Cruzeiros

by | 23 Ago, 2016 | Culturais, Minho, Províncias, Tradições

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Os Cruzeiros são cruzes, normalmente de dimensão humana, ou até maiores, que vamos encontrando em determinados locais de estranha energia. Tratam-se de uma das fórmulas mais aplicadas para esconder o paganismo de alguns lugares sacros, adaptando-os a uma nova fé, isto é, cristianizando-os.

Encontramo-los em todas as regiões portuguesas, sem excepção, embora se concentrem mais no norte e centro-norte.

A eles estão associadas lendas, a maioria de carácter sobrenatural. E são várias vezes ponto de referência de romarias e procissões, aos quais se devem dar voltas para trazer boa sorte à comunidade.

É um assunto que dá pano para mangas mas que vamos tentar abreviar o mais possível nas linhas que se seguem.

Uma maneira simples e pouco dispendiosa de cristianizar lugares pagãos, os Cruzeiros acabam por ser uma tradução católica que a Igreja fez dos antigos Deuses

Locais de culto dos Cruzeiros

Normalmente, os Cruzeiros encontram-se em locais que a natureza, de alguma forma, abençoou.

Aí incluímos vários tipos de exemplo. Cumes de certos cerros com vista ampla sobre o horizonte. Pedras que se destacam de outras, pela sua posição, formato, ou dimensão. Finisterras, essas terras-limite onde o elemento terra faz fronteira com o elemento água. Mas, mais que qualquer um dos descritos acima, em pontos chave dos caminhos, como as encruzilhadas ou os cruzamentos.

Bastará pegar uma rota serrana e teremos forte probabilidade de darmos com um à nossa frente, habitualmente feito em pedra. Nesses trilhos cobertos de bosque, numa situação de escolha de um entre vários caminhos possíveis, é muito frequente lá estar um Cruzeiro. São uma versão recente, ou seja, cristianizada, de outras versões pagãs: dos Deuses dos caminhos, por cá tidos como Hermes ou Lug.

Cruzeiro em praça histórica de Marialva

Cruzeiro na aldeia de Marialva

Os Cruzeiros como Deuses de Caminhos

As encruzilhadas dão ao homem situações de incerteza. Representam um momento de deliberação, e é nesse contexto que surgem os pedidos de ajuda a entidades mais altas.

Nesses sítios de decisão, o Cruzeiro fazia o papel de antigas Divindades, a quem se pedia boa fortuna para a viagem que estava para vir. Poderá haver uma segunda alternativa ao Cruzeiro, igualmente cristã, que é a atribuição de Senhoras a esses sítios, materializados com a construção de capelas a Elas dedicadas. Assim, é comum que certos pontos de passagem sejam brindados com ermidas com nomes sugestivos para os caminhantes, como por exemplo Nossa Senhora da Boa Viagem.

De qualquer forma, são os Cruzeiros que mais vemos, até por uma questão prática.

Sabemos que São Martinho de Dume, o clérigo que mais fez pela destruição de vestígios pagãos em Portugal, quis proibir o povo de iluminar encruzilhadas com velas, ou de as decorar com pequenas pedras, ex-votos conhecidos como alminhas – tratavam-se de gestos rebuscados ao paganismo, promessas a antigas Deidades que a igreja deveria combater a qualquer custo. Não que Portugal não fosse, já nessa altura, oficialmente católico. Mas ainda que católico, conservou costumes que pouco ou nada reflectiam a fé cristã. Terá sido por essa altura que a conversão das encruzilhadas ao Deus oficial começou, ou pelo menos foi por essa altura que se tornou mais volumosa.

Contudo, os velhos hábitos não morreram. No norte e na Galiza ainda menos. É recorrente avistarmos amontoados de pedrinhas (as já faladas alminhas) em zonas onde se encontram Cruzeiros. Mesmo rituais aparentemente cristãos, como o de certos caminhantes se benzerem à passagem de uma encruzilhada, são reminiscências de apelos ao genius loci, o espírito ou o Deus tutelar do lugar.

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Os Cruzeiros e as Lendas

É hábito encontrarmos lendas associadas às encruzilhadas agora crucificadas. Em muitos casos, a lenda versa sobre algum animal maléfico, sempre a encarnação do diabo, que por ali anda a espalhar o tormento.

Está fácil de ver que estas lendas são mais uma via de demonização de antigos cultos. Uma maneira de dar a volta ao texto, pondo a cruz que lá se construiu como a cura para todo o mal que tal sítio emanava. Como é evidente, o espírito destes lugares nada tinha de aterrador, ou teria apenas aos olhos da igreja, que os via como pequenos bastiões pagãos que deveriam ser denunciados, ou, a não resultar, substituídos.

A título de exemplo, perto de Vila Real, na aldeia de Justes, conta-se que uma burra estava constantemente a fugir dos seus donos, e que alguns rapazes lá da terra a iam devolver sempre que a encontravam. Um dia, não o fizeram. Um dos galfarros decidiu montar-se nela e correr a aldeia feito cavaleiro. A burra virou cavalo, e começou a cavalgar desenfreadamente. O miúdo perdeu o controlo do bicho e num acto de desespero resolveu pedir ajuda divina, gritando que se Nossa Senhora o salvasse dali, construiria um Cruzeiro a Ela. Nesse momento caiu e escapou ileso, sem um arranhão. A burra seguiu e chegou a despedaçar um muro de pedra até a perderem de vista. E nesse momento os rapazes perceberam que se tratava de uma descida do diabo à terra, encarnado naquele maldito animal. O Cruzeiro assim se fez, como promessa.

É apenas um dos casos, mas poderíamos dar muitos outros.

O que fica, no fim de contas, é esta ideia de pintar ritos pré cristãos com cores cristãs. À superfície, o que vemos é apenas uma cruz. Trata-se somente da ponta de um iceberg que tem muito para descobrir. E para isso basta a curiosidade.

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