Capela de Nossa Senhora da Tocha

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A Capela de Nossa Senhora da Tocha (a sul) encontra-se num cerro castrejo diametralmente oposto ao Monte de São Bento (a norte). São os dois principais polos espirituais e lendários do concelho vizelense, separados pelo rio e pelo vale de Vizela. O centro urbano, brotado da provecta estância termal romana, fica a poente de ambos, equidistante de cada um destes lugares sagrados, a completar o último vértice de um triângulo que aponta para ocidente.
O monte da Senhora da Tocha
Quem vem da Igreja de Santo Adrião até à estrada principal decerto notará, na frente dos olhos e na força das pernas, um declive crescente que segue até sul. A colina é pequena, dá para o perceber, e é com isso na cabeça que nos fazemos ao asfalto sem ajuda de motores.
A marcha faz-se calmamente. Um e outro cruzeiro vão aparecendo nos cômpitos, como espantalhos em campos hortícolas, a sugerir estarmos já em solo sacro. O esforço maior acontece no fim, quando o trilho se torna ladeirento o suficiente para termos de nos empurrar para cima com as mãos nos joelhos, até darmos com a escadaria final, granítica e angulosa, de onde já se consegue ver a capela. No cocuruto onde o templo assenta pés é mais fácil imaginar como seria o velho bastião galaico, um que muito provavelmente resistiu a Roma até ser por ela assimilada. Até a capela, com o ornamento dos merlões, passa por um forte de modesta dimensão. Contornar a ermida é, aliás, uma boa forma de testemunhar como dali se fazia vigia. Uma mirada dirigida a norte vê boa parte do vale de Vizela. Uma outra apontada a sul conhece o início do concelho de Felgueiras.
Voltando ao monumento. É essa espécie de muralha a amparar a cobertura que torna a capela tão distinta. Não se trata de uma igreja-fortaleza, como é exemplo a Sé do Porto. As ameias, por aqui, são decorativas, em esculturas meio toscas, que lembram a inocência dos altos relevos românicos. Nos panos laterais, os afloramentos misturam-se com os alçados, a sublinhar novamente um traçado rústico, despojado, muito devedor, mais uma vez, da arquitectura românica, que se prolonga até ao interior.
Lá dentro encontram-se duas imagens – duas Marias, ou, na verdade, duas Senhoras da Tocha, uma nova e uma velha, tendo a primeira substituindo a segunda, e ficando a segunda relegada à condição de Santa Capeluda, de acordo com o testemunho de Pedro Vitorino, num bonito texto que dedicou à ermida aqui presente. A estas imagens acorriam mulheres em vias de parir a pedir a sua hora pequenina. Aqui voltavam, depois, a agradecer, e aí com uma novidade – tinham direito a repicar o sino suspenso acima da portada a anunciar o novo vizelense entregue ao mundo, para que toda a vizinhança o soubesse, gesto esse que, segundo percebi, ainda se repete.
Júlio César Ferreira, com pertinência, relaciona o atributo desta Senhora, a tocha, à ideia de luz, e a luz ao parto. Chevalier, por sua vez, di-lo preto no branco: “a luz é uma expressão das forças fecundantes”. Com efeito, uma procissão de círios dedicada à nova Senhora da Tocha é preparada todos os anos, no mês de Maio, e não por acaso nela se dá destaque às mães com os seus bebés e crianças de tenra idade. Na romaria, muitas dessas mulheres que recentemente conceberam apresentam pose em tudo idêntica à da Maria a quem acodem – vela de um lado, bebé do outro, tal como a sua Senhora, com a tocha na mão direita e o Menino no braço esquerdo. O chão é atapetado com fitas pintadas que reproduzem a imagem de flores várias. Mais uma vez, a ode à cor, à floração, à Primavera, à alvorada da vida. Este elo entre a Senhora da Tocha e a luz levou o vimaranense Martins Sarmento a associá-la à Lucina romana (ou à Ilítia grega), filha de Júpiter e Juno, habitualmente representada como uma portadora de luz e também ela padroeira dos partos.
Curiosamente ou não, Santa Lucina, cujo nome imediatamente remete para a Lucina romana citada por Martins Sarmento, foi a mulher que, segundo crença, salvou São Sebastião da sua tentativa de execução, e essa é exactamente a imagem que descobrimos no cruzeiro situado na Igreja de Santo Adrião, a cinco minutos daqui.

Vista para o concelho de Felgueiras, das traseiras da Senhora da Tocha

A capela castreja do monte da Senhora da Tocha
A Senhora da Tocha ou a Senhora de Atocha
Para baralhar tudo isto, o já mencionado texto de Pedro Vitorino, escrito em 1924, chama a atenção para um relevante apontamento vindo de Martins Sarmento: diz ele que o povo pronunciava a palavra tocha de forma particular, não como tocha, mas sim como átocha, ou seja, Senhora Dátocha, com sílaba tónica no dá. Presentemente isso não acontece. Ouvimo-lo tal qual se escreve: Senhora da Tocha. De qualquer modo, a anotação de Martins Sarmento foi o ponto de partida para Pedro Vitorino relacionar a Senhora da Tocha de Vizela com a Señora de Atocha de Madrid, fazendo um paralelismo entre o capeliço usado por ambas. A juntar, o tal capeliço justificaria o outro nome dado à velha Senhora da Tocha, agora conhecida como Santa Capeluda.
Por outro lado, e como contraponto à hipótese aventurada por Pedro Vitorino, os ritos da Senhora da Tocha vizelense e da Senhora de Atocha madrilena não convergem. As devoções prestadas a uma e a outra são bem distintas. As datas em que são celebradas também. A ligação entre uma e outra poderá ser apenas fonética (e actualmente, nem isso), o que não significa, contudo, que a possibilidade apresentada por Pedro Vitorino esteja errada.
A adensar o mistério de um dos mais enigmáticos monumentos do Norte estão alguns relatos de carácter lendário. Um que fala da existência de um túnel que desembocava junto do rio, talvez a menos criativa de todas as narrativas que sobre ele se contam, já que histórias deste tipo são replicadas em vários montes sagrados portugueses. Outro que reclama a capela como uma obra dos mouros, também um produto da tradição oral relativamente comum. Um que defende que até as sarracenas invocavam a Senhora da Tocha na altura em que davam à luz para depois, envergonhadamente, e já estando o parto terminado, a varrerem das suas cabeças. E ainda mais um que afirma que aqui existia uma moura encantada transformada em serpente ou cobra amarela, o que a mim me relembra sempre de como os gregos uma vez chamaram a este canto europeu: Ophiussa, a terra das serpentes.

A Senhora, o menino, e a tocha

Señora de Atocha, a mais antiga padroeira de Madrid
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Mapa
Coordenadas de GPS: lat=41.36255 ; lon=-8.28223