Termas de Vizela
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É pena que a denominação Caldas de Vizela tenha sido reduzida para a que hoje mais corre: Vizela. A recente terminologia, talvez vítima desta estranha modernice de tudo ter de ser imediato, apenas alude ao rio que atravessa o concelho, esquecendo o factor mais identitário do território vizelense, isto é, o carácter mineromedicinal das suas águas fluviais. O mesmo fenómeno aconteceu com outras terras termais portuguesas, como por exemplo a vila do Gerês, a que já quase ninguém chama Caldas do Gerês, e ainda menos sorte teve a cidade de Chaves quando largou a Aquae que lhe completava o nome. O tempo que se poupa com a eliminação de alguns termos não compensa o que se perde na explicação da toponímia.
No caso de Vizela, uma chamada às suas Caldas não é apenas uma teimosia, mas sim um sinal de justiça. A história de Vizela confunde-se com a história das termas. Não por acaso, até ao século XIX, os altos e baixos desta pólis finalmente promovida a concelho foram os altos e baixos da sua vida termal, uma correlação que só deixou de ser tão óbvia depois da profunda operação de industrialização que se verificou a partir do século XX.
Uma longa história de águas orgânicas e bormânicas
É sabido o vício romano pelas águas quentes e curativas, quando não iniciáticas e libidinosas. Contudo, é de bom rigor dizer que o hábito vinha de trás, de tribos galaicas, como parecem atestar alguns dos achados na Lameira, nomeadamente duas lápides consagradas a Bormânico, divindade provavelmente céltica, adorado em regiões conhecidas pela sua actividade termal – primeiramente, tudo indica, na Ásia Menor, no Estreito de Bósforo, actual Turquia, com migração posterior até à Gália, onde estaria na origem do nome de algumas povoações como Bourbonne-les-Bains, cujo topónimo não engana na sua relação com os banhos.
Bormânico seria, de forma genérica, objecto de devoção galaica como um Deus curador, tendo como equivalente o romano Esculápio ou, ficando aqui mais pertinho, eventualmente o lusitano Endovélico, ambos Deuses da Medicina. Como as águas borbulhantes eram associadas a funções terapêuticas, a ligação entre termas e saúde fez com que certos Deuses medicinais fossem venerados junto das suas nascentes.
Também é ponto assente que os romanos, seguindo os passos da anterior cultura helénica, deram aos banhos sulforosos uma dimensão não antes vista. As águas termais, pela sua particularidade, sobretudo no que respeita à temperatura, começaram a ser vistas pelas gentes do Lácio como curativas, mas rapidamente se tornaram bem mais do que isso: a elas se acorria como fonte de expiação, de iniciação, de lascívia, e, de certa forma, de estatuto. Com estas finalidades devem também ter sido usadas as termas em Vizela, na zona da Lameira (agora Praça da República, o axis mundi de Vizela) desde o século II a.C., seguindo até ao século IV da nossa era.
Com o desmoronamento do império romano no lado ocidental da Europa, as termas ressentem-se. Há alguns testemunhos, poucos, acerca do uso de banhos sulfurosos por parte da elite guerreira visigoda e pode ter sido antes disso, durante o domínio suevo (século V ou VI, há quem aponte para mais tarde), que a este território se atribuiu o título de Oculis Calidarum, no que se entende ser uma óbvia referência às águas quentes que brotam das nascentes vizelenses. De resto, é praticamente uma certeza que muitos dos espaços termais não beneficiaram de qualquer manutenção por altura das invasões bárbaras, sendo até possível que alguns tivessem sido intencionalmente destruídos. A consolidação do cristianismo abriu também caminho para a denúncia de determinados comportamentos frequentemente relacionados com as termas, tidos como promíscuos e perversos e hereges aos olhos de uma nova perspectiva religiosa.
O que aconteceu em Vizela durante toda a Idade Média acompanha a realidade termal europeia – com um punhado de excepções localizadas sobretudo na Europa Central, pouco se sabe acerca dos banhos terapêuticos durante o longo período entre os séculos V e XV, o que leva a crer que eles foram esquecidos ou, no mínimo, desprezados. Talvez tenha existido, porventura, alguma actividade aquando do ataque da lepra, mas nem isso podemos dizer com acerto.
A recuperação da actividade dos banhos em águas mineromedicinais começou por volta do século XIV na Europa, a reboque do Renascimento, movimento pluridimensional que, da filosofia à arte, teve na Antiguidade Clássica a sua âncora. A mundivisão europeia olhava para trás e escolhia Roma e Atenas como as fundações para uma nova vivência. As termas que tanta aversão provocaram às altas patentes da evangelização, para quem eram sinónimas de um paganismo pré-Cristão, voltaram a ser palco de gente abastada. Em Portugal, a tendência chegou com o atraso do costume. António Pires da Silva, em finais do século XVII, menciona uma “fonte sulfúrea que rebenta em diversas partes” próxima de Guimarães. Muito possivelmente, refere-se à das Caldas de Vizela, o que significa que, mesmo tardando, Portugal seguiu a orientação do resto do continente.
