Calão Minderico – Entrevista a João Baptista

by | 4 Mai, 2015 | Culturais, Estremadura, Províncias, Ribatejo, Tradições

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A propósito do lançamento do dicionário português-minderico e minderico-português, que visa ajudar quem quer entender este calão falado por centena e meia de pessoas numa zona específica da Serra de Aire, o Portugal Num Mapa vai cometer uma heresia: entrevistar um falante de minderico, mas neste caso de Mira de Aire e não de Minde.

As gentes de Minde que perdoem este escriba mas não poderia ser de outra forma, dado querer ter aqui a opinião desta pessoa em especial, não só por ser um dos falantes, mas também por ser meu avô.

Desde miúdo que me habituei a ouvir os meus avós falarem a Piação quando queriam discutir a mesada que me iam dar, e achei por bem homenagear esses momentos. Para quem estiver às escuras em relação a este assunto, a Piação (nome dado ao calão minderico) é um linguajar criado com fins comerciais, especificamente para a venda de produtos têxteis, e tinha o propósito de fazer com que os mindericos pudessem falar entre eles sem que outros – nomeadamente os compradores – os entendessem.

É hoje falada em Minde, que esteve na sua origem, e em Mira de Aire, vila que está a norte da primeira e que integrou o calão em alguns dos seus habitantes. A Piação, com o tempo, deixou de ser apenas uma forma de comunicação ligada a uma actividade comercial e estendeu-se a outras áreas, inclusivamente a práticas habituais, do quotidiano. Passando à entrevista.

Avô, qual a origem do calão de Minde?

A origem desta forma de linguajar vem da necessidade dos comerciantes de mantas, lãs e peles desta região se intercomunicarem nas feiras e mercados sem que os estranhos percebessem. Este calão iniciou-se há tempos remotos e utiliza-se pelo menos a partir do Século XIX.

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a origem desta forma de linguajar vem da necessidade dos comerciantes de mantas, lãs e peles desta região se intercomunicarem nas feiras e mercados sem que os estranhos percebessem

Qual a diferença entre o calão de Minde e o de Mira de Aire?

Há que considerar que há um só calão em Mira de Aire e Minde. A origem é minderica e Mira de Aire, que pertenceu até 26 de Abril de 1711 à freguesia de Minde, tem o mesmo linguajar. Contudo para certos termos há expressões diferentes. Por exemplo: “sapatos”, em Mira, diz-se “João de Beco”, em Minde, diz-se “balões”. Outro exemplo: “vinho”, em Mira, diz-se “gandil”, em Minde, diz-se “mota”.

Quais as palavras ou expressões mais correntes?

Podemos dar muitos exemplos. “Charal”, que significa “pessoa”, e daí parte-se para “charal do Ninhou”, que significa “minderico”, ou “charal da cidade de Santo Estevão”, que significa “mirense”. “Cidade de Santo Estevão” significa “Mira de Aire”, porque Santo Estevão foi morto por apedrejamento e nesta zona abundam as pedras. A Mira de Aire ainda se dá o nome de “Terrugem de Menizas”, que à letra significa “terra de mantas”.

Entre outras expressões e palavras famosas podemos indicar “cópia”, que significa “bom” ou “bonito” ou “honesto”. E temos “didi”, que significa “mau” ou “feio” ou “vigarista”. Pegando nestas podem-se fazer combinações de termos. Por exemplo, usando “neto”, que significa “dinheiro”, temos “didi no neto”, que literalmente significa “mau no dinheiro”, ou seja, “caro” ou “dispendioso”. Da mesma forma, “cópio no neto” traduz-se por “barato”.

Mais um exemplo: “d’arraiolos”, em minderico, significa “cabelo” ou “lã”, e “tosadeira” que significa “boca”; se combinarmos estes dois termos como “d’arraiolos por cima da tosadeira”, temos literalmente “lã por cima da boca”, que para nós é o mesmo que dizer “bigode”.

Há mais casos destes. “Regatinhar” significa “urinar”, e “mirantes” significa “olhos”. Se usarmos a expressão “regatinhar dos mirantes”, ficamos com “urinar dos olhos”, letra a letra, que se traduz por “chorar”.

Depois temos substantivos que dão mote para os verbos. “Degaivas” significa “mãos”, e “degaivar” significa “roubar”.

Ainda é falado o calão? Em que circunstâncias?

Este linguajar quase perdeu a sua usança mas recentemente tem sido retomado com o seu ensino aos jovens. Há dicionários com este linguajar.

Eu e a avó, por exemplo, quando vamos almoçar fora e se a refeição foi boa mas cara, dizemos assim, eu para ela: “Oh charala a trilha era cópia, mas didi no neto” – “Oh tu, a comida era boa mas cara”.

Eu e o meu avô

​João Baptista, meu avô materno, partiu no início de 2022. Foi um enorme prazer ter sido seu neto. Pelo conhecimento, pela candura, pela preocupação, lembro-me dele todos os dias.

Avô: muita saudade do seu homem. Até breve.

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