Vaca de Fogo

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Era nas grandes festas populares dos concelhos do Douro Litoral que a Vaca de Fogo surgia, mas apenas depois dos comes e bebes, das missas e procissões, dos concertos nos palcos principais. Nessa altura, quando o ponteiro caía nas duas ou três da matina, lá vinham os rapazes da terra, muitos deles ainda a coleccionar borbulhas na cara, iluminar as últimas horas da noite com bichas de rabear vindas de um aparelho estranho – uma caixa pintada de forma a que se parecesse um bovino – que se colocava sobre o corpo.
Pedro Ayres Magalhães, a motriz dos Madredeus, deixou-se fascinar pelo ritual, e a ele dedicou uma letra e uma música, a “Vaca de Fogo“, que serviu de catapulta da banda e se tornou um dos maiores êxitos do cancioneiro nacional. Teresa Salgueiro, com aquele toque de ópera na voz, canta-a assim: “os putos / já fogem dela / deita o fogo a rebentar / soltaram / uma vaca em chamas / com um homem a guiar”.
Por alguns danos colaterais que provocou, foi proibida na segunda década deste século. Tem regressado, devagarinho e reticente, em algumas das concelhias onde a sua prática mais se aprecia, como é o caso de Paços de Ferreira ou de Lousada.
Um segundo fogo de artifício
A Vaca de Fogo foi um fenómeno que se concentrou em concelhos nas imediações da cidade do Porto: nas já mencionadas terras de Paços de Ferreira e de Lousada, mas também de Paredes, de Felgueiras, da Trofa, de Valongo, de Penafiel, de Vizela. Testemunharam-se, ainda assim, alguns casos mais para norte, no Minho, e ocorrências muito pontuais a sul do Douro.
Regra geral, aparecia quando o álcool já mandava mais do que a razão, daí que fosse habitual fisgá-la após o encerramento formal da noite, ou seja, depois de terminar o fogo de artifício. Nesse momento, as crianças e os velhos que haviam resistido ao sono resolviam ir para casa. Ficavam a juventude e a meia idade. Aguardavam por um outro fogo, este mais próximo e também mais incerto. Uma colmeia de gente ganhava figura no largo ou na avenida principal do burgo. Já tudo sabia o que estava para vir.
Por fim, à vista cega que a polícia fazia, lá aparecia a vaca, uma vaca que mais parecia investir como um touro, guiada por um homem e fecunda de pirotecnia. À volta, uma coreografia ensaiada por aventurosa rapaziada desafiava o bicho. Quanto mais perto, sabia-se, maior o risco de se ser queimado. Um risco que a cerveja já tinha eliminado da consciência dos intervenientes – intervenientes que em paralelo traziam consigo outros materiais de lançamento de fogo com semelhante ou superior perigosidade. Os desatentos não eram excluídos e levavam com uma razia de vez em quando. Era o caos, mas um caos comunitário, saudado por quem nele participava.
A origem do rito é, sem surpresa, uma incógnita. Sabemos o quanto eram apreciadas nas Sebastianas de Freamunde, concelho de Penafiel, e é a essa romaria que se aponta a origem, algures entre o fim do século XIX e o início do século XX. É uma hipótese. No entanto, um fenómeno desta natureza, marcadamente pagão, terá uma semente mais remota. As Vacas de Fogo assemelham-se em muito com os toros de fuego que existem um pouco por toda a Espanha, ou com os toros embolados de Valência e do sul catalão, sendo estes últimos, provavelmente, aqueles que recriam o ritual na sua feição primitiva, já que usam um touro real e não uma armação em sua substituição. Estes costumes ibéricos atravessaram o Atlântico com a migração espanhola e encontraram chão fértil em países como o México, com os seus Toros de Lumbre.
A Vaca de Fogo é também uma tradição que poderá ter raízes na antiguidade clássica ou, num sentido mais lato, na grande cultura mediterrânica, da Grécia a Roma, da Suméria ao Egipto, de resto civilizações bastante devotas à figura da vaca como reflexo divino feminino ou do touro como reflexo divino masculino.
E por muito que a chamem de vaca, indo de encontro ao que antes disse, mais perto estamos de um culto taurino, de uma ode a um animal solar: à força, à fúria, à indomabilidade. O antigo touro de cornos em chamas representava o impulso criador do sol. O vórtice de faíscas que sai do seu dorso confirma a ideia de um ritual de expiação (ou iniciação) pelo fogo – não por acaso, a esmagadora maioria das Grandiosas Festas onde a tradição existe, acontecem em Julho e Agosto, quando o mercúrio bate ferros.
A proibição e o regresso
Não espanta ninguém que um espectáculo deste tipo, improvisado e desregulado, tenha trazido alguns acidentes. Queimaduras, tropeções, mesmo algum vandalismo. O problema, dirão alguns, não estava exactamente na Vaca de Fogo, mas sim noutros dispositivos comprados por terceiros, sabe-se lá onde, e que replicavam as bichas de rabear da vaca mas com aumentada potência, e que regra geral eram arremessadas já depois da Vaca de Fogo terminar.
Essas bichas eram, muitas vezes, armas de lançamento que alguns grupos de miúdos atiravam uns aos outros, como granadas em campo de batalha. O desregramento e até mesmo a violência sempre estiveram presentes nas romarias nacionais – quantas zangas não foram resolvidas com punhos cerrados nas festas populares, nos chamados ajustes de contas… A guerra de fogo que se instalava assim que a vaca cessava actividade era vista como apenas mais um excesso que quase ninguém denunciava, nem sequer a polícia.
Em 2011, porém, um jovem sofreu mais do que uma lesão menor. Um dos projécteis atingiu-lhe a face e comprometeu-lhe um dos olhos. O caso prolonga-se por década e meia na encruzilhada que é a justiça portuguesa e não tem fim à vista. Mas, entretanto, saiu uma providência cautelar a proibir as Vacas de Fogo em 2015 – uma providência que o que fez foi apertar o cerco à tradição, já que, na verdade, as vacas nunca cumpriram a lei, gozavam era de uma certa permissividade das gentes, das autarquias, das autoridades.
Devagar, devagarinho, algumas associações locais ligadas à organização das festas das concelhias têm arranjado maneira de reavivar a Vaca de Fogo. A coisa é feita de maneira controlada. As bichas de rabear desapareceram, o perímetro de segurança é respeitado, há polícia a fiscalizar. O ano de 2024 já contou com algumas reedições, como se pôde ver nas Sebastianas de Freamunde.
Agora, para finalizar, a minha declaração de intenções: é dever de quem manda garantir que as Vacas de Fogo não morram, porque, a julgar pela vontade do povo, elas nunca deveriam ter hibernado, menos ainda por tempo indeterminado. Qualquer comunidade precisa de activos identitários que façam com que os seus constituintes tenham consciência de que são parte de um nós. Há dois mil anos que o Homem necessita de símbolos, crenças, costumes, bandeiras. Ir contra isso não é modernismo. É negação. Que as Vacas de Fogo tenham regressado, aqui e ali, a palpar terreno sobre o limite a que podem chegar, já é boa nova.
Houve excessos, sim, como continuarão a haver. Que se faça um ou outro ajuste para salvaguardar a sua continuidade, então. Não entremos é nesta marcha cega em direcção às sociedades de risco zero. O que seria de nós se eliminássemos tudo o que potencialmente pode ferir ou magoar alguém. Por isso, que ressurjam, que ressurjam as Vacas de Fogo, em força e sem medo, porque medo, nas estruturas sociais de hoje, é coisa que não falta.

Putos provocam a Vaca de Fogo

A Vaca de Fogo solsticial no torrão duriense