Lenda dos Cravos

by | 5 Fev, 2024 | Lendas, Minho, Mitos e Lendas, Províncias

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A Lenda dos Cravos é a justificação popular para o topónimo Vizela – ou, como a história conta, vis a ela. Li-a em duas diferentes versões: uma de Gentil Marques, no seu livro “Lendas de Portugal – Lendas dos Nomes das Terras“, muito bem contada, como é hábito; e outra de José Viale Moutinho, no livro “Portugal Lendário – Tesouro da Tradição Popular“, que me parece ser um sumário da anterior.

Assim sendo, irei basear-me nas palavras de Gentil Marques para recontar esta estranha lenda de Vizela, uma que não encontra paralelo com nenhuma outra que tenha ouvido.

A Lenda dos Cravos de Vizela

Num fértil vale a pouca distância do Porto existia um peculiar jardim, tão peculiar que tinha fama de ter sido desenhado por Deus, onde duas flores viviam. Uma delas, a Flor Mais Nova, tinha a frescura da juventude, sempre interessada e surpreendida pela novidade. A outra, a Flor Mais Velha, de uma antiguidade matreira, gozava de uma jovialidade que não batia certo com a sua idade.

A Flor Mais Velha costumava falar com a Flor Mais Nova com altivez e desconfiança. A Flor Mais Nova respondia com ingenuidade e ligeireza. E um dia, a Flor Mais Velha dá uma interessante notícia à sua vizinha:

– Já sabes? Novos cravos vão ser plantados à nossa volta.

– Novos cravos? – perguntou a Flor Mais Nova.

– Sim, novos cravos. – Retorquiu a Flor Mais Velha. – Lembras-te do que aconteceu aos últimos que por cá andaram? Todos eles morreram de amor por mim. E o mesmo acontecerá com os que aí vêm.

A Flor Mais Nova limitou-se a sorrir com desdém. Um gesto que a sua parceira via como provocação: quem achava aquela gaiata que era, para não fazer caso de si? E preparou-se para a vinda da plantação de craveiros, que chegou até mais cedo do que se esperava. Nesse dia, o tema voltou à baila.

– Vê ali, Flor Mais Nova, como te disse, os cravos aqui se vão instalar. Mal sabem o que lhes espera. A mais linda flor do jardim será a razão da sua morte.

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Ao longe, um pelotão de cravos seguia atrás de um cravo chefe, um príncipe dos cravos, que, ao ver aos duas flores à conversa, decidiu parar. Olhou para ambas e sentiu uma afinidade difícil de descrever com a Flor Mais Nova, a quem cumprimentou:

– Olá, bela flor, em meu nome e em nome de todos os meus amigos que ali vês. Cá estaremos sempre que de alguma coisa necessites.

– Olá, príncipe cravo, chamo-me Flor Mais Nova, aquela é a Flor Mais Velha. Se realmente responderes a todas as minhas súplicas, começa então por esta: foge daqui, pois esta sanguessuga não descansará enquanto não vos vir a murchar de amor por ela. Assim aconteceu com todas as plantações que cá chegaram no passado. Ela alimenta-se da vossa energia para restituir a sua juventude. Partam! Vão-se embora! Pelo vosso bem.

Nisto, a Flor Mais Velha, que tudo ouviu, reclamou:

– Sua traidora e mentirosa! Não deixarei que enganes este belo príncipe cravo. – E virando-se para ele e para os seus súbditos, exclamou. – Meus lindos cravos, por favor estejam à vossa vontade, instalem as vossas viçosas raízes à minha volta, que não se arrependerão. Tu também, formoso príncipe…

O príncipe estranhou o convite. Mas, sendo príncipe, manteve a boa educação:

– Cara Flor Mais Velha, muito agradeço a atenção, mas escolho ficar por perto da Flor Mais Nova.

– Dessa falsa? O que vês tu nela?

– Perdoe-me, – continua o príncipe – mas sinto por ela qualquer coisa que nunca tinha sentido, será amor?

E nisto, humilhada pelo príncipe e pelos seus cravos que não saíram de onde estavam, a Flor Mais Velha deitou um esquisito odor das suas pétalas, dirigindo-o a todos os que não lhe tinham feito a vontade. Os cravos que o cheiraram começaram a cair. Um, depois outro, depois outro, até apenas o príncipe e a Flor Mais Nova sobrarem.

Mas, nesse momento, uma Voz fez-se notar. Não vinha de nenhum sítio em particular. Era omnipresente. Para onde quer que a Flor Mais Velha se virasse, parecia que estava a ouvi-la mesmo à sua frente, embora à sua frente não estivesse ninguém.

– Quem é que me perturba? – perguntou a flor.

– Sou Eu, Aquele que este jardim fez e te deu a dádiva da vida. Basta de crueldade. Irás pagar por aquilo que fizeste a estes e aos outros cravos que tens matado, só para que deles fizesses seiva.

– Castigar-me? Ninguém ousa castigar-me. Nem eu mesma.

