Siglas Poveiras
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Se por um lado sabemos a razão que levou os mareantes da Póvoa a criar um sistema de inscrições só por si compreendido, a questão da origem nunca ficou bem resolvida. As Siglas Poveiras, como são comummente chamadas, motivaram variados debates quanto ao seu berço. As teorias variam e apontam para direcções opostas. Como no futebol, discutiu-se muito, concluiu-se pouco. O que não impede que se discorra alegremente sobre um dos mais fascinantes empreendimentos culturais do pescador poveiro.
O alfabeto dos analfabetos
Esta coisa das perspectivas dá pano para mangas. É sabido que, pelo século XIX, quase todo o pescador da Póvoa de Varzim era analfabeto. Mas analfabeto porquê? Dirão que era analfabeto por não conseguir ler. Mas, insistindo, não conseguia ler o quê? Ora, o que haveria de ser, não conseguia ler qualquer palavra que lhes fosse apresentada à frente. Ou seja, não conseguia ler o nosso alfabeto – o alfabeto latino.
Mas há um twist. É que o poveiro do mar, que sempre desconfiou dos burocratas de caneta em riste que só serviam para lhes melgar o juízo, apesar de reticente em aprender o alfabeto comum, elaborou um alfabeto só dele – mesmo que formalmente não possa assim ser considerado. E assim, nas Siglas Poveiras, os analfabetos eram os outros, quem estava fora da colmeia. Poderemos argumentar que a língua de símbolos criada pela comunidade piscatória era muito mais limitada, porque apenas servia, na maioria dos casos, para carimbar o nome de uma família em determinado tipo de objectos de trabalho, muito em particular as redes, os barcos, e o peixe – correcto, mas não menos honesto é dizer que para os homens da faina isso bastava, e toda a restante comunicação passava pela magia da oralidade.
Vá lá que a mesma Póvoa que inventou tal sistema trouxe de igual modo ao mundo um estudioso que nos ajudou com a sua tradução, pelo menos parcialmente: António dos Santos Graça, ele próprio filho desta gente mareante. Desenvolveu um quadro com as marcas e as famílias correspondentes (numa espécie de dicionário de brasonaria popular poveira), muitas delas com nomes curiosíssimos como os Moucos, os Fome-Negras, os Bonitos, ou os Poupados. Afirma ainda Santos Graça que cada marca existe como representação de uma certa imaginária da comunidade piscatória, e como tal tínhamos o pé de galinha (ver, por exemplo, a imagem número 5 do quadro que se segue, que funcionava como a marca da família Chascos), a lanchinha (imagem número 20, da família Coutos), ou o signo-de-salomão, pelos poveiros chamado de São Selimão (imagem 3, da família Trunfos).
Marcas poveiras – a cada número corresponde uma família
Destas marcas partia-se para outras à medida que a descendência crescia. O irmão mais velho guardaria a sigla do seu pai, mas com um pique (isto é, um traço) a mais que o identificasse. Para o segundo irmão mais velho, o mesmo se aplicava, mas com dois piques. O terceiro, três piques. E por aí fora. O mais novo da prole ficava com a marca tal e qual o pai tinha, o que fazia do ultimogénito (e não do primogénito) o natural herdeiro da família, um costume invulgar mas não singular – encontramos tradições paralelas no antigo Ducado de Saxe-Altemburgo, em algumas zonas do Japão, e no estado de Megalaia na Índia.
O esquema montado por Santos Graça no segundo quadro é elucidativo quanto à passagem geracional das marcas. O investigador aponta também algumas excepções à regra – casos em que a marca não passa de geração segundo a norma, mas identifica-os como pontuais e em muitos casos explicáveis, como a adopção de siglas por casamento e não por herança paterna. Estas marcas serviriam como prova de propriedade, assinaladas com tinta ou com corte a faca, em aparelhos relacionados com as lides da pesca, nomeadamente redes ou velas ou mastros, mas não só, também objectos domésticos podiam ficar gravados de Siglas Poveiras, tais como cadeiras ou mesas. Comum era vê-las colocadas em lápides, costume que por vezes ainda vemos praticado.
Outra aplicação frequente acontecia em determinados eventos festivos, muito em particular nos casamentos, onde, à falta de saber para formalizar o nó com uma assinatura, digamos, latina, os noivos davam o passo em frente com uma fissura desenhada a canivete na mesa da igreja. Outras marcas que foram registadas em templos serviriam simplesmente como prova da sua presença diante de um santo a quem fossem pedir boa fortuna nas aventuras da faina. A actual Igreja Matriz e a Igreja da Lapa, ambas na Póvoa, tal como a Igreja de São Bento da Porta Aberta, destino de devoção de muitos pescadores, guardam alguns destes exemplares. Idem para a Capela de Santa Trega, na Galiza, que exibe a lápide como homenaxe ao povo poveiro. Estou certo de que muitos casos de marcas ocultas estarão por registar, e há exemplos de destruição que é ponto assente que aconteceram, como o da mesa da velha Igreja da Misericórdia, entretanto demolida.
