Campos Masseiras – Entrevista a Manuel Luís Santos Eusébio

by | 25 Abr, 2024 | Culturais, Douro Litoral, Províncias, Tradições

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Os Campos Masseiras são um tipo de agricultura em extinção. Na conversa que tive com o senhor Manuel Luís Santos Eusébio, apercebi-me de que restam apenas três entre os concelhos da Póvoa de Varzim e de Esposende – isto de acordo com o seu testemunho, e dando de barato que pode haver mais um ou dois que o Manuel Luís possa desconhecer.

A arquitectura é relativamente fácil de explicar: cavam-se rectângulos em chão arenoso (quando não mesmo dunar), sobre lençóis de água subterrâneos, e protege-se o terreno do vento e do sal marítimo com vinha. Fertiliza-se a terra com recurso a alga – o sargaço – e, noutros tempos, também a caranguejo seco. A profundidade da escavação acaba por funcionar como estufa natural. Desta alquimia dá-se o milagre: plantar hortas num sítio que servia para narcisos, fenos-das-areias, estornos, morganheiras-das-praias, e pouco mais. José Saramago, em “Viagem a Portugal“, escreveu como só ele sabe acerca do fenómeno: “Em Aguçadoura, os campos-masseiras inventam agriculturas entre areias estéreis. Transporta-se a terra, o húmus, os férteis detritos vegetais, as algas colhidas do mar, e armam-se canteiros protegidos do vento, e tudo isto é como cultivar hortas no deserto.”.

A primeira vez em que ouvi falar deles, pus-me aos giros pela costa de Aver-o-Mar, de Aguçadoura, da Estela, de Apúlia, de Fão… Não dei sequer por um. Volvido a casa lembrei-me de uma amiga cujos pais eram de Aguçadoura, agora emigrados no Canadá. Depois de um telefonema meu, e, calculo, de alguns outros dela, lá soube de um senhor com um terreno na freguesia da Estela que continuava com a abençoada teimosia de manter a agricultura popular dos Campos Masseiras. Numa curta viagem entre o Porto e a Póvoa arranjei maneira de o entrevistar no seu terreno, uma agulha no meio da palha em que se tornaram as centenas de estufas hortícolas que servem os consumidores portuenses.

Por isso, um obrigado à Diana, que pelo telefone descobriu aquilo que eu não consegui fazer in loco, e um muito obrigado ao senhor Manuel Luís, pelo tempo da entrevista e pela casmurrice de se manter como a ovelha negra dos campos da Póvoa.

Cá estamos. É o único Campo Masseira?

É o único. Aqui, é o único. Há mais um, pequenino, que a Junta fez na Aguçadoura, junto ao campo de futebol.

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A sério?

A sério.

Estamos a que distância do mar, já agora? Isto era duna?

Ah, estamos pertinho. É já ali (aponta para poente). Não era bem duna. Era pinhal. Eram pinheiros daqui até ao mar. E aqui estavam cinco Campos Masseiras.

E foi tudo substituído por estufas?

Sim, tudo. Tirando este.

E o que levou tanta gente a libertar-se dos Campos Masseiras?

A extracção de areias. Foi isso. Dava dinheiro. Vinham aqui retirar areias e levavam-nas.

Podemos descer até ao campo? Já vi que manteve a vinha à volta.

Sim, mantive a vinha à volta. Este ano está um bocadinho danificada. Não sei o que é que aconteceu. Está muito atrasado, o rebentamento.

O meu avô comprou isto por volta de 1936. Mas já havia um campinho ali no meio, na parte mais baixa. Foi o meu avô que plantou a vinha. Era uma forma de trazer vinho para casa.

As pessoas puseram a vinha para proteger os terrenos?

Sim, é um aproveitamento. Este campo foi descoberto pela [década de] 1930… O meu avô comprou isto por volta de 1936. Mas já havia um campinho ali no meio, na parte mais baixa. Foi o meu avô que plantou a vinha. Era uma forma de trazer vinho para casa. O resto era cultivado.

E cultivado com o quê?

Batata, alguma cenoura. Cebola na altura não se fazia. Depois [cultivava-se] penca. A minha avó fazia muito o mercado de Vila do Conde. Levava para lá para vender. Fazíamos alguma [couve] coração, também.

E neste momento, o que se cultiva?

Este campo era para ser usado para batata e coração. Este ano não aconteceu porque o ano passado plantei batata e roubaram-me um bom pedaço.

Como assim? Roubam?

