Francesinha
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Já se comem em todo o lado mas foi no Porto que nasceram e ainda é no Porto que suscitam as mais apaixonadas convicções. A discussão sobre qual a melhor Francesinha da Invicta (e, logo, do país) vem ao de cima em qualquer conversa de café.
De todas as sandes do país, a Francesinha é a estrela da companhia. Uma torre de pão, carnes e queijo submersa num mar de molho picante.
História da Francesinha
Há duas teses acerca da origem da Francesinha, e curiosamente as duas apontam para a mesma geografia: França, como o próprio nome indica.
A primeira remonta aos exércitos franceses que, com a ajuda de outros espanhóis, penetraram em território português. Estamos portanto a falar do início do século XIX e o que se diz é que os francos, numa de improviso, característico dos tempos de guerra, montavam umas sandes onde juntavam carnes de vários tipos forradas com queijo. Faltava o molho, e esse input foi dado pelos portuenses. Fosse verdade, e pelo menos uma coisa boa teria saído da Guerra Penínsular. Mas mais provavelmente estaremos perante uma narrativa apócrifa sem grande correspondência com a história da Francesinha que comemos no século XXI.
A segunda reúne maior consenso, inclusive o meu. Resume-se a coisa a bem da poupança de texto. Havia um homem, emigrante em França, que trabalhava num bar. Chamava-se Daniel David da Silva e, depois de regressado à pátria, foi convidado a trabalhar para um restaurante portuense, a Regaleira. Daniel David da Silva parecia dado à criatividade e inspirando-se na Croque Monsieur parisiense chegou a uma nova sanduíche portuguesa – para isso aproveitou o fumo peculiar dos enchidos e carnes de cá e adicionou o factor diferenciador, um molho com uma boa dose de picante. O primeiro provador, descontando o próprio Daniel David da Silva, foi, de acordo com este relato, Júlio Couto – um senhor que era bom garfo e um certo dia apareceu na Regaleira dando de caras com a invenção de Daniel David. Júlio Couto gostou do que comeu. E foi ele mesmo que lhe deu nome: aquele pico apimentado na boca originou o termo francesinha porque as francesas, segundo Júlio Couto, eram bem picantes.
O resto surgiu por boca-a-boca. Quando algum prato é bom, passa a ser falado. Primeiro ganha nome no bairro, depois na cidade, depois no concelho, e por fim no país. Foi isso que aconteceu com a Francesinha. Em poucos anos, alguns cozinheiros próximos da Regaleira (ou mesmo ex-funcionários) levaram-no para outras paragens da cidade. Em pouco tempo atravessou o Rio Douro e espalhou-se pelos tascos, cafés e restaurantes de Gaia. O mesmo para Matosinhos e Maia. A propagação da receita, com todas as suas variantes, tornou-se uma inevitabilidade, e é ela a razão para agora até em Lisboa se discutir quem faz a melhor Francesinha da capital, uma ofensa para qualquer cidadão do Porto que se orgulhe disso – conheço gente que se recusa a comer Francesinhas em terrenos alfacinhas, mesmo que venham de restaurantes comprovadamente nortenhos.
Mais detalhes são contados nesta entrevista, feita pelo muito recomendável espaço Portugal de Lés a Lés, a um dos recentes gestores do restaurante que criou tão afamada iguaria. A Regaleira, contudo, fechou portas recentemente.
As receitas para a melhor Francesinha multiplicam-se com o passar dos anos
Receita da Francesinha
Ora bem, aqui entramos em terreno meio pantanoso. É difícil achar uma receita padrão, porque à medida que a sanduíche foi crescendo em fama e proveito, houve também um incremento na sua diversidade.
A forma de a fazer é actualmente tão díspar que já podemos falar em tipos de Francesinha – o que é bem sublinhado sempre que entramos em algumas casas que a servem, pondo em cardápio uma dezena de diferentes formatos, tudo de maneira a que se adaptem ao gosto de cada um.
Voltando atrás, ao seu criador Daniel David da Silva, parece que a Francesinha piloto se baseava em pão bijou, e não no habitual pão de forma. O que estava entre o pão já não dista muito do que se faz hoje: linguiça, salsicha, uma fatia de carne, e queijo (por dentro e por cima da sandes). Depois havia o molho, essencialmente de piri-píri e tomate. Muitas Francesinhas que comi são próximas desta se exceptuarmos o tipo de pão usado. Mas muitas outras não são. E por isso há um certo imperativo em distinguir, primeiro que tudo, o que é uma Francesinha.
A definição que lemos no Dicionário Prático da Cozinha Portuguesa é suficientemente específica para sabermos identificá-la, e omissa que baste para dar largas à criação de cada um. Passamos a citar: “prato típico da região do Porto, constituído por duas fatias de pão recheadas com enchidos ou carnes e queijo, e cobertas com um molho especial picante”. Parece certo fazer destas palavras a base de tudo, muito embora até já haja Francesinhas que não se enquadrem nestes parâmetros, como a muito ostracizada Francesinha vegetariana, cruzes canhoto.
Receita da Sanduíche da Francesinha
Os ingredientes típicos já foram mencionados, mas repetem-se com a junção de mais alguns: queijo, fiambre, enchidos (sobretudo linguiça, salsicha ou mortadela), bife de vaca ou de porco, pão de forma, ovo, pimenta, alho, sal e manteiga.
