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A companha apresenta-se ao mar pela matina. Com ela vem um barco e um tractor e uma pesada rede colorada com o tom das algas. O que se segue é uma demanda pelo lanço perfeito: um que traga muito e bom peixe. A tudo isto demos o nome de Xávega, ou Arte Xávega.

A arte do cerco

Fugindo às especificidades regionais que existem consoante a zona do país onde é praticada, podemos resumir a Arte Xávega a uma pesca de cerco e arrasto suportada, actualmente, por um tractor, um barco, e uma companha (empresa de pesca responsável pela sua organização).

Entrando em detalhe. Na praia, um cabo é fixo em terra deixando o resto do cabo dentro do barco, chamado genericamente de xávega também. Este acede ao mar com a ajuda de rolos de madeira, de tábuas amadeiradas barradas com banha para facilitar o deslizamento, ou mesmo do próprio tractor se assim for possível. À medida que o xávega entra mar adentro, o cabo vai-se desenrolando. Quando chega a dois, três ou quatro quilómetros de distância do areal, atira-se a rede para o oceano e o barco começa a fazer uma curva semicircular que o irá pôr de retorno à praia. A rede irá alargar-se até escancarar um saco que se encontra no seu centro. Assim que a embarcação regressa a terra, é puxada pelo tractor, carregando consigo a outra ponta do cabo. No mar fica uma espécie de manto que vai encaminhando o peixe para o saco que se encontra no seu âmago pronto a puxar. O tractor é novamente chamado a intervir. Pegando no cabo que ficou em terra e no cabo que deu a volta ao mar, faz-se o arrasto. Cerca de uma hora depois, o peixe chega à costa, ainda vivo, aos saltitos. A cada uma destas levas dá-se o nome de lanço que, claro, pode ser bom ou pode ser mau, consoante a quantidade e a qualidade do que aparece.

O tractor é a novidade recente – antes não havia cá ajuda mecânica e todo o esforço era carregado por braços humanos ou bois emparelhados em cangas, coisa que só mudou perto da década de 70 do passado século. Também o barco levou actualização com a introdução do motor, embora os remos ainda entrem em campo como auxílio de equilíbrio na entrada e na saída e como prevenção para eventuais avarias do motor. Não se pense, todavia, que a chegada do combustível à Arte Xávega a tornou fácil. Tornou-a menos hercúlea, na melhor das hipóteses, porque os homens continuam a ter de enfrentar a cordilheira de vagas para lá, e voltar a enfrentá-las para cá, sem esquecer toda a parte de obter rentabilidade na tarefa.

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Origem

A pesca de cerco portuguesa parece ter surgido de outras que se faziam na Catalunha e na Andaluzia – e estas teriam provavelmente ascendência árabe (Marrocos pratica uma arte muito semelhante e a própria palavra xávega deriva do árabe xábaka, ou seja, rede) ou porventura fenícia. Por cá, ganhou outros contornos, porque enfrentar o Atlântico não é o mesmo que enfrentar o Mediterrâneo. Sem querer ofender os pescadores catalães ou andaluzes, a faina em Portugal exige outra fibra, por razões óbvias.

A influência andaluz faz-se sentir com maior incidência no Algarve, em Lagos, onde a Xávega ainda hoje existe, enquanto a catalã terá sido mais influente na nossa costa ocidental, começando antes pela Galiza e depois cimentando-se nas imediações de Aveiro (mormente nas praias da Vagueira, de Mira, do Torrão do Lameiro, da Cortegaça, da Tocha, do Areão, do Furadouro, e da Torreira). Daí espalhou-se para norte – embora nunca subindo acima do Douro, ficando-se por Espinho – mas sobretudo para sul – Praia do Pedrógão, Praia da Vieira, Praia da Nazaré, certas praias da Costa da Caparica (a da Saúde, a do Castelo e a da Fonte da Telha) e de Sesimbra (a da Califórnia, a do Ouro, a do Moinho de Baixo e a da Lagoa de Albufeira). Alguns destes pescadores do distrito de Aveiro chegaram até a colonizar o Tejo nos meses de mar bravo, dando origem àquilo que hoje denominamos Cultura Avieira.

O seu pico de fama deu-se algures no século XIX, mantendo-se sensivelmente durante a primeira metade do século XX. A partir daí, tem vindo a decair – ou porque há formas mais eficientes (mas também menos sustentáveis) de pesca, ou porque os filhos dos pescadores buscaram outra vida menos arriscada (diga-se, entretanto, que a Arte Xávega está longe de dar rendimentos satisfatórios a quem a pratica, e são vários os homens que dedicaram a sua vida ao mar que pedem aos seus filhos para procurarem outras paragens).

