lá de um ano para o outro. Faz um retorno até ao São Bento. A imagem que lá está, na capela primitiva, é aquela que vai em peregrinação. Os bombeiros vão buscá-la, no dia anterior, e levam para a igreja [correspondente] que, neste caso, este ano, parece-me que é a de Tagilde. No dia de São Bentinho, a procissão sai de Tagilde e vem por aqui… No ano seguinte, sai de São Miguel…

É uma procissão de fé muito importante. Leva gente de todas estas redondezas, mesmo não pertencente a Vizela. Os clamores, que vêm de longe, são pelos milagres que o São Bento faz, ou pretensamente faz. As pessoas levam-lhe coisas brancas…

Fachada de um dos Casinos de Vizela

A nobre fachada de um dos velhos Casinos de Vizela

De onde é que acha que isso vem, a oferta de coisas brancas ao São Bentinho?

Não sei, não sei. Diz-se que o São Bento é puro, e o branco está associado à pureza. Daí que, primitivamente, as promessas eram feitas com sal. O sal também significa pureza. Se recuarmos, sabemos que em muitos locais se pagava com sal, o sal tinha grande valor. Sal significava riqueza. Portanto, a partir daqui, o branco ficou. As pessoas começaram a sentir necessidade de levar coisas brancas. Daí que se pintem os penedos de branco também. E muito mais para trás, havia um grupinho que era o dos Amiguinhos de São Bento que, quando ia em novenas, se vestia de branco.

O São Bento da Porta Aberta, no Gerês, tem um rito muito parecido. As ofertas também são feitas com sal.

Sim. Tem que ver um pouco com isso. A riqueza que o sal tinha em tempos primitivos.

A primeira referência que eu tenho do São Bento das Peras de Vizela data de 1220. Há uma sentença do rei… Na altura, havia uma rivalidade muito grande entre os dois párocos de São Miguel e de Tagilde. Daí que, para evitar essas coisas, agora a peregrinação se faça uma vez numa [freguesia], e outra vez noutra. Aconteceu o mesmo no monte de São Pedro e por causa disso a capela foi destruída e acabou-se o culto ao São Pedro, mas estão lá as ruínas, já as fotografei. E com o São Bento, para que isso não acontecesse, fez-se assim. Porque o São Bento não é só patrono desta ou daquela freguesia… é patrono de toda esta região, mesmo daqueles que não são oriundos de Vizela mas vão lá em clamores durante o ano inteiro.

E em tempos idos era bem pior do que agora. Hoje a romaria tem protecção. Mas por volta dos anos trinta, aproveitava-se a altura da romaria para ajustes de contas. Ainda me recordo, jovem, de ouvir falar coisas como “no dia de São Bento já levas”…

Além da do São Bentinho há mais alguma procissão que se destaque? Temos a Senhora da Tocha…

Sim, é muito importante, a da Senhora da Tocha

São as duas mais importantes, a de São Bento e a da Senhora da Tocha?

Em termos religiosos, sim. Mas há outra festa muito importante que é a da Senhora das Candeias, em São Miguel.

Essa é no Inverno?

Sim, no Inverno, mês de Fevereiro. É um rito especial e que não é só de Vizela. Dizem que se no dia [da procissão] a Senhora das Candeias se estiver a rir (ou seja, se estiver sol), está o Inverno para vir, e que se estiver a chorar (ou seja, se estiver a chover), está o Inverno a passar.

Também a Semana Santa na igreja de São João é importantíssima. Em São Miguel também se faz. Na quinta-feira antes da Páscoa, há a visita aos doentes… Na sexta-feira, a Procissão do Enterro, normalmente feita pela igreja de São João, que traz milhares de pessoas a Vizela. Equivalente, ou muito próximo, se calhar só a [Semana Santa] de Braga. Estão muita arreigadas nesta região as celebridades da Semana Santa, nomeadamente o Enterro do Senhor.

Depois há aquelas procissões normais, dedicadas ao padroeiro de São Miguel. Em São João não há festa dedicada ao padroeiro. São Miguel, sim, há, em Setembro. Festas religiosas são estas as mais importantes e as que gozam do carinho deste povo.

Acontece que Guimarães, com receio de que as pessoas de Vizela pedissem à rainha a emancipação, e o receio era fundado, retardaram a cerimónia em Guimarães para a rainha não ter de vir cá…

Queria falar um pouco da autonomia vizelense e da sua história. Vem de trás. Sei menos de Vizela do que o Júlio, mas li muito sobre o concelho neste último mês, e dá-me a entender que a razão para a autonomia de Vizela é até anterior àqueles 47 anos de independência na Idade Média. O desejo de autonomia parece ser fundado até na ideia das termas, da civilização termal romana que existiu aqui. Porque as termas sempre existiram aqui e isso no inconsciente das pessoas funciona.

