Igreja de São Pedro de Rates
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A Igreja de São Pedro de Rates é, toda ela, um remendo – um remendo do que antes se fez, e um remendo até do que não se chegou a fazer, passe o paradoxo. Nela começa uma longa e gaguejante crónica, com quase mil anos, de avanços e recuos, mas que acompanhou de perto o nascimento de uma nova entidade política, de cariz régio, e que resultou num país a que hoje chamamos Portugal.
Paulo Pereira, no seminal “Arte Portuguesa“, considerou-a “um dos edifícios mais importantes do românico português”. É Monumento Nacional.
A igreja e o condado
Para começar, o habitual: a Igreja de São Pedro de Rates está montada em cima de uma outra, mais antiga, que por sua vez estava montada noutra, ainda mais antiga, estando esta montada numa ainda mais antiga, e por aí adiante. Trata-se de um espaço sagrado há provavelmente dois mil anos, e os edifícios são apenas a confirmação física disso. Quando foi levantada a primeiríssima de todas? Belíssima pergunta para a qual não há resposta certa, mas não elimino a hipótese de já existir devoção por estas bandas desde tempos pré-romanos, ou seja, é muito possível que a primeira igreja não fosse cristã.
O que temos como garantido é que os Condes Portucalenses, D. Henrique e D. Teresa, pais de D. Afonso Henriques, o fundador da nacionalidade, instalaram a casa actual sobre ruínas de uma antecessora, esta certamente mais pequena. A ideia era povoar, e nesta altura povoava-se desta forma, com um templo que funcionaria como umbigo de uma comunidade religiosa, e isso por si só atrairia outra gente que procurava fugir da miséria pelo trabalho, pela protecção divina, pela segurança face ao invasor.
Ora, tendo em conta que a Reconquista se ia fazendo muito à custa de uma aristocracia guerreira gaulesa em busca de novos feudos, e que boa parte dela vinha da Borgonha, a começar pelo Conde D. Henrique, é natural que a colonização religiosa tenha obedecido a algumas regras de lá trazidas, muito em concreto de Cluny e dos seus monges beneditinos que acabaram por ocupar o convento de São Pedro de Rates – aliás, D. Henrique era sobrinho-neto do poderoso Hugo, o Grande, abade de Cluny. Como tal, A arquitectura românica foi uma das importações que se implantou com estrondo no Reino de Leão e no Condado Portucalense, moda que perdurou até aos primeiros reinados da monarquia portuguesa. Percebe-se, portanto, que D. Henrique e D. Teresa, tenham adoptado essas linhas austeras do estilo românico que ia fazendo escola na Borgonha, num momento em que qualquer instalação cristã era mais um posto cultural, militar, e civil contra um Islão que mantinha esperança no domínio da Península.
Paulo Pereira, seguindo estudos e levantamentos de Ferreira de Almeida e Manuel Real, distingue a construção da Igreja de São Pedro de Rates segundo quatro fases de influência românica – uma inicial, de 1095 a 1100; uma intermédia, de 1100 a 1125; uma terceira, a partir de 1160 até 1200; e a última espaçada de 1200 até, sensivelmente, 1230. Os quatro intervalos de tempo já explicam, em parte, o facto de termos tantas assimetrias na igreja que vemos no presente (mas houve mais a contribuir para isso, lá chegarei): o primeiro traduz-se num românico primitivo, poderemos até qualificá-lo como um proto-românico com mistura de elementos artísticos anteriores; o segundo definitivamente românico, em todas as vertentes, e que corresponde ao momento da doação do monumento, feita pelos condes, para a esfera de influência do priorado cluniacense de La-Charité-sur-Loire, seguia ano de 1100; uma terceira mais de conservação, esta já levada a cabo por D. Afonso Henriques e mesmo D. Sancho I, cuja alteração de maior ocorreu aquando da deterioração da capela-mor; e enfim uma quarta que se processa com a reutilização de elementos já colocados, sendo aqui reformulada a portada principal.
