Noite de São João
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Há centenas de aldeias e vilas e cidades, sobretudo nas províncias nortenhas do Douro Litoral e do Minho, mais umas quantas da Beira Litoral, cada uma com a sua noite de São João. A uni-las está a raiz da celebração: o solstício de Verão, que, arredondando, acontece sempre por volta desta data, entretanto substituído pelo nome de um santo como forma de cristianizar a farra.
Aqui, contudo, irei falar da noite de São João do Porto em específico, porque me parece, das que conheço, aquela que guarda mais elementos dos tempos pré-cristãos – pedindo desde já desculpa aos bracarenses que nisto do São João ficam sempre meio ofuscados pelo seu vizinho duriense.
Enquadrado, juntamente com Santo António e com São Pedro, nas grandes festas de Junho, celebradas à Deusa Juno, o São João é, mais que tudo, uma festa do fogo e do sol. É o Solstício de Verão disfarçado de santidade.
São João e o Solstício de Verão
Como é sabido por alguns, não direi a maioria, o São João é uma festividade marcadamente pagã, e para isso bastará ver a forma profana como é celebrada – com balões flutuantes levantados pelo calor das luminárias, saltos sobre fogueiras como forma de purificação do corpo, batidas de martelos e alhos-porros para afastar maus olhados, crenças em orvalho mágico e curador, casamentos populares, lendas que versam acerca de moiras encantadas cujo encantamento é quebrado à meia-noite, plantas e ervas aparentemente inocentes que ganham virtudes que a medicina inveja…
Já falaremos de alguns destes ritos individualmente, mas, de forma genérica, todos eles são sobras de uma festa ligada a um calendário astronómico, numa noite que, no hemisfério norte, é marcada como a mais pequena do ano. E o facto de a igreja ter tentado, por todas as vias possíveis, incluindo carimbar um importantíssimo santo a esta data, só mostra o quão relevante o São João era na vivência das nossas gentes.
Mal ou bem, esta é a verdadeira razão do São João existir: a vitória do sol, que nesta altura do ano está mais forte do que nunca. A partir daqui, a estrela que nos aquece vai perdendo a sua influência, cedendo lugar à noite, que sairá vitoriosa seis meses depois, no Solstício de Inverno, o dia mais escuro (lembrando, novamente, que estamos apenas a ter em conta o hemisfério norte). Trata-se portanto de uma noite de mudança de calendário, como se estivéssemos a falar de uma outra passagem de ano.
Tradições das Noites de São João
É o mais velho e universal combate da criação: o bem contra o mal, aqui simbolizado no dia contra a noite, Verão contra Inverno. E o São João é, enquanto dia mais longo – e por arrasto, enquanto noite mais curta -, o triunfo supremo da luz sobre a escuridão. Daí o fogo, como elemento solene, estar tão presente nos festejos.
Os balões que gravitam sobre a cidade invicta são alegorias ao nosso astro mais luminoso. Também as fogueiras que alguns gaiatos devem saltar, ateadas por rosmaninho e funcho e sabugueiro e alecrim, servem como metáfora do sol, regenerando os corpos à passagem, tal como acontece nos eternos ciclos da natureza, que se vai renovando anualmente, estação a estação, conforme as vontades solares. Crê-se ainda que os primeiros raios de sol na manhã que se segue à noite de São João tornam as águas das fontes e das ribeiras e das lagoas mágicas, e com poderes invisíveis, curadoras de maleitas indesejadas e protectoras da pele. O mesmo para os banhos nocturnos, na Foz ou no Douro, tomados entre a meia-noite e o nascer do sol, que, conta o povo, valem por nove.
Mas não é só de fogo que a noite de São João é feita. Também o alho-porro (no Santo António do sul substituído pela alcachofra por questões de abundância) é usado com funções profiláticas, que são as de afastar o mau olhado, não descartando o seu lado fálico, em comunhão com o período fecundo que se vive naquela noite de transição. O alho-porro, como é fácil de perceber, foi em parte substituído, há poucas décadas, pelos famosos martelinhos de plástico, curiosamente de estética igualmente fálica, nunca perdendo o seu sentido mágico – cada martelada deve ser levada a bem, e vista como um desejo de boa fortuna, afastada de maus fados. As fadas lendárias, traduzidas aqui no burgo por moiras encantadas, têm nestas horas o seu período de libertação – desfazem-se dos seus destinos, seduzem certos homens, vingam-se de outros tantos, cantam e bailam como em nenhum outro dia.
Todo este circo cósmico é ímpar, e não se encontra equivalente orgia de luz e cor em nenhuma outra altura do ano.
Por alguma razão a Igreja guardou o seu mais importante santo para encobrir esta festança pagã, ficando Cristo com a outra grande festividade ao sol, a do Natal (que significa nascimento, mas não obrigatoriamente o de Cristo, antes, certamente, o do sol, que a partir daí ganha força).
A forma como o alto clero conseguiu enquadrar os ciclos da natureza na história cristã é, para dizer o mínimo, genial. Ao primeiro solstício do ano, atribuíram o santo que anuncia Jesus: São João Baptista, o primeiro mártir do cristianismo, nascido a 24 de Junho. E seis meses mais tarde, ao segundo solstício do ano, ele anuncia-se: nasce, segundo a Igreja, Jesus, a 25 de Dezembro. Como é evidente, seria preciso muita coincidência para que os dois maiores nomes da causa cristã nascessem, precisamente, nas duas alturas do ano em que o sol está em máxima ou mínima força. A verdade é que o marketing resultou. E hoje, apesar de quase todos os ritos realizados nas ruas, à vista de todos, nada terem de católico, é ao São João que levantamos os copos.