Sim, no caso dos romanos está provado que eles estiveram aqui. Mas a primeira vez que Vizela (ou as águas de Vizela) é referida vem do tempo dos Suevos, do Teodemiro – [só aí] é referida em termos escritos. No ano de 607 da nossa era, com a criação do bispado de Lugo. Várias paróquias passaram a pertencer ao bispado de Lugo e outras à diocese de Braga. Entre estas está Oculis Calidarum, que é a nossa Vizela mas naquele tempo. Isto é tão verdade que trezentos anos depois, em 1014, o rei D. Afonso V fez uma doação de uns terrenos, e refere “Sancti Michaelis de Oculis Calidarum“, o que confirma que Oculis Calidarum integra a nossa freguesia [de São Miguel]. Isso está na Universidade de Coimbra. Eu tenho isso em mãos porque alguém trouxe cá para fora e essas coisas passam-se de uns para os outros. Portanto, já se dizia Oculis Calidarum em função dos olhos de água quente que aqui existiam, diz o José Leite de Vasconcelos. Esses “olhos de água” levaram o José Leite de Vasconcelos e outros a pesquisarem mais [sobre a história de Vizela].

A partir de 1700 é quando se começa a formar aquilo que é hoje Vizela. Os tais “olhos de água” começaram a brotar nesta zona da Lameira, onde agora está a Praça da República. Os antigos já se banhavam naqueles charcos e viam que [o banho] lhes fazia bem. Começou-se a estudar e a querer saber o que aquilo era. O Pereira Caldas começa a estudar e a preocupar-se com as águas, porque o terreno que estava na zona da Lameira era do pai dele, o António Pereira da Silva, que tem o nome de uma rua em Vizela e que foi dos primeiros professores em Portugal. Eram pessoas de grande conhecimento. É a partir daqui que as águas começam a brotar e que as pessoas começam a vir. A coisa vai-se propagando. O Pereira Caldas, em 1845, já tinha visitado toda a Europa para ver onde é que havia caldas e escreve um livro sobre as virtudes terapêuticas das águas de Vizela, isto antes do Abílio Torres nascer. Portanto, é das primeiras pessoas a estudar as nossas águas. Ele [Pereira Caldas] é patrono da escola Sá de Miranda, em Braga, porque foi lá professor durante muitos anos. Estudou medicina, estudou química, estudou inclusivamente árabe. Fez música. Fez livros sobre as termas. O Joaquim da Silva Pereira Caldas era um homem extraordinário na história de Vizela. Para mim é o homem mais importante da história de Vizela. E ele é só “da Silva Pereira” – mas quando alguém dizia “o Silva Pereira” e alguém perguntava “qual Silva Pereira?”, o outro respondia, “o das Caldas”. E assim se juntou “Caldas” ao nome, tanto que ele normalmente escreve o seu nome completo e depois de um traço coloca “Caldas” em maiúscula. Os livros dele estão todos assinados assim.

E é essa ideia das termas que separa Vizela de Guimarães, ou há mais qualquer coisa?

Havia o sentir de que quem tratava das termas quando éramos parte do concelho de Guimarães não lhe dava o devido valor. Que havia um certo desprezo, até. Esse sentir de que éramos menosprezados, e isso vem desde há trezentos anos, foi criando nas pessoas uma rivalidade que foi passando de geração em geração. O primeiro período da emancipação de Vizela é em 1852 e não em 1869, como diz o Pinho Leal. O Pinho Leal, no seu “Portugal Antigo e Moderno” diz que o primeiro pedido foi feito em 1869. Mas não, foi em 1852, porque no dia 17 de Maio de 1852 a rainha [D. Maria II] veio a Guimarães e estava programado vir a Vizela. Iria descer pela rua que nós hoje chamamos de rua da Rainha, que na verdade é a rua Pereira Caldas, para ir ver os Banhos do Paulino, que é aquela casa amarela por onde passámos. Os Banhos do Paulino eram muito elogiados por quem cá vinha, pessoas novas e etecetera. Acontece que Guimarães, com receio de que as pessoas de Vizela pedissem à rainha a emancipação, e o receio era fundado, retardaram a cerimónia em Guimarães para a rainha não ter de vir cá…

Parede com recortes de jornal e laje de homenagem aos jornalistas

Monumento de Homenagem aos Jornalistas – um agradecimento a quem escreveu sobre a autonomia vizelense

E não chegou a vir…

Não chegou a vir. Daí que, no dia 21, quatro dias depois, chegou a tal petição que era para lhe ser entregue em mãos. Essa petição está na Torre do Tombo, eu comprei [uma cópia]. E é muito interessante porque tenho um desenho, feito à mão, daquilo que seria o concelho. Era muito mais do que isto [o concelho actual]. E tem uma coisa muito engraçada: as assinaturas de várias pessoas das freguesias, dos párocos, das pessoas mais ricas, das pessoas mais nobres, das que tinham mais posses, das que sabiam ler.