Todavia, algumas certezas da primeira fase tornaram-se dúvidas na segunda e na terceira. Um bom exemplo disso são os dois primeiros arcos que vemos mal entramos, a marcar a divisão da nave principal para a nave do lado esquerdo, que supostamente serviriam para completar uma fachada teoricamente mais imponente, e que tiveram de ser adaptados ao interior. Joel Cleto menciona que esses arcos que, num plano inicial, deveriam formar dois novos pórticos de entrada de acesso exterior às duas naves laterais, têm qualquer coisa de moçárabe por estarem mais fechados do que é normal, em jeito de ferradura, salientando como até no Norte a interferência da arquitectura islâmica se fez notar – fica a pergunta, terão sido as altas patentes de Cluny a proibir arcos tão arabescos na frontaria, tendo em conta que um dos principais propósitos da massiva instalação religiosa no noroeste ibérico era precisamente formar as mentalidades contra a fé muçulmana? Outra amostra de como a Igreja de São Pedro de Rates foi, ao longo dos seus primeiros dois séculos, uma contínua indecisão, está no lado oposto ao par de arcos acima descrito: são as altivas colunas embutidas numa parede mas sem qualquer ligação entre elas, o que, mais uma vez, indica que se planeava construir uma igreja bem maior do que esta mas que o projecto nunca se concretizou. E porque é que o desfecho foi este? Há quem concorde que terá sido por razões financeiras, outros por razões políticas, talvez uma combinação dos dois.
Como se a salganhada de oito séculos de vida atribulada não fosse já bastante, na época do Estado Novo, e pelas mãos de um promissor arquitecto de nome Rogério de Azevedo, uma remodelação estrutural foi lançada a um monumento que estava em risco de vergar. O objectivo da obra, bem enquadrado com a época, era devolver a Igreja de São Pedro de Rates à sua condição prima, ao românico intocado, antes do mau gosto se instalar com os acrescentos do século XVIII. Uma meta ambiciosa. Como se poderia voltar ao ano zero de um templo cujo ano zero foi, em si, uma constante hesitação? O arquitecto portuense, contudo, passou o teste. Num laborioso desmontar e montar de peças, recorrendo amiudadas vezes ao reaproveitamento de materiais, devolveu, como pôde, a igreja ao século XII. A abside foi quem mais remodelação sofreu, mas de caminho deitou-se abaixo a torre do transepto, uma sacristia, azulejaria, frescos, e o coro, amplificações que aconteceram já depois dos beneditinos terem saído e da posterior transformação do templo em Comenda da Ordem de Cristo. Também o janelão na fachada foi substituído por uma rosácea que se imaginou como a original. Tudo em nome de um retorno ao românico primordial, forte e austero, qualidades que o próprio salazarismo procurava para a sua administração. Era o regresso às origens, porque afinal a Igreja de São Pedro de Rates foi criada em simultâneo com a invenção de Portugal.
Desde essa grande reformulação do monumento até à actualidade, as intervenções mantiveram-se, mas nunca com o grau de intensidade que Rogério de Azevedo imprimiu. Trataram-se, sobretudo, de acções de manutenção – como agora, no momento em que escrevo estas linhas, em que nova operação de requalificação está em marcha.
Agnus Dei, o Cordeiro de Deus, no tímpano da porta sul
Jesus numa das suas formas mais conhecidas: o Cristo Pantocrator
Os portais
Dos três portais que se encontram na Igreja de São Pedro de Rates, apenas um tem pouca história para contar – é o do lado norte, com pórtico formoso, de dupla arquivolta, mas com tímpano vazio. Por outro lado, os pórticos virados a sul e a poente são mais do que meramente bonitos, são crípticas esculturas que cruzam a complexidade simbólica com a simplicidade artística como só o românico em estado de graça atinge.
Pórtico poente
No pórtico principal, virado a oeste, temos no tímpano o Cristo Pantocrator, uma das mais célebres imagens de Jesus, embora aqui desmontado de braços. Está ladeado por dois homens, que alguns estudiosos crêem ser São Pedro e São Paulo, outros São Pedro e São João Baptista, também eles sem braços. Paulo Alexandre Loução, em “Lugares inesquecíveis de Portugal“, remete estas imagens para os guerreiros lusitanos e galaicos que frequentemente eram assim retratados.
Ademais, os dois homens que se encontram ao lado de Cristo parecem pisar duas outras figuras. José Mattoso entende que elas representam Judas e Arios, ambos tidos como inimigos da igreja católica, e muito em específico da Ordem de São Bento de onde emergiu Cluny: o primeiro pela traição a Jesus que o levou à morte, o segundo por professar uma variante cristã que negava a Consubstancialidade.
