Sopa Seca
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Nestes dias, quando o pão está velho e duro, são muitos os que o atiram para o lixo. Alguns, talvez por vergonha, beijam o pão na despedida, antes de se desfazerem dele. Noutros tempos, contudo, quando a fome era grande e a bolsa pequena, nem meia carcaça conheceu as agruras do entulho. Nas classes menos afortunadas, as sobras de um dia alimentavam a refeição do seguinte. E o pão, por muito rijo que estivesse, entrava num laboratório de aproveitamento onde, sob mãos conhecedoras de saberes seculares, virava novo pitéu. Assim aconteceu com a Sopa Seca. também conhecida como sobremesa dos pobres, prato festivo da antiga província do Douro Litoral.
Sopa doce
A Sopa Seca não é um caldo – como, de resto, o título sugere. Mas a surpresa não é só essa. Na realidade, a Sopa Seca é doce, funciona sobretudo como sobremesa, pelo menos na forma como é cozinhada em Valongo, Penafiel, Castelo de Paiva ou Marco de Canaveses, antes de ser posteriormente transportada para o Alto Minho, onde viria a sofrer algumas mudanças, nomeadamente na substituição da água por uma calda onde se cozeram vários tipos de carne. Existe, entretanto, uma outra Sopa Seca realmente carnívora, embora este preparo venha de Trás-os-Montes, tendo sido celebrizado pelo maravilhoso Maria Rita, no concelho de Mirandela.
O que aqui nos interessa é a versão doce e não a fórmula transmontana. A Sopa Seca duriense, isto é, a sopa de pão e açúcar que se cozinhava em dias de festa, era prato de gente pobre e reservava-se para dias como o de Natal, o de Carnaval, o de Páscoa, ou o do santo popular celebrado em cada vila ou aldeia junto ao Douro ou junto ao Tâmega. Os dias passados na vindima que viriam a sustentar os Vinhos Verdes regionais também se ajeitavam como ocasião especial para apresentar o prato aos trabalhadores, daí que ainda hoje, no concelho de Penafiel, mais concretamente em Duas Igrejas, se faça a Festa da Senhora do Rosário, comemoração popularmente apelidada Festa da Sopa Seca, na primeira semana de Outubro, isto é, logo depois da colheita ser concretizada.
Antes usada como acompanhamento de repasto farto em substituição do arroz ou do grão ou da batata, foi depois empurrada para o momento da digestão, emparceirada com uma espirituosa, por exemplo, ou até com o café que finaliza as patuscadas. As comparações com as afamadas rabanadas surgem sem surpresas – têm muito em comum, do pão de trigo ao vinho, passando pela canela -, mas as Sopas Secas beneficiam de uma grande vantagem num tempo em que a saúde é o primeiro factor de decisão: não é frita em óleo.
Receita
É muito fácil fazer Sopa Seca. Porém, qualquer receita que seja, mesmo que falemos do cúmulo da simplicidade, tem segredos – como me disse uma vez um amigo, “há arte até na forma como se atira o sal para o tacho”.
A primeira coisa a reter: o pão deve estar enrijecido pelos dias que esteve em repouso (dois, no mínimo). Deve também ser fatiado, idealmente em fatias que se vejam, com um ou dois dedos de grossura, e feito à base de trigo, preferencialmente. Há quem utilize pão alentejano, pão de Mafra, pão saloio. A verdade é que até com um papo-seco se consegue chegar a bom resultado.
Escolhido o pão, viramo-nos para o tacho. Aqui misturamos água, açúcar (o ideal é que seja amarelo, mas se só houver branco, que não se perca tempo por isso), pau de canela e um copito de Vinho do Porto. Podemos, se quisermos, acrescentar casca de limão, casca de laranja, ou ambos. Certos cozinheiros colocam também um raminho de hortelã, o que só posso elogiar, para travar um pouco o domínio do açúcar. Outros, em vez de água, preferem usar leite – honestamente, nunca experimentei, mas cheira-me que tal opção é inspirada na feitura das rabanadas. Independentemente do que se quiser usar como caldo, deixamo-lo a ferver entre cinco a dez minutos.
O passo seguinte dá-se demolhando as fatias de pão, uma por uma, e por um curto segundo, no caldo (certas receitas resolvem demolhá-lo no caldo uma primeira vez e uma segunda em ovo batido). Elas devem depois ser deitadas numa travessa ou num pote de barro, intercaladas com açúcar e pó de canela e, para meu gosto pessoal, com folhas de hortelã. A cada camada de pão respondemos com mais uma de açúcar e canela. Assim por diante até que o pão esgote. No fim, regamos o topo com o caldo coado e levamos ao forno, primeiro coberto com tampa ou papel de alumínio, depois a descoberto até ganhar côdea.
Uma adenda: a receita descrita acima replica, mais coisa menos coisa, o que os cozinheiros do Douro Litoral se habituaram a fazer. Há, todavia, alternativas, nomeadamente se formos buscar inspiração mais a norte. Por lá, em vez de água, aproveita-se o caldo dos cozidos de carne (galinha, porco, vaca, entre outros) – ou, não havendo caldo de cozido, derrete-se manteiga ou margarina em água. Não será necessário discorrer muito sobre as alterações que tal abordagem traz ao palato porque são demasiado evidentes, a começar pelo peso da gordura em cada pedaço que se leva à boca.