Interessante era como o alfabeto se desdobrava em novas siglas e símbolos consoante a situação, como na marcação do peixe retirado ao mar, para fácil compreensão de quem tinha direito ao cardume, ou na montagem de aparelhos identificadores no espiche das bóias (ou balizas) que seguravam as redes de arrasto, também elas ao abrigo das regras hereditárias das marcas. E não esquecer as divisas, emblemas crenados ou pintados nas laterais das lanchas, dos batéis, e dos catraios, quase sempre com motivos alusivos à religião ou ao mar.
Mas o hábito de assinalar propriedade com as marcas poveiras, previsivelmente, perdeu-se. Várias razões contribuíram para tal, mas a principal foi a da alfabetização da colmeia piscatória da Póvoa. Os filhos dos homens do mar latinizaram-se. E actualmente, as Siglas Poveiras são uma ufania local, um activo identitário adaptado à realidade corrente: passaram a ser gravadas nas famosas Camisolas Poveiras, os passeios de calçada contam com padrões baseados nos seus desenhos, curiosas fontes de lettering foram criadas tendo por base a esquemática das marcas, umas quantas placas de identificação de ruas estão agora envolvidas por molduras decoradas com siglas, viram-se adaptadas a detalhe ornamental de peças de design ou de artesanato, e até o Varzim Sport Club fabricou um equipamento de futebol com as insígnias dos pescadores da Póvoa. A descendência dos pescadores, porém, ainda a utiliza em adereços corriqueiros, como pulseiras ou colares, até como tatuagens, enquanto brasão de família, um estatuto com que se apresentam aos mais próximos, onde a sigla exibida tem a orgulhosa tradução: eu sou filho dos pescadores da Póvoa.
Esquema de funcionamento na transmissão de marcas de pai para filho
Comparação gráfica entre dois casos de siglas poveiras e runas
Origem das Siglas Poveiras
Como disse, se quanto à justificação utilitária das marcas estamos conversados, sendo já exaustiva a lista de funcionalidades que delas se fizeram, o mesmo não se verifica no que respeita à sua origem.
Santos Graça, em 1932, quando escreveu “O Poveiro“, remete-as para os egípcios: “têm muita analogia com a escrita egípcia porque constituem imagens de objectos”. O que deixou dúvidas a muito bom pensante e, parece, também deixou dúvidas ao próprio Santos Graça, que mais tarde, quando dez anos depois lançou o livro “Inscrições Tumulares por Siglas“, não repetiu a teoria.
Octávio Lixa Filgueiras, em “Acérca das Siglas Poveiras”, trabalho de 1966, relacionou-as com as marcas de Funen, ilha dinamarquesa, aproximando-as das inscrições rúnicas. Esta hipótese não é de todo impossível conhecendo-se as incursões vikings que se deram na costa do noroeste ibérico, sobretudo Galiza e norte de Portugal. Pondo lado a lado a linguagem das runas e das siglas poveiras, e falando apenas do ponto de vista gráfico, a semelhança é evidente – veja-se a dita runa-Z, conhecida por Algiz, e compare-se ao pé de galinha poveiro, ou a runa-L, conhecida por Logr, e compare-se ao arpão poveiro.
Já Jaime Cortesão vai mais atrás, à eventual raiz castreja das actuais gentes da Póvoa, assemelhando as siglas às marcas que se estampavam no gado dessas ancestrais civitas, tão comuns no Norte como na Galiza: “Ao que supomos, o mesmo processo de assinalar todos os objectos de propriedade individual, os de família e os de companha com siglas próprias, radica na tradição pré-histórica das marcas de gado, com que se distinguiam as reses do clã”. Curiosamente, um estudo recente estabelece um paralelismo das Siglas Poveiras com a marcação de gado sertão, no Brasil, sendo possível que a mesma se tenha transmitido com a migração que existiu da Póvoa até à Terra de Vera Cruz. Está por esclarecer, a este respeito, se os poveiros são realmente descendentes dos castrejos que se fixaram nas fortificações próximas, como a de Cividade de Terroso, ou se têm como pais outra gente, como os fenícios que aqui abarcavam para trocas comerciais ou os nórdicos que cá investiam os célebres raides que aterrorizavam a costa. Ou, claro, se são uma mistura de tudo isto, o que só vem baralhar as contas.
Enfim, esteja o leitor de passagem pela Póvoa, recomenda-se uma visita ao Museu Municipal, situado num dos poucos solares do burgo, onde uma sala quase inteira aprofunda o assunto.