A verdade é que a solução apresentada por Mattoso e defendida por Paulo Pereira e por outros que se seguiram sofre de um pequeno problema: por que razão ter Arios como inimigo num tímpano do século XII, quando o Cristianismo Ariano quase desapareceu por completo no século V? Para quê reforçar a malignidade de uma coisa praticamente inexistente? Das duas uma: ou o Arianismo continuava a ser celebrado de forma oculta, um pouco como aconteceu com o Criptojudaísmo séculos depois, ou então não é Arios que ali está, mas sim outro alguém, ou outro algum.
Paulo Alexandre Loução, ao invés, acredita que as duas imagens espezinhadas não são homens mas sim criaturas rastejantes que podem representar “forças caóticas existentes tanto na Natureza como no homem”. Socorre-se da forma como o Cristo Pantocrator é apresentado, centrado numa mandorla, figura resultante da intersecção de dois círculos, que muitos resumem como a Amêndoa Mística, e que simboliza o cruzamento de duas dimensões – a dimensão do espírito e a dimensão da matéria. O quadro apresentaria, nesta interpretação, a imagem do homem emancipado, vitorioso face aos seus demónios interiores e exteriores (as figuras rastejantes) ao se centrar na confluência da sua esfera imaterial e material, isto é, ao assumir a sua plenitude, conforme a Amêndoa Mística sugere.
Capitéis das colunas da esquerda, no pórtico principal – ao meio vemos um homem com um báculo, será São Pedro?
Capitéis na coluna da direita, no pórtico principal – ao meio, uma sereia, e à sua esquerda um relevo retilíneo com a cara de um homem a seu lado… que segredos escondem?
Ainda no tímpano, temos dois pequenos círculos ao alto, que simbolizam, com certeza, o sol e a lua, dois ícones do estilo românico que tornam a sublinhar a necessária dicotomia noite e dia, luz e breu, calor e frio, vida e morte.
Continuando na portada virada a oeste, mas agora olhando para o lintel, observamos duas serpentes enroladas uma na outra. Paulo Alexandre Loução, ao apontar que cada uma delas termina com uma “cabeça de canídeo”, chama ao texto G. N. Graf, que relaciona este tipo de figuras com o egípcio Anúbis, Deus dos Mortos, condutor das almas. O mesmo autor alude ao facto de cada serpente estar a morder a cauda da outra, e relembra as suas semelhanças com a ouroboros da vida eterna ou da vida cíclica. Mais acima, nas arquivoltas, registamos a representação de anjos, no primeiro arco, mas também dos apóstolos, no segundo.
Do lado de dentro, o tímpano contém uma imagem do Agnus Dei que se repetirá no tímpano exterior do pórtico virado a sul. Sigamos até ele.
Pórtico sul
Quanto ao portal do lado sul, embora menos carregado de figuração, há muito para ler e para reler, porque no românico nada se desvenda à primeira.
Vemos, na base do tímpano, virada para baixo, duas serpentes entrelaçadas. Paulo Pereira considera-as protectoras da casa de Deus, “guardas do limiar” por se encontrarem na fronteira do exterior para o interior, isto é, do espaço profano para o espaço sagrado. Em cima, no tímpano, descortina-se facilmente o relevo do Agnus Dei, o Cordeiro de Deus, metáfora gráfica do sacrifício de Jesus para redimir o pecado do Homem, figura apropriada pelas igrejas, mormente as ocidentais, para pintar os seus edifícios como casas de remição de pecados.
A sustentar as colunas vemos duas figuras enigmáticas, que alguns estudiosos, à falta de melhor analogia, remetem para a mitologia Atlante.