A Voz sentiu-se insultada com a impertinência daquela flor a quem um dia tinha dado existência. Fechou os céus até estes se tornarem do mais carregado cinzento que aquele jardim tinha alguma vez testemunhado. Uma descarga de água desabou das nuvens, deixando todo o jardim alagado. A Flor Mais Velha foi levada pela corrente de águas e não mais voltou. Quanto à Flor Mais Nova e ao seu príncipe, resistiram. E a Voz, ao vê-los, acrescentou:

– Esta bela flor será agora tornada luz, e iluminará estes campos que de cravos e outras flores se vão encher para sempre.

O príncipe, ainda atordoado, consegue arranjar forças para fazer um pedido àquela Força invisível:

– E poderei eu ficar de frente para a minha amada flor? De frente para a minha Flor Mais Nova? Vis a ela?

E a Voz concluiu:

– Sim, caro príncipe, o teu amor por esta cândida flor que agora se fez luz assim merece. E ficarás sempre como pedes: vis a ela.

E assim, a este rico jardim, se deu o nome de terra de vis-a-ela (uma velha maneira de se dizer defronte dela), que mais tarde se transformou em terra de Vizela.

O topónimo e as águas regeneradoras de Vizela

É comum que muitos topónimos terminados em ela ou elas tenham uma explicação lendária para a sua origem. Cabrela, no Alentejo; Bobadela, junto a Oliveira do Hospital; Belas, no concelho de Sintra; Caldelas, no Minho. Vizela é, pois, mais um exemplo de como as gentes procuram explicações populares para certas fonéticas. Curioso é que sejam cravos a tentar resolver a sua origem toponímica, sabendo que Alfredo Guimarães disse um dia ser Vizela a “terra primaveril dos cravos” e que os romeiros a São Bentinho levam como paga de promessa cravos brancos e vermelhos entalados na boca.

Todavia, a verdadeira etimologia de Vizela não alinha nas versões que o povo cria. Tudo indica para que Avicella, o termo original, remeta para o rio que nasce nas serras de Fafe e atravessa a cidade até desaguar no Ave. Assim, Avicella surge como uma espécie de diminutivo do rio Ave, do qual é afluente. Fazendo uma tradução em bruto, Avicella significa Avezinho, ou pequeno Ave, ou ainda Ave menor, já que é ao rio Ave que se entrega. As constantes corrupções fizeram com que Avicella se tornasse, mais tarde, Vizela. Longe da explicação lendária de vis a ela, portanto.

E porém, ouvindo a lenda relatada em cima, não consigo não estabelecer uma conformidade com um dos mais enigmáticos episódios da mitologia: o Dilúvio, descrito em praticamente todas as religiões do mundo, das monoteístas às politeístas, e integrado em diversos livros sagrados, sendo o mais conhecido para nós aquele que é relatado na Bíblia.

Independentemente da abordagem que tivermos do mito do Dilúvio, o espírito do que se escreve sobre ele não muda. A base mitológica é que Deus (ou Deuses, conforme a versão que entendamos seguir) responde a uma conspurcação da vida na Terra, viciada em egoísmo e maldade, com uma enorme tempestade que elimina todos os animais do planeta, incluindo humanos. Foquemo-nos agora na Bíblia porque é a realidade culturalmente mais próxima de nós. Segundo o Génesis, Deus garante uma excepção: Noé, que tem como homem magnânimo, pode construir uma arca onde a sua família se irá fechar para sobreviver ao cataclismo, e a eles se devem juntar dois animais de cada espécie, um macho e uma fêmea, para se avançar com a regeneração da vida após a tormenta passar.

O salto para a Lenda dos Cravos não é assim tão grande. A Flor Mais Velha representa a maldade em que a vida terrestre se tornou. E a Flor Mais Nova com o seu príncipe poderão ser vistos como Noé e a sua família. O Dilúvio acontece quando a tal Voz, que facilmente associamos a Deus, ordena aos céus para que uma catástrofe movida a água se despenhe no jardim (ou seja, na Terra).

O que me leva a uma nova especulação. A água do Dilúvio é um meio de renovação – “representa a ablução cósmica e um recomeço”, segundo Mircea Eliade. Este renascer está também muito enraizado nos banhos termais que remontam ao passado vizelense, em particular ao passado romano. De facto, o acto de submergir nos caldos sulfurosos é muitas vezes comparado a uma expiação, a uma lavagem dos pecados e da adição material. Poderemos pôr lado a lado a intenção de purificação do Dilúvio divino, em todas as suas formas, do bíblico ao sumério, com um outro dilúvio, interior a cada um, que é o mergulho nas águas terapêuticas das caldas. É no mínimo admirável que Vizela contenha em si ambas estas realidades: uma lenda respeitante à fundação da terra que se baseia numa história que muito faz lembrar o Dilúvio; e um passado que finca pés na sua cultura termal, igualmente preso à ideia da água como elemento de lustração. Será coincidência?

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