Lenda da Padeira de Aljubarrota

by | 21 Dez, 2016 | Estremadura, Lendas, Mitos e Lendas, Províncias

Monumentos

Natureza

Povoações

Festas

Tradições

Lendas

Insólito

As lendas são esboços exagerados da história, mas não deixam de ser história. É nisso que divergem de fábulas ou contos. Sem um contexto temporal e cultural, não haveria lendário. Nem haveria países, porque ainda está por surgir uma nação sem lendas.

Assim, mesmo que a Padeira de Aljubarrota não tenha existido, é indiscutível que ela representou algo que foi, pelo menos parcialmente, verdade: a vontade popular de se desfazer da constante ameaça castelhana.

Brites de Almeida não deve ser vista apenas como uma humilde padeira que virou guerreira. Ela, inventada ou não, é a representação da vontade da classe popular naquela época.

Contexto histórico da Batalha de Aljubarrota

Resumindo muito a coisa, Portugal viu-se num imbróglio de famílias reinantes quando D. Fernando, no final do século XIV, morreu não deixando filho varão.

A sua mulher, a Rainha Leonor Teles, tinha ascendência Leonesa e um galego como amante, e era vista com alguma desconfiança por parte da nobreza, burguesia e povo portugueses. A piorar o cenário, a única descendente que D. Fernando deixou foi a sua filha, D. Beatriz, entretanto casada com D. João I de Castela. Ou seja, seguindo a ordem natural das coisas, havia a forte possibilidade de, por casamento, o Reino de Portugal ser anexado ao de Castela.

Apesar de algumas famílias nobres aceitarem ou tolerarem a união de Castela com Portugal, outras havia que juntaram a sua voz à de um povo descontente. Entre elas encontrava-se um homem, de nome Nun’Álvares Pereira, exímio estratega militar que viu no Mestre de Avis, filho legítimo de D. Pedro I, a salvação na linhagem portuguesa. Entregue a coroa a ele, o Reino de Portugal estaria a salvo das confusões de sucessão.

A guerra teve o seu embrião quando D. João I mandou assassinar o amante de D. Leonor Teles, o galego João Fernandes Andeiro. E confirmou-se na altura em que, mais tarde, as cortes decidiram afirmar D. João I como inequívoco Rei de Portugal, negando o trono à suposta herdeira natural, D. Beatriz.

D. João de Castela não ficou indiferente à provocação e, depois de várias tentativas de tomada do reino que se revelaram infrutíferas, marchou, com a ajuda de um exército francês, sobre território português, dirigindo-se a Lisboa com o objectivo de destituir o novo rei recém-eleito. E foi nesse momento que Nun’Álvares apelou aos aliados ingleses e se deslocou até próximo de Aljubarrota, travando uma batalha que mudou o curso da história, corria o ano de 1385. Segundo cronistas, o exército anglo-luso estava em clara minoria – a proporção de forças não é clara, fala-se hoje num número de quatro castelhanos para cada português em certas versões, e de dois castelhanos para cada português noutras -, mas fez-se valer da astúcia militar de Nun’Álvares.

O reconhecimento de Portugal enquanto reino independente, por parte da inimiga Castela, só chegou cerca de 25 anos depois, mas é consensual o papel determinante que a Batalha de Aljubarrota teve na consolidação da soberania portuguesa.

Começava aí a Segunda Dinastia.

Brites à pazada nos espanhóis, em trabalho de azulejaria

Azulejaria com reprodução da Lenda de Aljubarrota

Lenda da Padeira de Aljubarrota

E aqui entra esta famosa personagem do lendário português, Brites de Almeida, reduzida a Almeida quando se transformou em soldado.

Há, como sempre, variadíssimas versões da Lenda da Padeira de Aljubarrota. Ficarmo-nos pela versão mais comummente contada.

Brites era uma mulher forte, algo masculina, combativa. Nascida em Faro, era filha de um taberneiro, habituada portanto a ambientes viris. Depois de uma vida entre Lisboa e Loulé, resolveu fugir do Algarve por, diz-se, ter morto um homem que a tentou seduzir – outros dizem que tal rapaz queria mesmo casar com ela, e ela testando-lhe a força acabou por lhe causar ferimento mortal. O problema é que a fuga a levou para sul, ficando à mercê de um sultão. Tornou, a custo, a procurar novo destino, tendo apenas o mar como porta de saída daquele tormento. Os ventos levaram-na de lancha até ao Atlântico aportando apenas na actual praia da Ericeira.

Manteve-se envolvida em várias controvérsias, entre as quais acusações de morte de mais um homem, meteu-se em escaramuças com alguma gente suspeita de piscar o olho a Castela, e indignou-se contra Leonor Teles depois de ter sido tornado público o seu caso com um galego. Já aqui se prenunciava o seu partidarismo com a causa nacional, avessa ao jugo castelhano.