A azáfama do Lanço

O momento por que todos esperam: o lanço

O barco

Dependendo da região onde a Arte é feita, há ligeiras diferenças no barco que vai a mar. Apelidado, como já foi dito, de xávega ou de meia-lua (em Sesimbra dão-lhe o nome aiola), a sua forma marca o tipo de pesca que serve, de entrada difícil, através do areal, ao contrário de outras que têm nos portos de abrigo o seu ponto de partida.

Em termos genéricos podemos descrevê-lo como uma embarcação em madeira, quase sempre de pinheiro, bastante leve, de fundo chato e em crescente de lua. A leveza que o caracteriza faz parte do plano: quanto menos robusto for, menos resistência oferece às ondas. O fundo aplanado permite maior facilidade na deslocação na areia, dado que o casco em cunha bloqueia o seu avanço em terra. E a sua forma em lua crescente, de proa côncava, funciona como faca de corte das vagas que rebentam junto à costa.

Presentemente conta com cerca de dez metros de comprimento, variando conforme a zona onde opera. Convém dizer que o tamanho exigido tem vindo a mingar com a chegada do motor – se antes eram necessários mais remos e espaço suficiente para remadores, hoje a máquina faz esse trabalho. Com efeito, uma tripulação de seis ou sete homens, nos dias que correm, faz a festa – um número distante daqueles que ouvimos velhos pescadores lembrar, na ordem dos quarenta homens por embarcação.

O lanço e o peixe

O momento de suspense é, sem dúvida, a chegada do peixe ao areal. É nessa altura que sabemos se todo aquele trabalho valeu ou não a pena – porque em muitos casos não vale, daí ser considerada uma arte cega. Sabendo que se têm de pagar as licenças, o pessoal, o material e a manutenção do barco, é bom que a leva venha carregada.

Quando tal acontece, dá-se a azáfama: até banhistas, no conforto do seu banho de sol, abdicam da preguiça e juntam-se ao enxame de gente que circula a rede. Visto de cima, parecem pombos a disputar pão. É então tempo de regateio. Mas pouco porque o peixe já é vendido bem barato. Procura-se carapau, cavala, tainha, sardinha e lula. Sardo e robalo mais raramente.

Algumas caixas estão reservadas logo à partida. São transportadas pelas mulheres dos pescadores e serão vendidas depois, à medida que percorrem a povoação com os habituais trejeitos e praguejares.

Recriação da Arte Xávega quando ainda totalmente manual

A Arte Xávega recriada como era antigamente, na Nazaré

A Arte Xávega como embrulho turístico

Registamos hoje alguns grupos de pessoas que, talvez por passarem demasiado tempo sentados em mesas de escritório, procuram a genuinidade do trabalho popular, mesmo que este seja demasiado pesado para o seu corpo, estando dispostas a gastar dinheiro para isso.

Um bom exemplo é a vindima, onde há turistas que pagam para sentir um pouco desse prazer que é tirar alguma coisa da terra – isto é, dão dinheiro a quem os deixar trabalhar a colher uvas das videiras, coisa impensável há décadas.

O mesmo acontece, de certa maneira, com a Xávega. Desde há uns anos para cá, sobretudo nos meses estivais, alguns veraneantes, portugueses e estrangeiros, procuram praias onde a Arte Xávega aconteça, e quanto mais próxima esta for daquilo que era antes, melhor. Sujeitam-se, assim, a dar uso aos braços, ajudando no reboque das redes lançadas. No fim, muitos nem sequer pretendem receber o quinhão a que têm direito. O que procuram não é tanto o peixe, mas sim fazer parte daquele labor clânico, tornar-se um pescador da companha, ser um deles.

As câmaras municipais, que já se aperceberam desta realidade, desdobram-se em iniciativas que promovam a reprodução da arte Xávega à antiga, sem tractores e até sem bois: garantem, desta forma, um fluxo de gente disposta a visitar os concelhos em causa. Há também municípios que financiam algumas das companhas activas, aliando a divulgação turística à defesa do património imaterial do concelho.

Também há, claro, quem dispense o ofício e venha apenas para comprar o peixe fresco que a Xávega arrasta do oceano. Gente do interior costuma deslocar-se às praias do litoral quando sabem que uma companha vai a mar. Aproveita para comprar peixe ainda vivo a bom preço. Muitos levam quantidades suficientes para as próximas estações.

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