(risos) Roubam muito aqui. Vêm para aqui de noite, não há ninguém, e tiram o que está. O que é engraçado é que nós chegávamos aqui ao campo e víamos os pés da batata direitinhos e nem sequer topávamos que estavam mexidos. E a minha mulher disse-me “não adianta plantares batatas que vais ficar sem elas”, então bota [couve] coração e acabou. E vai ser o que vou cultivar.

Como fertiliza o campo?

O ano passado levou algas marinhas.

O sargaço?

O sargaço. Deitamos o sargaço, depois deitamos o estrume.

Onde vai buscar o sargaço?

O sargaço vou apanhá-lo ao mar. O mar é que o deita fora.

Mas apanha-o à mão?

À mão não. É o tractor que faz esse trabalho.

E antes faziam como? Com juntas de bois?

Era à mão, com padiola, ou carriola. Podia haver cavalos ou carroças a acartar as algas marinhas. Com os tractores, os cavalos puderam descansar.

Entrevistado e entrevistador

Junto aos Campos Masseiras da Póvoa de Varzim

Quando é que vai buscar esse sargaço?

A partir do mês de Maio até Setembro ou Outubro. O sargaço tem de secar e depois é que é aqui posto, já seco, pelos meses de Novembro e Dezembro. O cultivo acontece nos meses de Fevereiro, Março, Abril. É conforme.

E põe só sargaço?

Não, depois leva estrumes. Leva o estrume de gado. De cavalo.

Li também que por vezes se fertilizava o terreno com o uso de caranguejo.

Havia caranguejo sim, antigamente. Depois deixaram de o apanhar. Quando havia caranguejo era estendido seco. Era muito melhor até do que os outros [fertilizantes]. O meu falecido avô e o meu pai diziam que era o melhor para a terra. Mas as algas marinhas, com estrume, também resolvem bem – não resolvem é se as botarmos verdes. Tiradas do mar e estendidas na terra não funcionam. Têm de secar e só depois são postas aqui. As chuvas acabam por fazer o resto. Fica só a gordura na terra. Os salitres desaparecem. Se pusermos as algas ainda verdes, isso deixa-nos o salitre todo aqui – a gente cultiva e não dá nada. A salinidade na terra faz com que a horta não desenvolva. Acaba por morrer, mesmo.

E não havia aqui o problema de inundação?

Às vezes quando o rio rebenta. Há ali por trás daquelas árvores um rio. Quando a água sobe, quando não está bem limpo ou há um tronco cai, pode inundar, mas já inundou mais do que inunda agora. Ali por baixo daquela rede tem uma sangração que vem destes campos aqui todos de cima, uns oito ou nove campos, está tudo entubado, está tudo fechado até ao rio. Hoje só mesmo quando a água sobe muito é que ela pela sangração consegue chegar aos campos.

Como é que cavavam os Campos Masseiras, já agora?

Isto era cavado à mão, à padiola. Com os cavalos e as charruas passaram a ser eles a fazer o trabalho. E agora é o tractor que faz tudo. Mas ainda lavro este terreno com charrua de dois em dois anos.

E aqui em baixo, na cova, não acontece um fenómeno de estufa? Não fica bem mais quente do que ali em cima?

Fica. Forma estufa, forma. Aquela sebe ali por cima, aquele corta-ventos, não era assim… antigamente era com cana. Eram canaviais. Era tudo tapado com canavial. Depois é que resolvemos plantar estas plantitas porque assim não temos o trabalho de todos os anos pôr [as canas], porque as canas apodrecem e no Inverno, com o vento, caem.

Mas sim, no Verão, aqui em baixo, na cova, é muito quente. Há cinco anos eu estava aqui pelas três horas da tarde, passou um autocarro de franceses com uma engenheira que faz parte da Horpozim, a associação de agricultores, e ela veio aqui abaixo ter comigo e disse-me “ó senhor Manuel”, e eu respondi “diga, engenheira”, e ela “eu não consigo estar aqui com este calor”… “Vá para cima”, disse-lhe eu (risos). Eles vieram todos até aqui abaixo e não conseguiram [cá ficar].

Isto era cavado à mão, à padiola. Com os cavalos e as charruas passaram a ser eles a fazer o trabalho. E agora é o tractor que faz tudo.

É que estamos a falar de um buraco pouco profundo. Uns três metros de diferença…

Pois é, mas tapa-nos muito o ar. É quente quente.

E esta vinha? Faz vinho disto?

Faço. O Ricardo Araújo é que me leva a maior parte da vinha. Leva-a para as associações, para Melgaço. E para Famalicão…

Leva-as para cooperativas?

