Torricado de Azambuja
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Foi num só dia que me entreguei ao Torricado, num manjar em Aveiras de Cima, no restaurante Oficina dos Sabores. Acompanhado por um homem da terra, por um vinho da casa, e pela chuva de Dezembro, o Torricado soube a mais do que um prato.
Origem do Torricado
De forma muito genérica, o Dicionário Prático da Cozinha Portuguesa define-o como Torricado do Ribatejo, dando a entender que é uma iguaria muito circunscrita à antiga província tagana.
A bíblia gastronómica Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto, atribui-lhe mais dois nomes: galhofas ou loiras. No entanto, aqui, após a descrição da receita, a autora dedica-lhe uma especial nota: Descreveu-se a versão do Torricado da Azambuja. No Cartaxo introduzem-se sardinhas assadas nos golpes do pão, de onde se comem directamente. Há zonas em que o Torricado é polvilhado com alho picadinho e o pão é recheado com lascas de bacalhau assado. Este rodapé vem trazer à luz a ideia de que existem vários tipos de Torricado, e implicitamente de ser o de Azambuja o mais famoso, pois terá sido esse o escolhido para figurar no livro.
Sabemos, de qualquer forma, que o Torricado foi um desenrasca para os homens do campo ribatejano – uma forma de aprimorar o pão que, em muitos casos, era das poucas coisas que calava o estômago. A lógica é repetida hoje, quando apenas temos pão duro em casa e resolvemos torrá-lo para o tornar mais comestível. Era isto mesmo que se fazia: com apoio de espetos, tostava-se o pão numa fogueira ao relento e, ao mesmo tempo, esfregava-se o miolo e a côdea já torrados com alho, como se os estivéssemos a polir. Era depois acompanhado por uma posta de bacalhau, se houvesse dinheiro para isso.
Sendo a Azambuja, de resto, um concelho pobre, sobretudo a sua zona baixa, colada ao rio, foi por lá que o Torricado, enquanto salvaguarda das gentes sem posses, se aperfeiçoou.
Entretanto, o Torricado galgou do chão da lezíria para as mesas da restauração local. Vem em travessa e até pode ser vítima de um gume de uma faca ou da pontada de um garfo. Um modernismo que esconde o seu berço mas que não deve ser razão para demover seja quem for.
Hoje o Torricado passou de activo popular a dístico identitário, como aliás muita da gastronomia portuguesa, que quase sempre começou nas mãos de quem pouco tinha (a Chanfana, por exemplo, faz com a cabra aquilo que o Torricado faz com o pão).
O Torricado em poema, por Miguel Ouro
Receita do Torricado
Como já é de intuir nos parágrafos anteriores, a receita que hoje se experimenta nos restaurantes azambujenses é uma actualização daquela que, noutros tempos, foi improvisada pela dura vida campina. Será melhor, pois, começar por falar dela tendo como base essa antiga invenção popular que nasceu do tem de ser.
Primeiro que tudo, tem de haver lume. Lume de vides, de preferência, e um trio de paus para ajustar um espeto. Confirmando que as brasas já queimam, lá colocamos uma posta de bacalhau e logo pegamos no pão.
O corte do pão deve ser feito ao comprido, longitudinalmente, até o separar em dois, e depois no miolo de cada uma das partes vincamos, com a lâmina, várias diagonais que se cruzam, de maneira a que no fim tenhamos um padrão de losangos bem delineados. Penduramo-lo no espeto junto ao calor e deixamos torrar.
Esfrega-se depois um dente de alho em toda a sua superfície e, à medida que o calor vai abrindo as brechas que cortámos no miolo, atiramos-lhe o azeite e o sal grosso para cima. O pão retorna então ao espeto – o sinal de que está bom para o bucho é dado pelo som agudo do azeite fervido. Está agora pronto a comer, juntando-se a posta de bacalhau que passou todo este tempo a ganhar bronze.