O que eu acho interessante nessa petição é que [ela] diz assim: “aqui vão as assinaturas de todos aqueles que desejam que Vizela seja concelho, e muitas mais seriam, senhores, se a educação já tivesse chegado a estas paragens”. É engraçado. E é a partir daqui que isto se forma e dura até aos nossos dias. Com o 25 de Abril pensou-se que, dada a liberdade, ia ser aí. Também não foi. Até que o Guterres disse que, se fosse Primeiro-Ministro, Vizela seria concelho, e cumpriu.

Eu era miúdo e sempre ouvi falar disto…

Primeira página do dossiê que relata a história da emancipação de Vizela

Dossiê organizado por Albano Ribeiro, da Adega Avelino, sobre a história da emancipação de Vizela

Da autonomia?

Da autonomia… Já vinha dos avós, já vinha dos pais, já vinha de toda a gente. Era transmitido de geração em geração, isto passava-se de uns para os outros. Todos os dias se clamava por isto. Aquela rivalidade que havia [por Guimarães] – e havia até uma certa animosidade – acabou com a autonomia. Há rapazes de Vizela casados com raparigas de Guimarães, e o contrário também. E estamos em paz.

Mas tínhamos histórias maravilhosas. Havia um sujeito castiço que tinha uma barbearia que uma vez recebeu um telefonema em que lhe perguntaram “está aí o Presidente da Câmara de Vizela?”, e ele respondeu, “olhe, foi ali com a sua mãe, espere só um minuto”… aquelas picardias…

Mas a luta era tão dura e tão forte que há um outro episódio que pouca gente conhece – porque a maioria das pessoas que viveu isto já partiu. Recordo-me, porque o meu pai me contava e eu depois procurei por isso, que em 1933 o Vitória Sport Clube [nota: ou seja, o Vitória de Guimarães] foi jogar ao Boavista ali à beira das Aves, e no regresso houve por aqui um apedrejamento ao comboio. O meu pai conta-me que tinha 14 anos e vendeu os ovos que ele tinha para atirar ao comboio. Isso foi muito falado e tinha a ver com a rivalidade que havia já nessa altura. E para trás havia ainda mais. O Dr. Armindo Freitas Ribeiro de Faria criou o Castelo porque lhe prometeram que se houvesse um sítio próprio para receber os Paços do Concelho, Vizela seria concelho – e ele construiu-o com parte da sua fortuna.

E já agora, antes de Vizela ter a sua autonomia, era frequente as pessoas de Vizela irem a Guimarães? Claro que para tratar de assuntos relativos à autarquia não havia outra hipótese, mas fora esses casos…

Íamos muitas vezes… A juventude ia ao cinema, ia aos bares… E namorava com raparigas de lá, quando se roubava uma rapariga de lá era uma vitória… Mas eles também vinham aqui. Naquele período rico de Vizela, Vizela era muito mais importante do que Guimarães.

Está a falar do início do século XX…

Até aos anos quarenta. Até à II Guerra Mundial. Desde o início do século até 1940. Ou mesmo até 1960. Eu lembro-me de na década de sessenta os hotéis estarem completamente cheios. Até aos meus vinte anos havia muita gente aqui. As pessoas vinham para cá porque isto era extremamente cosmopolita. As pessoas de Guimarães vinham para aqui como também vinham de Santo Tirso, do Porto… Havia gente de todo o tipo. Fazíamos torneios de tiro aos pratos, de tiro aos pombos, corridas de remo, torneios de ténis, mais atrás ainda havia as burricadas que eram corridas burros… E as meninas de bem, ou as pessoas de bem, faziam passeios de burrinha às várias freguesias… Tudo isso trazia gente para aqui. Isto até ao ano de 1965 ou 1966. Se nos anos trinta e pouco chegaram a estar onze hotéis em simultâneo a funcionar, nos anos sessenta, e mesmo quando voltei do Ultramar em setenta e pouco, ainda havia o Hotel Universal e o Hotel Sul Americano, dois hotéis que estavam constantemente cheios no período termal, e isto fora as pensões.

Depois as coisas foram evoluindo, as pessoas começaram a ter mais automóveis, e aquele fluxo diário constante perdeu-se um bocado. As pessoas vêm e regressam. Os estacionamentos estão cheios de carros dessas pessoas que vêm e voltam logo a seguir, depois de irem às termas.

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