Padrão do Tratado de Tagilde

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Não fosse o Tratado de Tagilde e esta modesta povoação nortenha seria pouco mais do que uma pequena causa da teia urbana de Vizela. Mas o tratado, que mais se pode considerar um pacto escrito, aconteceu, e durou, e durou, e durou, sendo hoje tido como um dos principais documentos a atestar a longevidade da aliança entre Portugal e Inglaterra.
O padrão e a celebração
O padrão que comemora o Tratado de Tagilde está exposto junto à igreja. Foi colocado em 1953, pouco tempo depois de em Inglaterra darem conta do exemplar do tratado original que ficou do lado inglês. O português sumiu-se, ou estará enfiado numa pilha de papelada velha num qualquer solar minhoto, que é a melhor das hipóteses, ou alguém o espetou no lixo sem saber a relíquia que tinha na mão. A falta de paradeiro da versão portuguesa do Tratado de Tagilde levou a Câmara Municipal de Vizela a solicitar uma cópia do original inglês – e fez bem, é a solução possível. Mas de volta ao padrão, este tem uma respeitosa verticalidade, com a pujança do granito, numa boa metáfora para a durabilidade das palavras acordadas. No topo, os escudos respeitantes a cada uma das partes. Ao fundo, o templo que veio substituir a igreja primitiva onde o aperto de mão se deu.
Neste mesmo sítio se comemoraram, no ano de 2022, os 650 anos desde a celebração do tratado, com visitantes de honra a deslocarem-se a Tagilde, como o embaixador do Reino Unido ou Maria João Araújo, presidente da Portugal-UK 650, mulher que se tem esforçado para promover os acordos luso-britânicos nascidos no século XIV, a quem todos – portugueses e ingleses – devem tirar o chapéu. O mesmo aconteceu em 2023 do outro lado da facção, em Inglaterra, aí para assinalar o Tratado de Londres (ou Tratado de Westminster), um sucedâneo de Tagilde, já com o Presidente da República português e o Rei de Inglaterra, Carlos III. E muito provavelmente, em 2036, mais cerimónias alusivas aos 650 anos de aliança existirão a propósito de um terceiro tratado, o de Windsor, firmado em 1386.
É questionável se Tagilde foi o embrião de tudo isto. A entreajuda das duas nações já tinha começado antes. E por isso o ideal será contextualizar toda a situação política que colocou Tagilde, o berço de São Gonçalo de Amarante, nos livros de história de Portugal.
A Guerra dos Cem Anos e as Guerras Fernandinas
O envio de ajuda militar a Portugal por parte dos ingleses começou bem antes de Tagilde. Iniciou-se, na verdade, com a fundação da nação portuguesa, quando esta até era mais uma ideia do que um facto. A vaga de conquistas que corria a península de norte para sul contava com vários soldados europeus, nomeadamente vindos de territórios além-Pirinéus, sobretudo de França – D. Afonso Henriques, por exemplo, é um filho da Borgonha. Contudo, também ingleses e outros mais se juntaram às hordas cristãs do norte ibérico. Dirigiam-se para as disputas da Terra Santa, mas com paragem por aqui, numa altura em que a península vivia também um clima muito semelhante ao de uma cruzada. Assim se conquistou Lisboa aos sarracenos – com gente de cá e do norte europeu. E não só. Também a tomada de Alcácer e outras terras islâmicas mais a sul tiveram ajuda das nações setentrionais, onde Inglaterra se incluía.
E contudo, a Reconquista, como foi chamada, não era apenas a disputa de terra por parte dos cristãos ao Islão. Entre os reinos ibéricos que entretanto se formavam, liderados por uma classe guerreira que comprava Ordens e fidalguia com promessas de território, jogava-se um xadrez político cínico e traiçoeiro. À medida que os castelos muçulmanos se perdiam para o lado cristão, uma outra guerra de interesses tomava forma – e que consistia numa luta de poder entre os reinos cristãos. Castela, nesse aspecto, parecia ganhar hegemonia. Absorvia, gradualmente, a influência dos reinos vizinhos. Tornou-se paulatinamente o reino aglutinador da Ibéria.
D. Dinis, apercebendo-se disso, vira costas a Castela e procura amizades num sítio improvável: o Atlântico. Assim se chega a um primeiro acordo entre o Lavrador e o rei inglês, Eduardo II, em 1308, que era sobretudo uma parceria comercial, de protecção aos mercadores portugueses em Inglaterra e aos mercadores ingleses em Portugal. As relações, a partir daqui, vão-se estreitando. O oceano que aparentemente separava Portugal de Inglaterra transformava-se progressivamente numa estrada de duas vias. Em 1353 o acordo comercial é renovado e alargado – a Guerra dos Cem Anos, que opõe Inglaterra a França, assim o obriga.
A mesma Guerra dos Cem Anos, entretanto, extrapola para a Península Ibérica. Dois reis para uma coroa castelhana: Pedro I, filho legítimo de Afonso XI, apoiado pelos ingleses; e Henrique II, Senhor de Trastâmara, também filho de Afonso XI e meio-irmão de Pedro I, apoiado pelos franceses. Pedro I é derrotado e assassinado. Henrique II assume o trono, mas quase metade do seu reino teima em não lhe prestar lealdade. A juntar, dois novos candidatos consideram ser os legítimos herdeiros do reino de Castela – D. Fernando, rei de Portugal, por ser filho de Beatriz de Castela e, portanto, neto de Afonso X, rei castelhano; e João de Gante, Duque de Lencastre e filho do monarca inglês, que, casando com a filha de Pedro I de Castela, acreditou ser o digno sucessor por via do casamento (chegou mesmo a mudar as suas armas, colocando as insígnias de Castela no seu brasão).