As medidas são um pouco ao gosto de cada um.
Aquilo que se deve começar por fazer é torrar ambas as faces das duas fatias de pão, ao mesmo tempo que marinamos a carne com os condimentos falados acima, alho e sal. Tornar o pão em torrada é fulcral para que a estrutura vertical da Francesinha se aguente e para tornar o prato menos maçudo. Com manteiga, fritamos depois os enchidos, sem grande ordem preferencial e, havendo espaço, até pode fritar-se tudo simultaneamente: fiambre, linguiça, salsichas. Voltamos ao bife: depois de marinado, é frito também.
Pegamos num prato com rebordo alto o suficiente, como um de sopa, por exemplo, e deitamos a primeira fatia de pão. Depois colocamos o fiambre e logo de seguida a salsicha e a linguiça. No fim juntamos o bife aproveitando para regar tudo com a gordura da fritura (adiante-se que há quem coloque queijo no meio da sandes também). Fechamos a torre de carnes com a outra fatia de pão e pressionamos tudo para baixo, tentando que ela ganhe consistência e perca altura.
O queijo funciona como uma espécie de argamassa das várias camadas – pegamos em fatias de queijo (pode ser fatia fina de queijo flamengo) e cobrimos toda a estrutura. Normalmente, cinco ou seis fatias chegam, mas, a bem da gula, podemos abusar.
Estrelamos um ovo rápido que colocamos de imediato na cúpula da Francesinha. Pegamos no molho, que já deve estar preparado (em baixo diremos como o fazer), e deitamos sobre toda a comezaina, deixando que se crie uma piscina à volta. Aqui há um factor importante: o molho deve estar a ferver, sem esse extremo calor, o queijo não derrete o suficiente.
Acompanha com batata frita.
Receita do Molho da Francesinha
Para muito bom garfo, o que distingue uma boa Francesinha de uma má, não é tanto a sandes em si mas sim o molho. Já eu, em jeito de achega, coloco a distinção de uma óptima para uma mediana em dois pontos – um primeiro, o pão, que não deve ser excessivamente alto (ninguém está aqui para comer pão); e um segundo, a carne, que deverá ser tenra e fácil de cortar e trincar.
De qualquer forma, para os aficionados do molho picante que cobre e submerge, até certo ponto, a obra, aqui vamos.
Os ingredientes do molho são o segredo de muitas Francesinhas. O que aqui expomos é apenas uma hipótese, podendo juntar-se, ou retirar-se, o que se entender.
Azeite, colorau, manteiga, cebola em rodelas finas, pimenta branca (em grão ou em pó), alho, sal e, caso se goste, cenoura. Há dois que deixámos para último dada a sua importância: o tomate (sem sementes e sem pele) e a malagueta, se a quisermos mais picante, óbvio, já que o tabasco já a apimenta um pouco.
Colocamos azeite num tacho a meio lume ao qual vamos depois adicionar a pimenta, o alho e a cebola. Segue-se a cenoura e a malagueta. Deixamos que dali saia um caldo avermelhado e deitamos umas gotas do tabasco nessa altura. Misturamos e deitamos um copo de cerveja ao tacho. Por fim, deitamos sal a gosto e acrescentamos um pouco de água. Tapamos o tacho e deixamos aquecer até que o tomate se desfaça. Passamos a varinha mágina e batemos tudo. Em lume brando acrescentamos manteiga no final e mexemos com colher de pau, de maneira a engrossar.
As melhores Francesinhas
Vamos então abrir as portadas da controvérsia.
Quando falamos das melhores, estamos obrigatoriamente a entrar num campo pessoal. Estas melhores que enunciarei são as melhores para este que vos escreve. No Porto, cidade onde vivi e que considero a mais acolhedora do país, isto apesar de ser lisboeta, tenho três espaços que considero obrigatórios, que aqui deixo, sem qualquer ordem de preferência: a Francesinha do Fase, a do Santiago (que ficou reconhecida pela revista TimeOut Porto), e a do Cufra. Há muitas outras, se calhar até demasiadas tendo em conta que alguns restaurantes a colocam em menu por questões meramente turísticas, não tendo o mínimo de exigência no que toca a qualidade.
Mas, e sem querer ferir susceptibilidades, a que diria ser a melhor está mesmo do outro lado do Douro, no restaurante Locanda, em Canelas, cozinhada sem pressa e em forno a lenha.
Algumas menções honrosas deverão ser faladas também, na região Norte, sobretudo no Douro Litoral e no Minho: destaca-se a diferente Francesinha da Taberna Belga, em Braga, e a do Barril, em Valongo, e ainda a do Requinte, em Matosinhos. Na Póvoa de Varzim há uma versão da iguaria que pode surpreender – servida em vários snack-bars poveiros, apresenta o pão em cacete ao invés de pão de forma, à qual se deu o nome de Francesinha à Poveira.
Em jeito de curiosidade, o Verso em Pedra, na Invicta, tem uma Francesinha especialmente grande, com um desafio ímpar: quem a conseguir comer toda, leva uma guitarra eléctrica lá exposta para casa.
Isto salvaguardando, claro, que há muitas outras que desconheço, ou que conheço mas nunca provei.