Lenda da Serra da Cabreira

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Serra da Cabreira e Vila do Conde. Aparentemente, nada têm em comum – só aparentemente, porque há um rio que as une, o Ave.
A explicação lendária para estes três topónimos da geografia portuguesa surge numa bonita e dramática lenda, presentemente ainda lembrada, em especial pelos habitantes da Cabreira.
O fidalgo e a pastora
Havia um fidalgo que vivia junto ao mar. Era dado aos prazeres da caça e, com os amigos com quem partilhava este seu gosto, entregava-se a aventuras em paragens longínquas, sempre à procura de troféu cinegético.
Uma vez, entendeu deslocar-se até uma serra húmida e de bosques densos, umas quantas horas para o interior.
Contava encontrar corças, veados e javalis. E no entanto saiu-lhe na rifa coisa bem diferente. Por ali estava uma pastora a guiar as suas cabras, de uma beleza singular. O fidalgo pôs em prática o seu instinto de caçador, mas a presa era agora outra, e não sucumbia à força da bala.
Perguntando como é que tal beleza se encontrava por ali sozinha, a cabreira respondeu que vinha de terras mais a norte, da Galiza, e que sozinha não estava, pois nunca abdicaria da companhia do seu gado. Entre ambos cresceu um sentimento novo, que nenhum alguma vez tinha tido.
A paixão levou o fidalgo a largar os seus comparsas e a dedicar-se a uma vida simples ao lado da sua amada. Entretiveram-se com brincadeiras e promessas infantis que só gente apaixonada é capaz de entender. Das horas fizeram-se dias. Dos dias semanas. Das semanas meses.
Mas um dia o sentido de dever atingiu o fidalgo. Deveria retornar a sua casa, mas prometeu à pastora um regresso. A pastora concordou.
Voltou o homem a terras do litoral. E a cabreira tornou a passear as suas cabras pelas encostas verdejantes da serra. E as estações iam passando – Verões, Outonos, Invernos e Primaveras. Sobre o seu amado, nada sabia. Nem uma notícia. A ideia de que nunca mais o iria ver ganhava forma. Até que um dia, a ideia virou certeza, e do alto de uma vertente a pastora começou a chorar. Um choro incessante. Tão duradouro que um rio de lágrimas correu dali até à terra do nobre que a abandonou. E desejou que um dia se transformasse em ave para procurar o seu amor.
Desde aí que o povo chamou àqueles montes Serra da Cabreira, àquela distante povoação no litoral a Vila do Conde, e àquele longo rio de lágrimas o rio Ave.
Significado da Lenda da Serra da Cabreira
Há qualquer coisa de trágico na fluidez de um rio. Torna-se, em vários aspectos, uma metáfora para o destino e a inevitabilidade da morte. O Livro dos Símbolos assim o escreve – “tudo o que vive é como um rio”. Não é de estranhar, portanto, que tantas vezes se ligue um rio a uma tragédia, habitualmente consequência do pranto de alguém.
Pirene, ninfa grega que está na origem do mito dos Pirinéus, chorou tanto a perda do seu filho que originou uma fonte de água. Um pouco a sul, as lágrimas de Ísis são a explicação mitológica para as enchentes do rio Nilo. E até a língua inglesa não escapa à associação que se faz entre o choro e o rio, bastará para isso ver a quantidade de vezes que a expressão cry me a river aparece na literatura e na cultura popular.
Por cá, não é exclusiva da Lenda da Serra da Cabreira a origem de um rio estar nas lágrimas de um lamento. Já se falou neste espaço da Lenda da Beselga, junto a Tomar. Mas há mais.
No entanto, a presente lenda serve também, como já se disse, para justificar a existência de três referências geográficas: a cidade de Vila do Conde, a Serra da Cabreira, o rio Ave. Podendo estar certa nos dois primeiros casos, o terceiro mostra-se bem longe da realidade.
É verdade que o topónimo Cabreira poderá derivar da actividade pecuária que por lá andava, embora se ponha a hipótese de surgir de uma planta a que alguns dão o nome de cabreira, planta essa bem mais comum de se ver no sul do que no norte. É também verdade que Vila do Conde pode ter origem num fidalgo que residia no lugar onde está a actual urbe, discutindo-se muito sobre que conde seria esse – isto pondo de fora outras teorias que defendem que conde poderá ter reminiscências romanas ou pré-romanas. Já o rio Ave é mais ou menos consensual que surge do termo celta abona, que por sua vez significa água, isto é, bem longe da interpretação romanceada que lemos na lenda.