Romaria da Senhora Aparecida

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Se prestarmos atenção ao nome desta que é uma das mais importantes festividades do Douro Litoral – a Romaria da Senhora Aparecida – conseguimos perceber o porquê da procissão se realizar. Trata-se de uma Senhora Aparecida, isto é, de uma Maria que se revelou aos fiéis. Sem surpresas, há uma lenda que fundamenta a designação, e se calhar começo por aí, porque tudo o resto funciona como consequência do que a tradição oral foi guardando.
Comemorou, em 2023, duzentos anos de vida. Isto se tivermos em conta o molde actual, ou seja, de devoção à Senhora Aparecida. Antes disso já era realizada uma outra festa que tinha São Fins (ou São Félix) como orago.
A lenda da Senhora Aparecida
Conta o povo que na encosta de um monte dedicado à Senhora da Conceição havia uma gruta que, por muitos anos, serviu de casa a um ermitão. O eremita, que segundo se pensava nem sequer era português, mostrava-se pessoa respeitada pela povoação – caminhava agarrado a um nicho que guardava uma estatueta de Nossa Senhora e, com ajuda da imagem, distribuía curas e remédios milagrosos a crianças e adultos e velhotes.
Mas um dia, o ermitão desapareceu. Deixou de passear junto das gentes. No outeiro onde se recolhia também nunca mais alguém o viu. Terá voltado para a sua terra, pensaram alguns, terá ido ajudar novos povos, admitiram outros. Dos dias fizeram-se meses, dos meses fizeram-se anos. E sobre o eremita, mais do que se deixar de saber, os locais passaram a deixar de o lembrar.
Até à noite em que se deu uma chuva de estrelas cadentes que parecia apontar para o outeiro. Para as pessoas que ali moravam perto, não havia dúvida que se tratava de uma mensagem celeste. Dirigiram-se para o monte e aperceberam-se que as estrelas cadentes caíam na gruta antes habitada pelo já esquecido eremita. Resolveram escavar à procura de alguma coisa, e encontraram. Do eremita estavam os seus restos mortais e alguns objectos pessoais, entre os quais a famosa imagem de Nossa Senhora, tira como curandeira pela população.
Decidiram fazer um santuário em honra da Maria encontrada – uma Maria que, por milagre, apareceu, e portanto uma Senhora Aparecida. Ainda hoje, nas aldeias e vilas nas imediações da igreja onde a escultura se encontra, fiéis esforçam-se por lá ir ao cimo da colina pedir saúde e solução para maleitas ou patologias físicas.
Lendas similares a estas temos muitas. Não indo longe, ficando dentro do perímetro do concelho de Lousada, havia a crença de uma estrela cadente em Moreira de Sousela que surgia, de vez em quando, para assinalar o lugar de uma antiga capela. E não esquecer que um dos mais famosos santos idolatrados na península é São Tiago, ou Santiago, a quem tantos dedicam uma longa caminhada até Compostela, e que, de acordo com algumas versões lendárias, foi também uma chuva de estrelas cadentes que apontou aos crentes o lugar onde o bem-aventurado se encontrava sepultado. Aqui, na lenda da Senhora Aparecida, é um ermitão a substituir o lugar de Santiago, mas o princípio mantém-se: a sacralização cristã de um monte que já devia ser ponto ritualístico há centenas de anos. No fundo, uma actualização de uma tradição religiosa ou espiritual que remonta a um passado nebuloso.
Os três dias da Romaria da Senhora Aparecida
Em homenagem a essa Senhora que um dia um ermitão carregou ao colo e a quem o povo associa capacidades profiláticas (tanto assim é que ainda se oferecem objectos de cera a replicar partes do corpo que o devoto pretende ver tratadas, como pernas, braços, até estômagos), o concelho de Lousada organiza uma festa de três dias no mês de Agosto. Na verdade, a farra estica-se por cinco dias ou até por uma semana inteira, dependendo do ano, mas são os dias 13, 14, e 15 de Agosto aqueles que podemos considerar como principais, cada um deles com enfoque numa temática específica.
O dia 13 é dedicado ao cavalo. Há outros certames, claro, como a Feira do Gado, os concertos pela noite dentro, o festival de folclore, as desgarradas, as barraquinhas de comes e bebes. Porém, o grande interveniente – e aquilo que acaba por seleccionar o tipo de público que frequenta a festa neste dia – é mesmo o equídeo, em passeios sossegados pela aldeia, ou na corrida que os põe guiados por jockeys. Também o seu nano-parente, o pónei, tem direito a destaque, para gozo da miudagem.
O dia 14 é tido como o da procissão. Com eucaristia ao ar livre a anteceder a romagem, toda a gente se enfileira depois para dar acesso aos cinco andores – dois pequenos, levados por crianças; dois de respeitoso tamanho, transportados por adultos; e por fim o Grande Andor, sobre o qual já irei falar, e que carrega uma imagem da Senhora Aparecida. À noite, a festarola termina com fogo de artifício e concerto.
O dia 15, o último do programa, a que eu chamaria o da descompressão, está reservado para a comunidade motoqueira nortenha que cá vem para pedir protecção à Senhora, num evento conhecido por Bênção das Motas, muito semelhante àqueles que vemos nas bênçãos do gado país afora, mas agora em versão motorizada. São centenas de motas e de capacetes estacionados que aguardam a chegada do pároco para que este os aspirja com água benta. Pela tarde, há Grande Prémio por entre o emaranhado de casas da freguesia de Torno, uma corrida de motociclos que recorda a prova de hipismo que ocorreu ainda há dois dias, mas neste caso os cavalos estão nos motores a pistão.