Sim, para cooperativas.

E para si, tira?

Sim. Vejo o que preciso para mim, e tiro. Uns quatrocentos litritos. O ano passado saíram daqui à volta de mil no total.

E esse vinho tem algum sabor característico?

É uma espécie de vinho americano. É branco. Não é o americano branco, o americano branco tem outro sabor. Este é mais suave. É pouco alcoólico, enquanto o americano branco é muito alcoólico.

Sente mais sal no vinho por ser daqui, tão perto do mar?

Não. Tem algum pé loureiro antigo, estes dois pés são loureiro (aponta para o valado a nascente). Este valado aqui era tudo casta loureiro. E deste lado eram tintos. Neste campo havia três variedades de tinto.

Continua a pertencer à região dos Vinhos Verdes…

Sim, é vinho verde. Esta videira começou a ficar fraca, porque era velha, vinha do tempo do meu avô, e o meu avô optou por ter casta loureiro desde aí. Aquele valadozinho acolá em baixo já é americano tinto, mas estão pequeninas, algumas até são capazes de estar secas.

Tenho filhos, sim. Mas nenhum trabalha no campo. Nem filhos, nem noras, nem genros. Ninguém trabalha no campo.

E voltando ao que planta aqui em baixo, é para consumo próprio?

Não, é para venda, tudo para venda. Para o Mercado Abastecedor do Porto.

Nota alguma diferença do que planta aqui no Campo Masseira para o que se planta numa estufa, por exemplo?

Há muita diferença, há. E não sou só eu que a topo. Mesmo quem a vem buscar diz que é muito diferente. Aliás, consegue ver a diferença até dentro de uma estufa. Às entradas das estufas as alfaces têm um sabor, as que estão para dentro já têm outro. [Às de dentro] falta-lhes o ar, falta-lhes o sol. Há muita diferença. Faz uma salada com alface de ar livre e ela está durinha e rijinha e boa, e uma de estufa, ou a come logo, ou fica mole.

O mesmo com as cenouras. Chegámos a ter muitos anos seguidos a plantar cenouras. Era um produto rentável, era um produto pesado, e ainda dava um dinheirito. Aqui era uma areia muito boa para isso. Havia areias aí, com pouca humidade, em que ela ficava curtinha. Aqui não. Ficava boa. Só ali num bocado no meio, que é de uma terra mais preta, mais húmida de Inverno, é que a semeávamos um bocadinho mais tarde.

E quanto ao futuro deste terreno?

Ai, não sei o que vai ser… Quando eu deixar de trabalhar, não sei. Eu não tenho ninguém a trabalhar no campo.

Tem filhos?

Tenho filhos, sim. Mas nenhum trabalha no campo. Nem filhos, nem noras, nem genros. Ninguém trabalha no campo. Tenho um genro faz o mercado de Penafiel e a mulher, minha filha, está no mini mercado. O meu filho mais velho é pintor auto e a mulher está também no mini mercado com a minha filha, uma de manhã, outra à tarde. A minha outra filha trabalhava no campo mas deixou por causa dos joelhos, até já foi operada. O meu segundo rapaz e o mais novo são taqueiros, trabalham juntos. O campo, para eles, não lhes diz nada. Vêm cá ver, se quiserem andar de tractor andam e até fazem alguns trabalhos que lhes digo para fazer. Mas só.

Eles conhecem este terreno?

Conhecem bem. Sabem que é o único campo masseira que existe. Às vezes ao final da tarde ainda aparece aqui algum ajudar-me a fazer qualquer coisa. Porque de resto não vêm ao campo. O campo não é para eles.

A minha esposa praticamente nada faz. Já não devia fazer há muitos anos, mas enquanto podia, fez. Foi operada há 31 anos à coluna. O médico disse-lhe: “esquece o trabalho, trabalhos ligeiros podes ir fazendo, mas pesados, esquece”.

Então isto está mesmo em prestes a extinguir-se…

Pois está. Não estou a ver futuro nisto.

Esse outro campo que disse que foi a Junta que fez, que Junta foi essa?

A Junta da Freguesia de Aguçadoura. Se quiser passar lá, podemos passar por lá. Fica em caminho. Até é capaz de lá estar alguém. Sei que o Ricardo Araújo ficou [responsável por] aquilo – foi ele que me ligou a perguntar o que haveria de fazer no terreno, porque está muito abandonado, muito magrinho, faminto. A freguesia quis montar um Campo Masseira para manter a tradição e o esquema do que era um Campo Masseira original. No caso deste desaparecer, fica lá esse.