As termas vão em crescendo, na Europa e em Vizela, até ao início do século XIX. As guerras de Napoleão dão um primeiro revés. Dentro de fronteiras, a Guerra Civil entre liberais e absolutistas dão um segundo. É preciso esperar pela segunda metade do século XIX para assistirmos a novo disparo na procura de caldas como meio lúdico ou terapêutico. Em Vizela, houve um empurrão adicional: a chegada dos caminhos de ferro. A partir daí, a conjuntura não podia ser mais favorável. Em torno dos banhos, que se concentravam maioritariamente no Mourisco e nas Termas, montaram-se novos negócios. Um parque de árvores altivas e exóticas com campos de ténis e ringue de patinagem. Diversos casinos para os ricos brincarem nas roletas. Na frente ribeirinha rebentavam chalets. Mais de duas mãos cheia de hotéis prepararam-se para receber aquistas das cidades vizinhas, com o Porto à cabeça. É nestes anos que Camilo dedica prosa às águas quentes vizelenses – ele que aqui atenuava as dores reumáticas -, colocando-as como cenário de encontros e engates: “D. Caetana, que se cura mais por amor que pelo enxofre dos banhos tépidos”.
Vizela repetia a sua história. Se pegarmos nos loucos anos 20, uma década dada a excessos, podemos até dizer que a roda-viva em que Caldas de Vizela se tinha transformado só encontrava paralelo nas libertinagens romanas que ali se praticaram dois mil anos antes. A Dra. Maria José Pacheco destaca a exuberância das festas e dos bailes, trazida por uma inédita classe feminina que então se emancipava, “verdadeiros acontecimentos sociais para uma elite da sociedade mundana do Norte”.
Mas o estonteante carrossel de vaidades voltou a quebrar após a década de 1930. Caldas de Vizela é apenas um exemplo, porque o tombo foi transversal a todo o país. As causas? Os efeitos da grande depressão, por um lado. A Guerra Civil de Espanha, por outro. Também a concorrência das estações termais estrangeiras, que ficaram na moda para a nata da sociedade nortenha. E, no caso de Vizela em particular, o crescimento da indústria têxtil que poderá ter afectado negativamente uma paisagem outrora bucólica e idílica, digo eu – os efeitos das fábricas e a falta de regulação das suas descargas, embora mais controlados, ainda hoje se sentem. Depois, a evolução da medicina que retirou muitos clientes que, por doença, se serviam das águas sulfúricas em busca de alívio. E o turismo de praia, que progressivamente cresceu ao longo do século XX, desviou outra parte da clientela que aqui vinha por prazer.
Na última década, aproveitando uma mudança nos hábitos dos consumidores, uma convergência de interesses privados e públicos voltou a colocar Vizela no mapa das estâncias termais portuguesas. Ainda bem, porque o boom industrial da primeira metade do passado século começou a definhar com a globalização dos mercados, mormente o têxtil. Regressar Vizela às suas caldas não é apenas um saudosismo, é uma necessidade. Com resultados bem práticos: clientes mais velhos que procuram terapia e clientes mais novos que buscam bem-estar podem neste momento banhar-se nos seus vapores.
Painel de azulejos comemorativo das Termas de Vizela
As encerradas termas do Mourisco
As termas no presente
Quem quiser sentir o calor das águas de Vizela pode fazê-lo nas instalações termais que estão entre a Ponte Nova e a Ponte Romana. A temperatura vai acima dos trinta graus e há uma sequência de jactos e propulsores a percorrer – se deixarmos a pressa à porta, a coisa faz-se bem numa hora. Saímos de lá com a leveza de quem expurgou a culpa da mente e a agonia dos ossos. Em larga medida, para lá das excelentes hidromassagens, a jornada em volta do tanque sulfuroso é uma experiência com o seu quê de religiosa, de reconexão com o eu, sem urgência, sem telemóvel, sem distracção. Calhou-me até a sorte de ver por lá um casal que, antes de arredar pé da piscina, terminou o giro a dançar uma valsa lentificada pelo caldo. Malta feliz, a que nada neste mar.
Claro, o que aqui presenciamos está longe da montra de pavões que aqui rolava há um século. A high-society do Entre-Douro-e-Minho já cá não vem em massa. Arranjou outras maneiras de afirmar a sua condição. O que nem é mau. O ir às termas tornou-se mais um prazer do que uma expressão de classe. Antes ia quem podia, agora vai quem quer. Ou quem precisa – porque para muitos as caldas são um comprimido para as artroses, o sistema nervoso, as vias respiratórias, os burnouts…
Infelizmente, nas horas que correm, as Termas de Vizela são as únicas a operar. As do Mourisco, situadas num edifício de inspiração mudéjar na margem oposta, a montante, encontram-se fechadas. Disse-me Júlio César Ferreira, um manual de conhecimento sobre a sua Vizela natal, que as águas do Mourisco eram muito boas. Li também que tinham uma abordagem diferente à terapêutica, de tradição mais oriental, e com enfoque nas doenças da pele, o que só ajudaria à diferenciação. Haja alguém que lhes pegue.
Promoções para dormidas em Vizela
Mapa
Coordenadas de GPS: lat=41.37387 ; lon=-8.3087