D. Fernando trava a sua primeira guerra contra o reino de Castela. Creu ter consigo o apoio do reino de Granada e de Aragão. Saiu defraudado e perdeu. Foi o primeiro tomo de três das chamadas Guerras Fernandidas. João de Gante, o outro candidato à monarquia castelhana, tenta recrutar entendimentos militares na Península Ibérica para preparar o assalto ao trono. Vendo recusada a possibilidade com Aragão, é D. Fernando de Portugal que lhe dá a mão.
Assim nasce o Tratado de Tagilde, em 1372, que decreta uma aliança “para sempre duradoura” onde João de Gante e D. Fernando se alinham no ataque a Castela e Aragão, embora apenas o primeiro possa ficar com o domínio do território castelhano e o rei português, enfraquecido depois da derrota contra Henrique II, fica limitado às conquistas que eventualmente aconteçam no reino aragonês.
Henrique de Castela, apercebendo-se da parceria entre portugueses e ingleses para o tirar do poder, invade Portugal. Começa a segunda guerra fernandina. D. Fernando crê que João de Gante se irá colocar a seu lado no combate, conforme sugerido no Tratado de Tagilde, mas tal não acontece. E D. Fernando torna a perder a contenda, agora com o peso de ter de assinar o Tratado de Santarém em Março de 1373 – uma humilhação que previa o pagamento de chorosas indemnizações a Castela, a expulsão dos galegos que lutaram do lado fernandino, o alinhamento de Portugal com a política externa castelhana e francesa (e, consequentemente, oposta à inglesa), e o casamento da meia-irmã de D. Fernando com o irmão de Henrique II.
Não obstante, nesse mesmo ano, D. Fernando ignora parte daquilo a que se comprometeu no Tratado de Santarém e volta a sondar os ingleses. O espelho do Tratado de Tagilde toma forma em Julho de 1373, agora assinado em Inglaterra por emissários de D. Fernando, na Igreja de São Paulo – foi cunhado Tratado de Londres (ou, como vimos, Tratado de Westminster) e tem como novidade implicar directamente o rei de Inglaterra, e não apenas o seu filho, o Duque de Lencastre. É reforçada a amizade entre as duas nações com uma torrente de boas intenções que falam em “paz, amizade, verdade, fidelidade, constância, sinceridade, amabilidade e solidariedade”.
Em 1379, Henrique II de Castela, conhecido por Usurpador por ter roubado a coroa ao seu meio-irmão, morre. O Duque de Lencastre renova as suas intenções de tomar Castela para si e exige novo apoio militar a D. Fernando. D. Fernando acede. O novo rei de Castela, Juan I, filho de Henrique II, ao ver o seu reino ameaçado, declara nova guerra a Portugal e inicia-se a terceira guerra fernandina. Portugal sofre pesada derrota na batalha naval de Saltes. Os ingleses vêm acorrer D. Fernando depois do revés de Saltes mas o exército é diminuto e composto maioritariamente por mercenários que se revelam mais arruaceiros do que soldados. Nada sai dali. D. Fernando perde pela terceira vez e assina um último acordo de paz, em Elvas, corria o ano de 1382, num novo enxovalho e desta vez com um bombom difícil de engolir – o que inicialmente estava previsto era o casamento de D. Beatriz, filha legítima de D. Fernando, com o filho de Juan I de Castela, mas o rei castelhano enviuvou e os planos mudaram, ficando D. Beatriz de casar com o próprio Juan I, um evento que lançou Portugal numa das suas mais problemáticas crises dinásticas, apenas resolvida com uma nova aliança entre portugueses e ingleses, desta feita selada com o Tratado de Windsor, que se concluiu com o casamento de D. João I e D. Filipa de Lencastre, os pais da Ínclita Geração – o ponto de partida para o período áureo da história nacional.
A aliança que nem sempre o foi
O Tratado de Tagilde e os tratados que a si lhe seguiram uniram duas nações por séculos. De forma sucinta podemos dizer que as palavras de teor muito generalista apresentadas em Tagilde e reforçadas em Westminster ainda no presente têm força – quantas vezes não ouvimos dizer que a amizade luso-britânica é a mais antiga da Europa, até do Mundo.
Porém, e se um casamento já dá discussão quando ainda nem um ano volvido passou, imagine-se num pacto de 650 anos. Foram muitos os períodos em que as linhas escritas nos Tratados de Tagilde, de Westminster, e de Windsor, foram ignoradas. A começar logo pela forma como D. Fernando foi deixado sozinho a lutar contra Castela apenas meses depois do encontro em Tagilde ou a maneira como o rei português foi tratado e destratado pelo Duque de Lencastre. E o mesmo podemos dizer, por exemplo, com as divisões territoriais africanas e o célebre Mapa Cor de Rosa, ou com a posição de Portugal na II Grande Guerra, colaborante com todos consoante lhe desse mais jeito. Por outro lado, não negando que com interesses próprios, foi Inglaterra que acudiu Portugal na Batalha de Aljubarrota e nas Invasões Napoleónicas, para irmos aos casos mais evidentes. Foi também esta velha aliança que colocou Portugal do lado britânico na I Guerra Mundial.
Uma relação complexa, carregada de contradições, que por vezes chegou a estar perto de resultar na total negação das palavras assinadas em Tagilde, mas que, apesar de tudo, se mantém como fonte de entendimento de dois países – actualmente Portugal e Reino Unido – que partilham entre si um espaço comum, de riqueza e incerteza: o Atlântico.
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Mapa
Coordenadas de GPS: lat=41.37733 ; lon=-8.27838