Baptismos da Meia Noite

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As brumosas cordilheiras do nosso Norte, com Galiza e Leão e Astúrias metidas ao barulho, foram pródigas em entregar enigmáticas e soturnas narrativas ao lendário português. Longe do cosmopolitismo positivista das cidades, povoados e aldeolas serranos compreendiam os insólitos casos do quotidiano de outra forma, quase sempre com recurso à transcendência, justificando certos fenómenos inexplicáveis com outros fenómenos inexplicáveis. Também os seus ritos, gestos populares repetidos por questões religiosas ou supersticiosas, olhados pelos discípulos de Comte como um combo de exotismo e ignorância, se inscrevem nesse vasto património espiritual que tem vindo a escarçar desde que os efeitos da industrialização travaram o isolamento das gentes mais remotas.
Por isso, é aproveitar enquanto ainda temos anciãos que nos contem as fórmulas explicativas de outros tempos. Daqui a duas ou três dezenas de anos, provavelmente toda a crença será varrida para debaixo do manto da ciência ou do empirismo. É nesse sentido, o de tentar deixar registo do modus vivendi e sobretudo do modus cogitandi destas comunidades à beira do oblívio, que resolvo partilhar um ritual que ouvi dizer ser antigamente praticado junto à Ponte da Misarela, no Parque Nacional Peneda-Gerês, e que mais tarde li ser igualmente comum no rio Lima e suas imediações, abarcando os concelhos de Arcos de Valdevez, de Ponte da Barca, e de Ponte de Lima, mas também em Melgaço e em As Neves, esta última já em território galego.
Os Baptismos da Meia Noite entre a lenda e a realidade
Hoje, quando alguém menciona os Baptismos da Meia Noite, o relato é situado num lugar entre o reino da lenda e o reino da realidade. Do meu lado, e conhecendo as astrosias do povo nortenho, não tenho qualquer dúvida de que o costume era real, pelo menos numa versão muito aproximada dos testemunhos dados actualmente.
Consistia na ida de uma grávida prestes a dar à luz até uma ponte, regra geral até à ponte mais velha do lugar onde vivia, normalmente acompanhada por um balde e uma corda, e pelo seu marido ou, em alternativa, por um familiar, havendo ainda a hipótese de vários elementos da família poderem estar presentes. O objectivo da viagem era abençoar a barriga com as águas do rio que, entre a meia noite e os primeiros raios de sol, se acreditava serem mágicas.
Havia, contudo, algumas regras para que o baptismo funcionasse. Primeiro: a grávida deveria posicionar-se a meio do tabuleiro da ponte (há uma lenda galega que, ao invés, defende que a mulher deveria estar por baixo da ponte, mas, dos relatos que conheço, é caso único). Segundo: o acompanhante (ou os acompanhantes) da mulher deveria ficar a guardar a travessia do rio de ambos os lados e aí esperar por algum viajante. Terceiro: o primeiro homem a chegar seria convidado a tornar-se padrinho da criança depois desta nascer – no caso da Ponte da Misarela, aguardava-se por duas pessoas, uma de cada sexo, para que houvesse um padrinho e uma madrinha. Quarto: o padrinho benzia a barriga da mulher grávida usando água do rio que corria sob o pontilhão, e para isso utilizavam o balde que, com uma corda atada à pega, era atirado do topo do tabuleiro e puxado de volta já abastecido. Quinto: em momento algum se podia meter um cão ou um gato na travessia, caso tal acontecesse, todo o plano teria de ser cancelado e remarcado para outra data – dependendo da versão contada, violar esta norma poderia resultar no aborto do bebé por nascer.
Para finalizar, diz-se que no momento da bênção o padrinho deveria, com os dedos molhados nas águas mágicas, desenhar o sinal da cruz na prenhez, ao mesmo tempo que soltava uma prece, habitualmente a que reconhecemos nos baptismos realizados nas igrejas: “Eu te batizo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo…”. O amén, curiosamente, não deveria complementar a oração. Talvez ficasse guardado para uma cerimónia oficial. No exemplo da Ponte da Misarela, versavam-se outras palavras, diria que menos institucionais: “Eu te baptizo, criatura de Deus. Se fores rapaz, serás Gervaz, se fores menina, serás Senhorinha…”.
A benção significava um bom parto e o desenvolvimento de uma criança saudável. Por vezes, o miúdo abençoado ainda dentro do ventre materno ganharia poderes sobre-humanos, conforme se descreve numa lenda de Ponte da Barca, cuja personagem principal, um rapaz da terra afortunado por essas águas benditas, era capaz dos mais louvados actos, como levantar uma carroça pela força dos seus braços, cessar escaramuças de vários galfarros, segurar gigantes pendões nas romagens da terra.
Significado e simbolismo
Não é apenas nestes baptismos pagãos que existe a crença acerca da capacidade curativa ou profilática das águas por altura da meia noite. Relembre-se que na Noite de São João também há a fiúza de que um banho no momento em que o dia 23 de Junho passa para 24 de Junho é sinónimo de fortuna. A meia noite, enquanto ocasião de passagem de uma unidade temporal para outra, obedece ao conceito de tempo-vácuo, em que não se é uma coisa nem outra, tal como acontece, de igual forma, no Samhain, comercialmente conhecido como Halloween, onde os mortos regressam ao mundo dos vivos no período que vai entre as vinte e quatro horas e os primeiros feixes de luz solar.
À água transformadora da meia noite soma-se o objecto onde se centra o rito: a ponte, lugar de passagem de uma margem para outra. Não é coincidência que os relatos transmitam que o baptismo deve ocorrer a meio da travessia. O meio da ponte funciona como simetria para o meio da noite. Mais uma vez, tal como a hora zero, vence a ideia de não se pertencer a nenhum dos lados. Uma clareira onde a ordem natural e social se desfaz.
Este tempo de ninguém (a meia noite) passado num espaço de ninguém (o meio da ponte) é explorado na psique popular como a melhor altura e o melhor lugar para o metafísico se apresentar à vida terrena. O inexplicável respira em cada um destes segundos e em cada um destes centímetros. O facto de tudo se desmoronar caso um gato ou um cão compareça nos supostos momento e sítio chaves do baptismo é esclarecedor. O cão e o gato são, por tradição, os animais que mais convivem com os humanos, e portanto a sua presença, de índole mundana, iria contrariar a ideia de um espaço-tempo sagrado, livre de convenções.
Desenho por Inaê Prado