Resgatar das Almas da Póvoa de Varzim

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Novembro é mês de culto aos mortos, e, consequentemente, de culto às almas. O velho poveiro, sendo acima de tudo pescador, e como tal intensamente supersticioso, vê nesse mês que marca o início da época escura uma janela temporal para remir os seus entes familiares no purgatório. Para isso, rumam e cantam a Santo André, irmão de São Pedro, e também ele pescador, tendo a ermida dedicada ao bem-aventurado – um pequeno templo atirado ao traiçoeiro mar da Póvoa -, como intermediária entre a terra e o céu.
A romagem para o Resgatar das Almas
A procissão à Capela de Santo André é feita, por tradição, a 30 de Novembro, dia dedicado ao santo, podendo ser deslocada para o fim de semana imediatamente a seguir. Era antes costume ocorrer pela madrugada. Agora foi empurrada para o final da tarde e acrescentaram-se ao evento algumas novidades profanas, como as desgarradas no final do Sacramento. Os lugares de onde a procissão parte variam. Mais recentemente convencionou-se que o ponto de saída é na Igreja da Senhora do Desterro, cerca de uma hora a pé do último destino, e há honras a outros beneméritos como se testemunha pelos andores que transportam: além de Santo André, também imagens de São Pedro, de São Bartolomeu, do Senhor dos Navegantes, da Senhora do Leite, da Senhora da Conceição, da Senhora de Fátima, e de São Sebastião viajam com os fiéis.
Contudo, outras pequenas peregrinações, regra geral de grupos bem mais pequenos, podem acontecer durante todo o ano. Isto porque o Resgatar das Almas, na comunidade piscatória, acontece não só no final de Novembro como de igual maneira sempre que alguém morre, nomeadamente um homem do mar – e lá acorre a família mais íntima à capela, a burburinhar as suas rezas, com paragens pelas Alminhas que se metem no caminho, num desesperado pedido intervenção a Santo André para que este pesque a alma querida já purificada para fora do purgatório.
Não pasma ninguém que se interesse por estas coisas que a dita ermida se situa num lugar já antes deificado. No afloramento rochoso hoje apelidado de Rocha de Santo André podem ser vistas fissuras que insinuam antigos rituais pré-cristãos. O hábito das meninas solteiras lá irem atirar uma pedrinha à espera de que fique no telhado, sinónimo de que casarão em breve, dá ênfase à teoria (“Santo André uma pedrinha, para eu para o ano vir casadinha”, cantavam) – o costume é visível noutros sítios de Portugal sacralizados antes da chegada de Cristo, como a Rocha dos Namorados no Alentejo ou o penedo a caminho do Santuário de Anamão.
A adopção do cristianismo levou a igreja a carimbar o rochedo com sinais da sua fé, atribuindo a uma das covas a marca do pé de Santo André que um dia ali foi pescar, ao mesmo tempo que lá fixou uma corpulenta cruz. A própria missa, no dia da peregrinação, é dada do cimo da penedia, se o tempo assim o permitir. Lembremos que a crença poveira assume que Santo André ajuda na libertação das almas que ficaram presas no profundo Atlântico, isto é, nas almas dos pescadores que foram e não voltaram, o que no império da faina que é a Póvoa de Varzim acontecia amiúde. O paralelismo entre a alma travada no purgatório e a alma aferrolhada no fundo do mar é evidente – para o pescador poveiro, são provavelmente a mesma coisa, e os cantos de clemência que no dia 30 se entoam em enlutada procissão (os trajes negros não enganam) servem para qualquer um dos casos.
Deolinda Maria Veloso Carneiro, num muito interessante levantamento das tradições religiosas da Póvoa, compara este Santo André a Caronte, psicopompo que, na mitologia grega, carregava as almas dos mortos. Santos Graça completa ao escrever que Santo André não é apenas um libertador de almas mas também um protector da faina – “é a melhor esperança para o poveiro de um bom Janeiro”, e Janeiro, neste caso, significa toda a safra da sardinha, entre Outubro e Fevereiro.
Tudo isto transforma o Resgatar das Almas em muito mais do que apenas uma colectiva súplica às autoridades celestes pela viagem dos seus mortos até ao Reino dos Céus. Quem sumariou muito bem o fenómeno poveiro de 30 de Novembro foi o Presidente da Junta de Freguesia da Póvoa de Varzim, Beiriz e Argivai, José Ricardo dos Santos Baptista da Silva, ao disparar uma atilada sentença sobre a romagem ao Santo André: “a alma que vamos resgatar todos os anos […] é a alma poveira”. Impossível dizer melhor em tão poucas palavras.

Vestidos de luto em romagem a Santo André

Cantares em súplica para as almas no Purgatório
A tempestade de 1892
Por muito que custe, não há como passar à frente do fatídico de dia de 27 de Fevereiro de 1892, quando uma tempestade rebentou na costa poveira provocando um trauma que mesmo hoje, cinco ou seis gerações depois, traz angústia e revolta à classe pescadora. Para muitos, a data ficou na história da Póvoa de Varzim como um separador de eras: há a Póvoa pré tragédia de 1892, e a Póvoa pós tragédia de 1892. Vasques Calafate confirma a teoria quando escreveu, mais de sessenta anos depois da desgraça, que os trajes tradicionais poveiros mudaram depois desse dia, passando de “trajos garridos, domingueiros” a “fatos escuros, da cor do luto”.
Com efeito, os múltiplos naufrágios que se sucederam no espaço de poucas horas e que deixaram impotentes dezenas de mães e centenas de crianças em desesperantes bramidos no areal, resultaram na morte de mais de cem homens, na sua larga maioria poveiros, raptados aos batéis pela fúria atlântica. A tragédia correu o país pela pena de muitos escritores e jornalistas, ao ponto da sociedade civil se ter mobilizado para ajudar. Até a rainha D. Amélia puxou dos galões para pôr o assunto como tema nacional. Casa assaltada, trancas à porta, e assim foi: depois de 1892, um Instituto de Socorros a Náufragos foi criado. O mar continuou a foiçar vidas, mas sem os números de antes.
E voltando a Vasques Calafate, no mesmo texto mencionado acima, faz caso sublinhar uma outra passagem acerca das peregrinações na Póvoa desde a catástrofe: “os poveiros também andaram muito tempo nessas piedosas romagens”. Não é referida a peregrinação a Santo André em específico, mas tendo em conta o motivo que move as gentes poveiras até à capela do santo abeirada da praia, não será grande salto de razão assumir que a procissão de 30 de Novembro engrossou no final do século XIX.
Póvoa de Varzim
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Mapa
Coordenadas de GPS: lat=41.41569 ; lon=-8.78316