São Pedro de Rates
Na Igreja de São Pedro de Rates estavam duas estátuas que neste momento foram trasladadas para o edifício ao lado, um centro interpretativo respeitante ao monumento. Uma delas, de acordo com a maioria dos historiadores, é uma representação de D. Afonso Henriques, e se assim for trata-se da mais antiga imagem que temos do nosso primeiro rei. A outra dá a entender tratar-se de um bispo, ou de um clérigo de alta cúpula, que actualmente se atribui a D. João Peculiar, Arcebispo de Braga. Poderá ter-se colado a esse bispo o nome de São Pedro de Rates? E se sim, quem foi ele? Ou melhor, será que ele foi? Para juntar mais confusão a tudo o que se disse, que tal esta suposição: e se São Pedro de Rates, o santo que se encontrava sepultado nesta igreja até 1552 e depois transferido para a Sé de Braga onde agora repousa, nunca existiu? É que esta será, com toda a probabilidade, a mais forte hipótese a considerar, atendendo ao que se sabe, e o que se sabe é que ele só veio à baila pelo início do século XVI, e através de um relato que tem mais de alucinante do que de histórico. A saber…
Conta o Padre Carvalho da Costa que São Pedro de Rates era um judeu natural da Palestina que viveu na Babilónia por altura do reinado de Nabucodonosor II, ou seja, cerca de 600 anotes antes de Cristo nascer. Por essa altura, teria outro nome. Seria enviado para a Ibéria, juntamente com outros conterrâneos, e por cá teria morrido. São Tiago, ou como o vulgo agora o trata, Santiago, 600 anos depois, quando decidiu partir para a Península Ibérica afim de cristianizar os seus povos, terá ressuscitado este judeu há seis centúrias adormecido de morte e entregou-lhe o bispado de Braga. O agora chamado Pedro, enquanto bispo, chegou a curar farta gente, nomeadamente a mulher e a filha de um abastado homem, pagão, que não gostou de ver a sua família convertida ao cristianismo. À conta disso, perseguiu São Pedro até Rates, lugar cristão onde este professava a nova fé. Aí foi martirizado e aí se fez tumba dele, sem muitos lhe darem conta. Séculos depois, um eremita que se reclusou num monte próximo de Rates (o actual Monte de São Félix, também no concelho da Póvoa de Varzim), depois de várias vezes testemunhar a presença de uma luz ao longe, resolveu uma noite ir até ela, e aí descobriu as ossadas do santo, que tratou de sepultar com pomposidade no lugar onde agora está a igreja.
Esquecendo todos os fantasiosos detalhes da lenda descrita acima, houve uma coisa que ficou: a tradição oral coloca São Pedro de Rates, desde os tempos quinhentistas, como o primeiro bispo de Braga, e situa a patente pelo ano 45 da nossa era. Contudo, sendo rigoroso, não se sabe exactamente o ano em que Braga – ou Bracara Augusta – se tornou diocese. Admite-se que já existia no século III, o que continua bem longe do século I mencionado na lenda. Mas a verdade é que, ao posicionar São Pedro de Rates como bispo de uma diocese em Braga no ano de 45 d.C., estava a colocar-se a diocese bracarense praticamente ao mesmo nível que Roma, cujo primeiro bispado a tradição afirma ser da mesma época, e atribuível a São Pedro, o apóstolo.
Repare-se no sincretismo. Roma, capital religiosa, que elevou São Pedro a primeiro bispo na quarta década da nossa era, muito embora haja sérias dúvidas quanto a isso. Braga, outra capital religiosa, que em procura de estatuto internacional elevou São Pedro (de Rates) a primeiro bispo na quarta década da nossa era, muito embora haja sérias dúvidas quanto a isso. Poderá São Pedro de Rates ser um reflexo autóctone do São Pedro Apóstolo?
De resto, ao santo, mesmo que imaginário, atribuiu-se um dia – o 26 de Abril, data sobre a qual algumas superstições são versadas. Diziam que quem trabalhasse nessa data, veria os seus terrenos dizimados por vagas de ratos (atente-se como o povo faz associações de palavras, ao ligar ratos a Rates). E na mesma linha, que as grávidas também estariam proibidas de fazer quaisquer esforços, já que o santo era vingativo com quem o fizesse – um estranho comportamento vindo de um bem-aventurado, para dizer o mínimo. Acerca desta última crença, lembro que há uma fonte em Rates, nomeada Fonte de São Pedro, tida como mágica por entregar fertilidade às mulheres solteiras que lá se sentavam, mas que se tornaria cruel com as mulheres que faziam o mesmo já estando prenhas.
São Pedro de Rates, o santo que nunca existiu?
Transepto e pórtico do lado norte
Póvoa de Varzim
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Mapa
Coordenadas de GPS: lat=41.42326 ; lon=-8.67239