Bugiadas e Mouriscadas

by | 21 Mar, 2020 | Douro Litoral, Festas, Junho, Províncias, Tradições

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Para quem vem de fora, podia ser um Carnaval com quatro meses de atraso. Mas não. São antes as Bugiadas e Mouriscadas de Sobrado, no concelho de Valongo, a um pé do Porto. Tudo por causa de uma lenda que ainda hoje se conta. E começamos por ela, porque partindo daí é menos difícil explicar o resto.

A lenda dos Bugios e dos Mouriscos

Viviam-se os tempos de invasão moura em toda a península. O norte, apesar de muito menos influenciado pela esfera sarracena, teve de lidar com algumas investidas e até, por vezes, conquistas.

No vale da Serra de Cuca Macuca (actual Serra de Santa Justa) vivia uma tribo cristã, os Bugios, cujo líder se chamava Velho. A colina havia sido invadida por mouriscos comandados por Reimoeiro. Os dois grupos vivam, desde a ocupação, uma espécie de guerra fria, uma paz feita de papel cuja durabilidade era posta à prova todos os dias.

Um dia, a filha de Reimoeiro adoeceu. Uma doença grave e longa, sem fim à vista, apesar de todos os esforços do pai para que ela se curasse. Esgotadas todas as possibilidades, Reimoeiro ouviu falar de uma imagem de um santo que se encontrava na posse dos cristãos – era uma escultura de São João, e tinha fama de tratar qualquer maleita, por mais séria que fosse, como que por milagre. Era o último resíduo de esperança do líder mouro.

Reimoeiro pediu ajuda aos cristãos. Eles que lhe emprestassem a imagem para curar a sua filha, e se tal acontecesse ele a devolveria com todos os agradecimentos possíveis. Os cristãos acederam ao pedido.

Semanas depois, comprovara-se o boato. A imagem de São João salvou mesmo a filha do mouro. Todavia, a ganância de Reimoeiro fê-lo incumpridor da sua promessa, desejoso que estava de guardar o São João para si: resolveu montar um grande banquete de agradecimento aos cristãos com direito a procissão ao santo – no entanto, a comezaina não seria mais do que uma farsa. Chegado o dia, o Velho e os seus melhores homens deslocam-se às terras dominadas pelos árabes. Tendo sido completamente ignorados durante a festa, os cristãos foram confrontados com um ultimato: Reimoeiro disse-lhes que ficaria com a escultura de São João, caso contrário prenderia todos os Bugios que ali se encontravam, Velho incluído. Sucedeu-se uma curta batalha campal que terminou com a vitória dos mouros que estavam em clara maioria.

O Velho, pela sua rebeldia, foi condenado à morte. Todas as súplicas vindas do lado cristão para que não o matassem foram levadas pelo vento.

Mas os Bugios livres que ainda viviam no vale tinham uma coisa do seu lado. Falava-se de algumas superstições atribuídas a Reimoeiro e aos seus homens – aparentemente, tinham pavor de homens mascarados, de sons ruidosos, e de certos animais como serpentes. Organizaram então um exército trajado de cores berrantes, carregado de objectos barulhentos, adornado com máscaras, e alinhado em forma de serpente. No dia em que o Velho se preparava para ser morto, carregaram monte acima, até território mouro, vencendo o exército árabe e recuperando o seu chefe e a sua querida imagem sanjoanina.

Uma nota final: esta mesma lenda é contada, por vezes, sem o episódio da execução do Velho. A guerra entre Bugios e Mouriscos dá-se por recusa dos cristãos em emprestar a imagem aos sarracenos.

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O São João de Sobrado

A lenda contada acima serve de mote para o quase caótico ambiente que se vive nesta vila valonguense. Se, no Porto e em Braga, a festa do São João é empurrada, quase toda, para a noite anterior (23 de Junho), em Sobrado é guardada em exclusivo para o dia dedicado ao santo (24 de Junho).

Tudo começa pela manhã. Dois grupos organizam-se sem nunca se poderem ver até ao final do dia – cada um deles representa um dos lados da batalha, ou seja, os Bugios e os Mouriscos, e cada um deles tem uma função muito distinta na festividade.

Os Mouriscos, que são compostos exclusivamente de homens solteiros de cara destapada e vestidos militarmente (o seu líder deverá ser um jovem solteiro mas com casamento marcado para breve), são responsáveis pela procissão a São João e Santo André (padroeiro da freguesia) – uma escolha estranha visto serem a metade não cristã da festa -, feita por volta do meio-dia. São depois encaminhados para o Passal, junto à Igreja Matriz, onde é feita a Dança da Entrada e da Dança do Sobreiro. A pessoa escolhida como rei dos Mouriscos deverá benzer os seus súbditos.

