Casa dos Açores de Minde

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Se por acaso tiverem seguido o conselho que deixei no meu último artigo (sobre o Casulo de Figueiró dos Vinhos), então terão seguido caminho para Minde.
Este ponto de paragem é o segundo, numa rota que sugeri, para aqueles que gostem de desvendar, ao mesmo tempo, relíquias de idiomas e dialectos esquecidos, bem como pólos únicos de arte, de nomes portugueses subvalorizados na viragem do século.
Partindo, portanto, da fronteira das Beiras, para atravessar parte do país na diagonal, pela Estremadura adentro, chegaremos a Minde (Ninhou na gíria local). Quem se distrair, poderá entrar e sair da vila sem se aperceber que atravessou a localidade de um lado ao outro. Porquê? Porque a forma como a vila se desenvolveu nos últimos tempos, traçou a esquadro uma avenida que indicia os carros a seguirem em frente, até se aperceberem que já saíram. E não é só a morfologia da terra que desilude. Infelizmente, Minde encontra-se muito estragada, com uma falta de planeamento urbanístico tal que provoca um cenário quase atroz, fruto da negligência autárquica e desmazelo dos locais. Não fosse isso, e facilmente seria uma pérola, um verdadeiro destino turístico, quiçá mais bonita que o ponto de partida em Figueiró-dos-Vinhos.
De facto, a malha antiga da povoação esconde-se em ruelas por detrás de barracões e prédios ora baixos ora altos, como um pente de dentes partidos. O próprio polje, monumento natural chamado de mar de Minde, poderia ter uma promenade, como um postal, mas não.
Apesar disto, quem teimar em procurar a identidade local, rapidamente encontrará paralelos com Figueiró. Nomeadamente, na profusão da indústria têxtil, também aqui em declínio, assim como na existência de um dialecto local, o Minderico ou Piação dos Charales do Ninhou. E claro, por ser um local associado a grandes nomes das artes nacionais. E que artistas são esses tão badalados? Nada mais, nada menos, que Roque Gameiro e Raul Lino.
Um Mestre indiscutível
Quem busque pelo supra-sumo da aguarela Portuguesa, tarda pouco em afunilar para Alfredo Roque Gameiro, o mestre da pintura aquosa, um verdadeiro gigante, desconhecido, como sempre, pelos próprios Portugueses.
O mais curioso é que todos teremos visto, em alguma altura da vida, uma reprodução da sua obra, não só em molduras alheias, como em livros, sobretudo em edições clássicas, consideradas já como relíquias, dos Lusíadas e das Pupilas do Senhor Reitor, onde Roque Gameiro emprestou às letras o estímulo visual incrível da sua mestria.
Com esta menção, muita gente já terá uma ideia do que se fala. Mas para os mais desatentos, importa explicar Roque Gameiro como um aguarelista exímio, dos melhores do Mundo, capaz de fazer pinturas quase microscópicas e cheias de pormenores, como um mini cosmos enclausurado (pois via mal ao longe, mas extremamente bem ao perto). Ao mesmo tempo, era um criador de aguarelas de retratos em tamanho real, a ponto de desafiar os limites do género, assemelhando-se até a pinturas a óleo.
Ora Roque Gameiro não só nasceu em Minde como representou a sua terra, profusamente, servindo um registo fotográfico muito importante, especialmente numa localidade já tão descaracterizada.
Felizmente, tem na Casa dos Açores um museu dedicado exclusivamente a si. As obras, indevidamente tão pouco badaladas, encontram no centro da vila um refúgio – e de um refúgio se trata mesmo, pois a qualidade das suas pinturas depende de um grande esforço de conservação, de tal modo que as que estão em exposição são sempre em número reduzido (alternando a exposição toda de 4 em 4 meses).
Com sorte, o visitante apanha a bisneta do próprio Mestre como guia! O seu conhecimento incrível sobre o antepassado é capaz de maravilhar até o mais desinteressado dos turistas, bastando para isso mencionar o desastre de barco que vitimou uma série de pinturas suas, ou a forma como passava temporadas em cavernas ao pé do mar, à procura da luminosidade ideal, enquanto recebia comida e bebida por um cesto à corda.
Uma casa com aves de rapina por nome
Diga-se que esta jóia de museu, o único do país dedicado exclusivamente à aguarela, se deve em grande parte aos esforços hercúleos dos descendentes do pintor que, através do Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro, conseguiram no meio de tantas outra iniciativas, sediá-lo na Casa dos Açores.
E que casarão este! À semelhança do Casulo de Malhoa, temos de novo aliada à arte da pintura a arte da arquitectura. E que mistério encerra! Quem se aproxime, há de reconhecer alguns traços curiosos de outras obras espalhadas pelo país.
Não é necessário ser muito letrado na área. O próprio autor deste artigo suspeitou, logo à partida, do nome por detrás da obra, nomeadamente, Raul Lino. Ora aqui é que se insere o verdadeiro mistério. Raul Lino, não assina o projecto.
Aliás, à data da sua construção, Raul Lino não tinha ainda o canudo – para o qual, aliás, nunca estudou e que conseguiria ter por equivalência e provas dadas no mercado. Esse génio da arquitectura, à altura, ainda tinha os seus amigos e mestres a assinarem por si os projectos que fazia, já que ele não podia.
Portanto, Raul Lino não é o arquitecto oficial da Casa dos Açores. Mas se tivermos em conta que a casa tem todas as características da experimentação que Raul Lino fazia da arquitectura portuguesa, que Roque Gameiro era seu grande amigo, e ainda que Raul fez uma casa para o seu amigo aguarelista na Amadora (esta sim, assinada por si) bem como outro museu no país dedicado ao pintor, não é de estranhar que se assuma que tenha sido o mestre a arquitectá-la. Ainda para mais, possui até elementos neo-mouriscos semelhantes a paragens por onde o Raul Lino andou de passeio.
Com tanto para oferecer, vale mesmo a pena parar e ficar. Não só para desvendar a incrível talha dourada da igreja matriz, os múltiplos eventos ao longo do ano (o JazzMinde ou o NaturaMinde, por exemplo) ou ainda os tesouros cársicos em volta, perfeitos para BTT, parapente e espeleologia. E sem esquecer a já mencionada gíria local, o minderico, reconhecido internacionalmente pelo SIL International como língua autónoma de defesa, ou seja, criada e usada pelos feirantes mindericos, viajantes por todo o país, empenhados em entenderem-se entre si, sem que mais ninguém os percebesse. Assim, antes de passarmos à próxima etapa do percurso, há que abobrar por um pouco, mirantar a paisagem, ambrosiar e tirar as alexandrinas todas.
Mapa
Coordenadas de GPS: lat=39.51271 ; lon=-8.68744