O dia 13 foca-se no cavalo – em passeio ou em corrida

Uma pequena imagem para tão grande andor

Bênção às motos, no último dia de festa
O andor mor
Quando aplicamos o substantivo no singular, Andor, só podemos estar a falar daquele que começaram a adjectivar como Grande. Aquele que tem mais de vinte metros de altura e pesa cerca de tonelada e meia. É ornado com faixas e fitas de várias cores, mas de dominante azul – o azul do céu a que Maria ascende a 15 de Agosto, de acordo com o calendário católico.
Quando se passeia com os restantes quatro altares em procissão, é aquele que toda a gente aplaude à passagem, não só pelo tamanho como também por ser o que carrega a pequena imagem milagreira da Senhora Aparecida. Os aplausos são para a Maria Aparecida mas também para o esforço dos devotos que a seguram.
Com efeito, o tal Grande Andor, como é tratado, obriga a que um pelotão de oitenta ou noventa homens o suporte. Rapazes da terra, que ficaram ou que emigraram, e que reservam o seu lugar de ano para ano. Alguns passam todos os seus dias 14 de Agosto, desde jovens até velhos, como leais transportadores do andor mor da romaria. É um orgulho fazê-lo até que as forças não mais o permitam. E aí, saídos, delegam nas novas gerações, para que a procissão prossiga por mais cem anos.
Curioso que outras romarias que adoptam andores muito similares a este sejam exclusivamente no Norte e não muito distantes entre si. Além da Senhora Aparecida, temos a da Senhora da Pena, em Vila Real, e a da Senhora das Dores, na Trofa. Todas devoções marianas. Todas com altares levantados por homens. Todas lembradas pelos altares piramidais, como setas apontadas ao céu.

Mais de 20 metros de fé

O Grande Andor aos ombros de fiéis

O outeiro da Senhora da Conceição com o Santuário da Senhora Aparecida
A extinta Procissão dos Caixões
Infelizmente, pelos anos noventa do passado século, o padre da Aparecida decidiu terminar com um interessantíssimo rito feito aquando da romaria. Tratava-se de uma outra romagem, esta de cariz pagão (não têm quase todas essa semente, entretanto?), onde uma pessoa se oferecia para entrar num caixão funerário (emprestado ou alugado pela funerária local), sendo assim levado por familiares ou amigos ao longo de quase meio quilómetro. A razão por que o faziam prendia-se mormente com as habituais pagas de promessas, neste caso relacionadas com a cura de uma doença grave ou com a sobrevivência a um episódio que podia representar perigo de vida.
Era, portanto, comum termos como voluntários aos caixões todos os que tinham passado por um cancro, uma guerra, um acidente de automóvel, e que acreditavam ter na sua Senhora Aparecida uma aliada para a superação do infortúnio. Em certos casos, a promessa poderia estar a ser paga em nome de outro, embora estejamos a falar de excepções.
Ao fenómeno chamaram Procissão dos Caixões ou Cortejo dos Amortalhados. Segundo José Carlos Carvalheiras, que a estudou, ela existia desde pelo menos a década de 1920. Isto de acordo com o que se sabe. Arrisco dizer que ia bem além do século XX, eventualmente com diferentes formatos, mas de igual significado.
A simbologia do ritual não é nenhum enigma. O morto no caixão que se levantava no final da romagem era, no fim, um novo homem, vencedor da adversidade. Estamos perante uma clara prática de iniciação. Ultrapassada a prova, o morto ressuscitado emancipa-se. Talvez o cortejo tivesse uma função primitiva de passar rapazes em fim de adolescência para a idade adulta.
Certo é que, desde que o pároco reprovou a sua realização, ela nunca mais viu luz. Uma tristeza. Perdeu-se um diamante etnográfico e identitário em nome de uma suposta uniformidade religiosa que, se espremermos bem, nunca sequer existiu. É assim tão grave que o pagão e o cristão estejam presentes numa festa que é, em simultâneo, profana e sagrada, popular e clerical? Julgo que não. Sem surpresas, os párocos da Aparecida têm opinião diferente. Lanço o repto: se por acaso os aparecidenses um dia quiserem voltar atrás, aqui têm um amigo para o divulgar.
As fotos presentes neste artigo foram retiradas daqui e são referentes ao ano de 2023. É com pena que, por não o ver mencionado, não indico o nome do seu autor. O trabalho fotográfico apresentado é excelente.
Lousada
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