Os Bugios, por seu lado, usam cores berrantes, máscaras, guizos, e objectos invulgares como caudas de animais ou peluches (antes escolhiam ervas ou outros artigos naturais). Podem ser homens ou mulheres ou mesmo crianças. Têm uma função muito semelhante à dos Caretos transmontanos. Além da Dança da Entrada, da ritualística Dança do Sobreiro e da bênção (executadas em separado dos Mouriscos) fazem as cobrança de direitos: um rito às avessas, onde um Bugio se monta num burro mas de costas viradas para a frente – aí deverá aplicar sanções que são pagas em forma de bebida (a cada multa que se passa, o Bugio passa a caneta no rabo do burro). Também de trás para a frente se faz o rito da sementeira, onde as sementes são atiradas aos visitantes e não ao chão. Junto à paróquia é realizada depois a Dança do Doce, culminada com a oferta de vinho e doçaria. Os Bugios podem também acender fogueiras (os mágicos fogos de São João) e pular sobre elas.

Para o fim fica então reservada a batalha entre ambas as facções. Montam-se dois castelos. De um lado a sobriedade dos Mouriscos. Do outro o fervor dos Bugios. Um homem, representando um mensageiro, vai fazendo piscinas entre uma fortaleza e a outra. A falta de entendimento entre ambas as tribos é notória e todos esperam o minuto do confronto. Juízes tentam substituir o trabalho do mensageiro, sem sucesso. A guerra é inevitável. Os Mouriscos, num primeiro momento, levam a melhor e capturam o líder dos Bugios. Mas a resposta vem depressa. O exército cristão, representado por uma grande serpente (ou lagarto) recupera o seu caudilho. Vencem os Bugios, mas quem termina são os Mouriscos, efectuando uma última coreografia, a Dança do Santo.

Bugios envergam o seu traje de guerra

Traje de guerra dos Bugios, os cristãos de Valongo

A Dança do Cego

Paralelamente ao confronto entre Bugios e Mouriscos, há uma outra coreografia apresentada ao público.

É uma espécie de mini peça de teatro, onde um sapateiro e a sua mulher (um homem vestido de mulher) caminham pela rua, sendo óbvio o descontentamento desta face ao marido. Chega, entretanto, um cego com o seu ajudante. Contudo, o ajudante do cego, um moço chamado Ladino, leva-o para um lamaçal onde este cai e se mexe de forma a espirrar lama para quem está em redor. Aproveitando-se da confusão, Ladino pega na mulher do sapateiro e foge com ela. O sapateiro pede explicações ao cego até perceber o que realmente aconteceu. Decide então confrontar Ladino numa curta luta de paus e, vencendo, recupera a sua esposa.

Significado das Bugiadas

Toda esta algazarra, tão informe que nos parece confundir, tem uma razão de ser. Vivemos o São João, que é o mesmo que dizer que vivemos o Solstício de Verão. Estes dias de Junho, aqueles em que o sol tem direito a mais horas, são, por natureza, datas efusivas. É a abundância da luz e do calor que inspira a folia que aqui se vê – a mesma abundância que justifica os martelinhos, os balões, o tumulto que se vive no Porto e em Braga na noite anterior.

Por outro lado, temos aqui a variante dos dois exércitos. Os Bugios e Mouriscos, no entender de Alexandre Loução no livro A Alma Secreta de Portugal, são os dois opostos da condição humana – Apolo, a razão, e Dionísio, a loucura (sendo o primeiro representado pelos Mouriscos e o segundo pelos Bugios). Os conflitos da humanidade são fruto da falta de harmonia entre cada um destes atributos, tal como a lenda induz. O facto de, nesta ocasião, termos episódios como a Dança do Cego e ao mesmo tempo os Bugios como vencedores da batalha, aponta no sentido da farra, no vencer do caos sobre a convenção, algo a que não é alheio a vivência do dia mais festivo da vila.

Ainda sobre as Bugiadas e Mouriscadas, não podemos pôr de lado o dualismo sol e lua, dia e noite. Com efeito, mais do que colocar um lado como o da força do mal e outro como o da força do bem, parece que o que aqui importa é a alternância. Se os Bugios são verdadeiros diabos, representantes da causa solar, os Mouriscos, com todos os seus pormenores iniciáticos (lembramos a ideia de transição que existe ao se escolherem como mouros apenas os rapazes solteiros, como se estivessem a transitar para algo maior, a idade adulta), tornam-se claramente defensores da metade lunar. Poderá isto significar que, apesar de estarmos em pleno Solstício de Verão, no apogeu da estrela que nos dá vida, é bom lembrar que a partir daqui o astro vai perdendo força, apenas recuperando meio ano depois, no Solstício de Inverno.

Valongo – o que fazer, onde comer, onde dormir

Valongo, o vale longo que existe a oriente da cidade do Porto é residência de algumas festividades cíclicas de vivência obrigatória: uma delas, imperdível, é o São João de Sobrado, que por ali ganha o nome de Bugiada; outras, que se repartem em várias freguesias do concelho, acontecem no Carnaval e denominam-se os Enterros do João. Igualmente merecedor de visita é todo o património românico do município, com destaque para a medieva Ponte de São Lázaro.

Dormir pode e deve ser feito no xistoso Porto Natura Loft, a norte do centro da cidade de Valongo.

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Mapa

Coordenadas de GPS: lat=41.20995; lon=-8.46176

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