A vida, até aí, nunca lhe ofereceu monotonia. Até que houve finalmente tempo para acalmar as águas, quando, saindo de Lisboa, se fixou em Aljubarrota como ajudante de uma padeira que lá vivia. A relação entre ambas foi de extrema cumplicidade, e com a morte da padeira, Brites tornou-se a sua justa herdeira.

E eis que, a onze quilómetros desta pequena povoação, D. Nun’Álvares Pereira leva um exército de ingleses e portugueses de encontro a um outro, com franceses e castelhanos. Sai de Lisboa e dirige-se para norte, até ao Castelo de Porto de Mós. O confronto iria acontecer a pouco quilómetros da casa de Brites de Almeida. Há quem diga que a padeira viu a batalha de fora, e há quem diga que ela pegou na sua pá e se juntou ao exército português. As duas versões, contudo, coincidem numa coisa: depois da vitória lusa, muito devida ao génio de Alvares Pereira, no regresso a casa, Brites deu de caras com sete castelhanos escondidos no forno onde cozia o pão. E a esses, sim, matou-os à pazada.

Interpretação da Lenda da Padeira de Aljubarrota

A maravilha das lendas é que, por não serem factuais, estarão sujeitas a centenas de diferentes interpretações.

Uma maneira de ler, de outra forma, as linhas desta lenda que é, a par com a Lenda do Galo de Barcelos, a mais famosa de Portugal, é perspectivando-a como metáfora. De facto, ainda que a padeira possa ser um mito, acaba por dar uma representação carnal do sentimento do povo. Diz Alexandre Herculano: “é um símbolo, uma expressão da ideia viva e geral aos portugueses daquele tempo, o ódio ao domínio estranho, o rancor com que todas as classes de indivíduos guerreavam aqueles que pretendiam sujeitá-los a esse domínio”.

Com efeito, talvez a Padeira de Aljubarrota seja uma criação posterior, até bastante posterior. Uma maneira de romancear uma vontade popular. Mas se de facto tudo isto não passa de uma inventada heroína elevada à categoria de símbolo nacional, não poderemos separar tal invenção da sua base histórica, o descontentamento generalizado face a uma eminente perda de soberania.

Ainda a este propósito, diz-se mesmo que, após os castelhanos darem a batalha como perdida, começaram a fugir e foram levados para as imediações de Aljubarrota, e que por lá foram perseguidos pelos locais. Que nesses aldeões pudesse estar uma padeira com a sua improvisada arma em riste, não é de todo impossível.

De resto, sendo um pouco mais especulativo, não deixa de ser interessante notar, mais uma vez, a presença do sete, o número de castelhanos mortos à pazada pela padeira. O número sete é o mais enigmático e antagónico de todos. Se normalmente, em termos teológicos, significa o todo, o completo, a perfeição, há vários casos em que está envolto em malignidade. Nas lendas portuguesas, quase sempre, representa alguma coisa má. Os lobisomens, por exemplo, são habitualmente os sétimos filhos da mesma mãe. Aqui volta-se a essa simbologia, ligando o lado obscuro do sete a Castela. Se isso foi feito propositadamente ou não, nunca saberemos.

A homenagem de Aljubarrota à Padeira

Encontram-se, na vila de Aljubarrota, na província da Estremadura, vários objectos e monumentos alusivos a esta personagem que, ficcional ou real, acaba por fazer parte do imaginário popular português.

A mais óbvia é a estátua a Brites de Almeida, no centro da praça com o mesmo nome. Bastante modernista, estilo que acabou por ofender alguns gostos mais puristas, eleva-se a padeira acima de um plinto que simboliza o forno onde trabalhava o pão e onde, segundo certas versões da lenda, se esconderam sete castelhanos. Bem perto dela, estão as ruínas de uma casa conhecida por Casa da Padeira.

Por trás, na Casa do Celeiro, encontramos nas paredes painéis de azulejos que remetem para episódios da batalha e para a intervenção de Brites de Almeida nesta.

E a célebre pá com que a padeira, supostamente, matou e afastou soldados castelhanos, esteve guardada nos Paços do Concelho. Conta-se que se escondeu por trás de uma parede quando Portugal foi anexado a Espanha, em 1580, tornando a aparecer na Restauração, sessenta anos depois. Ainda hoje pode ser vista, a pedido. Ela própria é ilustrada no brasão de Aljubarrota, sobre fundo vermelho (o sangue), como símbolo maior da povoação (ver imagem ao lado).

Brasão de Aljubarrota com a pá da padeira

Brasão com a pá da padeira

Onde ficar

A Casa da Padeira (foto em baixo) é, por localização e por serviço, o melhor sítio para se ficar em Aljubarrota. Tem uma acolhedora lareira e uma aparência rústica mas muito confortável.

Há bilhas, matraquilhos e parque infantil.

Muito perto, se Aljubarrota já estiver vista, há Alcobaça, a Nazaré, e a Batalha.