Lenda de Floripes
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Aquilo que se conta sobre a Lenda de Floripes tem mais a ver com o folk das nossas moiras encantadas do que propriamente com as crónicas que se versam sobre mouras que aqui ficaram após a Reconquista.
Em Olhão toda a gente a conhece, e quem não a conhece tem bom remédio: vá à Praça Patrão Joaquim Lopes, de onde a Estátua de Floripes não sai
A lenda de uma moira chamada Floripes
Há várias versões que se contam, como é apanágio de qualquer lenda, mas por aqui falaremos das duas mais consensuais que, tirando uma vírgula e acrescentando um ponto, não sofreram grandes alterações ao longo dos tempos.
Primeira versão da Lenda de Floripes
Era pouco frequentado um certo sítio em Olhão onde se fixava um moinho, agora substituído pelo Grupo Naval de Olhão. Dizia-se que as poucas visitas que aquele local inóspito recebia se justificavam pelo aparecimento, à meia noite, de uma mulher em vestido branco.
Contudo, havia um homem que lá ia todas as noites, sem qualquer medo de por lá adormecer. Não se sabe se por bravura ou se por beber demasiado, a verdade é que ele lá ia e ali pernoitava, chegando mesmo a ter a misteriosa e alva mulher a seu lado.
Durante o dia, o homem contava aos locais o que tinha acontecido na noite anterior – que mais uma vez adormecera junto ao moinho e que mais uma vez a mulher de branco aparecera. Ninguém acreditava mas também ninguém tinha coragem de ir com o compadre para testemunhar a existência da mulher.
Uma vez um jovem, que estava em vésperas de casar, foi abordado pelo bêbedo, tido como louco. E este lhe disse:
– Se vieres comigo passar a meia noite junto ao moinho eu próprio te darei um terreno como presente de casamento.
A oferta era demasiado boa para recusar e o moço aceitou-a.
Nessa noite, juntaram-se, e foram ter ao moinho, esperando aí pela meia-noite. E a meia-noite chegou. Nesse mesmo minuto, sai uma mulher com um longo vestido branco de dentro da atafona, descalça e com uma flor incrustada nos seus também longos cabelos loiros.
O jovem, atónito, perguntou quem ela era e o que ali fazia e a resposta foi imediata:
– Sou Floripes, uma moira encantada. O meu pai era sarraceno e foi expulso da península deixando-me por cá por não ter tido oportunidade de me vir buscar. Disse-me que regressaria para me levar com ele e aqui espero. O mesmo aconteceu ao meu amado que morreu numa embarcação ao tentar resgatar-me. Vendo o meu pai que seria impossível ter-me de volta à sua família, encantou-me das terras a sul daqui.
O rapaz, que com o desenrolar da conversa até deixou passar parte do medo que sentia, perguntou se havia alguma forma de tirar o encantamento à mulher. E a moira retornou:
– Há sim. O primeiro homem que me der um abraço e um beijo no braço do lado do coração desencantar-me-á e eu poderei regressar às terras onde o meu pai está.
Preparava-se o jovem para aceder ao pedido da moira quando ela continuou:
– Mas atenção, que esse homem, após me desencantar, terá de vir comigo até ao norte de África mantendo nas suas mãos duas velas acesas e casar comigo uma vez lá chegados.
E o rapaz respondeu que nesse caso nada poderia fazer, pois já estava comprometido com o seu amor e que casaria em breve.
A moira manteve-se encantada desde aí. E conta-se que por vezes recebia a visita de um miúdo de gorro encarnado – estaria ele, também, encantado?
Segunda versão da Lenda de Floripes
Viviam por Olhão, quando esta ainda era sarracena, um pai e uma filha.
Quando a Reconquista começou a galopar em direcção a sul e muitos mouros que viviam no Algarve tiveram de sair em debandada, a moura quis ficar. O pai não lhe perdoou a traição e encantou-a – não exactamente com um encanto mas sim com uma maldição.
A moura começou então a aparecer no mar, junto ao porto, sempre vestida de branco.
Os pescadores tinham como crença que a maldição podia ser quebrada caso conseguissem atravessar toda a ria de Olhão com uma vela acesa, e que assim que a moura desencantasse, estaria disponível para casar com o pescador que estivesse à altura de tamanho feito.
Nunca nenhum conseguiu. A moura, entretanto, deixou de ser vista. Diz-se que foi o pai que voltou, arrependido, e a levou de volta com ele.
Outras crenças acerca de Floripes
Além das supracitadas lendas, às quais se somam outras pequenas variantes, há ainda alguns relatos que colocam Floripes como um ser complexo, com muito mais que se lhe diga do que apenas a ideia de ser uma moura enfeitiçada pelo pai.
Em Olhão, acreditava-se que Floripes podia ser avistada em tarefas mundanas, como a de ir às compras, pagando sempre com uma moeda de ouro.
O próprio receio daquilo que é desconhecido era retratado em alguns ditos populares, que falavam da Floripes como se do Papão se tratasse, quando alguém ia fazer alguma coisa que provocasse medo.
Um relato recente de uma mulher nova, que diz estar a lembrar-se daquilo que a sua avó lhe contava, põe Floripes como uma Deusa, algo muito interessante para o significado oculto de Floripes, e até como uma Sereia que provoca, como é costume, os homens do mar.
Frequente é também a sua vestimenta ser tida como branca, um longo vestido branco, para ser mais preciso, e que a sua aparição é acertada para a meia-noite – pormenor relevante para descortinar um pouco mais deste folclore, como adiante se verá.
Floripes, a moira encantada
Tudo leva a crer que a Floripes que tantas vezes é mencionada em Olhão não é uma moura etnicamente falando, mas sim uma moira encantada, ser mitológico português e galego que já foi abordado em dois textos deste espaço (poderão aqui ser lidas a parte 1 e a parte 2).
É muito frequente a história e o mito se misturarem. O que acontece amiúde na tradição oral portuguesa é porem antigos seres mitológicos disfarçados de novos contextos – e nesse sentido, muitas crenças ligadas às nossas fadas, muito próximas, diga-se, das lendas fantásticas de clara inspiração celta, foram transformando-se em mouras (mulheres que acabaram enfeitiçadas quando os seus pais sarracenos ou amados de cá saíram).
Daí se explica que as nossas moiras encantadas tenham quase sempre cabelo louro, como acontece precisamente na Lenda de Floripes. Ou seja, não são mouras no sentido étnico do termo (isto é, sarracenas), mas sim fadas que, com o decorrer da história, foram rebaptizadas para encaixarem num contexto político e cultural onde o ethos era reclamado por islâmicos ou cristãos.
Há a moeda de ouro com que paga as suas coisas (o ouro é constantemente mencionado quando falamos das moiras-fadas, seja pela cor do cabelo, seja pelo pente doirado com que se penteia), a troca de promessas (um casamento como pagamento pelo desencanto), a dicotomia beleza/medo que Floripes causa, a sua aparição à meia-noite (uma hora mágica, de transição entre um dia e outro, espécie de portal do tempo)… As características da tradicional moira encantada, a dissimulada fada do folclore português, estão quase todas na Lenda de Floripes – umas mais disfarçadas do que outras -, o que nos faz pensar que esta Floripes é cultuada muito antes da invasão norte africana, e que o termo moura lhes tenha sido inculcado posteriormente. O relato da mulher que vê em Floripes uma Deusa lembra-nos isso mesmo: não há apenas lenda aqui, há muito de divino também.