Que idade é que o senhor Manuel tem?

Tenho 67. Estou reformado. Mas trabalho, não é a reforma que me vai pagar… Já disse à minha mulher que enquanto puder, esquece o estágio [a reforma], porque eu não posso estar em casa parado. O meu estágio é o campo…

O outro campo masseira

Depois de tirar duas ou três fotografias ao terreno – preciosas imagens que, se calhar, daqui a dez anos já não podem ser conseguidas -, pedi ao Manuel Luís que me orientasse até ao segundo Campo Masseira, o tal criado pela freguesia como espaço de memória.

Ficava um pouco a sul do sítio onde estávamos e não nos tomou mais do que cinco minutos de viagem. O segundo terreno era, como tinha já sido dito pelo Manuel Luís, mais mirrado do que o primeiro. Ao fundo, uma rulote ocupava parte dos metros quadrados que deveriam estar ocupados com cultivo. Mas a estrutura era a mesma: uma cova em formato rectangular atapetada com terra e delimitada por vinha.

Voltámos à conversa.

O campo masseira de Aguçadoura com a rulote ao fundo

O campo masseira da Junta, em Aguçadoura

Eles ainda plantam aqui neste campo?

Estão a tentar ver se vão plantar. Estas vinhas pequeninas já estavam aqui plantadas. Andam a fazer a limpeza disto e por vezes vejo aqui gente. A rulote [ao fundo] é que não sei para que é. Não sei se fica alguém por cá, penso que não…

Junto à praia estão os passadiços, onde vão aqueles dois caminhantes, devem ser peregrinos de Santiago. E ali é o campo de golf.

O campo de golf veio substituir alguns Campos Masseiras?

Não, não. Os Campos Masseiras já não existiam ali. Ali era só dunas. Nesse aspecto, o campo de golf não afectou nada. Os Campos Masseiras terminavam exactamente aqui. Depois disto eram dunas de fieiro.

Então quando começou a acabar este tipo de cultura dos Campos Masseiras?

Eu devia ter à volta dos 18 anos. Portanto, há uns 45 ou 50 anos. Foi aí que começou a cair em força. Depois houve uns anos em que por aqui nem havia campos. Eram molhos de areias enormes. Antes da vinda extracção de areias, houve gente que, ao falar de ter herdado terrenos por aqui, se queixava: “epá, olha o que me tocou, um campo que não posso escavar nem posso fazer nada”. Depois, passados uns anos, veio a extracção de areias, e eles ficaram melhor, fizeram bom dinheiro daqui. E ainda ficavam com o campo. Tiravam-lhes as areias e ainda ficavam com o campo.

E essa areia extraída daqui era para quê? Para vidro?

Não, não, para construção. Para casas. Era uma areia fina que se aproveitava para cimento.

E esta tradição foi-lhe ensinada pelo seu pai e pelo seu avô?

Sim, vamos pelos antigos. Comecei a trabalhar no campo ainda no tempo de escola. Com 7 ou 8 anos saía da escola e vinha para o campo. No início não fazia quase nada. Mas depois do fim da escola, com 11 ou 12 anos, comecei [a trabalhar] aqui. Com o tempo passei a fazer as coisas por mim, sem ajuda.

Usa-se a própria humidade do terreno. Tiro água do poço agora pela manhã e pela noite já está cheio outra vez…

Vai ao seu campo masseira todos os dias?

Não. Hoje fui por sua causa. Tinha estado lá no Sábado [cinco dias antes do dia da entrevista]. Há alturas em que vou mais. Pelo menos a rega tenho de fazer.

Por falar na rega, como a faz? Tem furos?

Tenho dois poços, não são furos, são mesmo poços.

E os poços são alimentados pelo rio?

Não. Usa-se a própria humidade do terreno. Tiro água do poço agora pela manhã e pela noite já está cheio outra vez…

Como é que isso acontece? É um lençol de água?

É um lençol de água por baixo que alimenta o poço, sim. Não é por veia. Há poços que sim, é por veia. A gente sangra e ela vem por veia para o poço. Ali é de um lençol de água.

E estes Campos Masseiras acabavam onde? De Aguçadoura até onde?

Até Apúlia. Mas desapareceu tudo. Até já fui eu passear ali para Apúlia a ver se vejo mais algum, mas já me disseram: “escusa de procurar porque não há”… Até encontraram agora um, em Apúlia, pequenino, mas com três valados em vez de quatro. Ainda está a ser trabalhado, acho que com milho…

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Coordenadas de GPS: lat=41.44409 ; lon=-8.77427

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