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Arroz de Cabidela é o nome transversal a todo o país, também designado Galinha de Cabidela, Galo de Cabidela, ou apenas Cabidela. No entanto, a forma que mais gosto de usar vem do seu lugar de origem, o Norte português, que o apelida de Arroz de Pica-no-Chão.

Se a palavra cabidela gera dúvidas – apontando alguns uma raiz africana (mais concretamente angolana), outros árabe (como evolução de quebdia), e outros ainda que a reduzem a uma derivação dos cabos que eram cozinhados (ou seja, os membros do galo) -, o termo pica-no-chão é bastante gráfico e refere-se ao facto de o galináceo ter de ser caseiro (pica no chão porque um galo de capoeira bica o seu milho ou a sua couve directamente do solo, ao contrário do frango de aviário).

O Arroz de Pica-no-Chão por que é tratado no noroeste de Portugal, nomeadamente na região do Entre-Douro-e-Minho, torna-se, assim, um garante da qualidade da carne que se come. Trata-se de um frango de campo. Um frango do quintal. Um frango da aldeia. Pesado e robusto. Que suja as patas com o pó da terra batida e trepa redes e vedações de arame.

De qualquer forma, quer arroz de cabidela, quer arroz de pica-no-chão, são designações incompletas do prato que nos vem parar à mesa. Actualmente, Cabidela remete para o uso de sangue (nem sempre foi assim, antes servia para referir apenas as entranhas dos animais), por isso há muitas cabidelas na arte da cozinha – de pato ou de ganso, por exemplo, ficando-nos apenas pelas aves. E pica-no-chão sugere que se trata de um frango, mas deixa o uso do sangue de fora. Como tal, a maneira mais completa de sintetizar a iguaria é chamá-la de Cabidela de Pica-no-Chão, um cruzamento dos dois nomes mais frequentemente usados.

A matança do frango – origem do Arroz de Cabidela

Há quem indique uma possível origem da Cabidela por influência francesa na corte portuguesa do século XVIII. Acho difícil que não existisse já uma espécie de cozinhado feito à base de galinha ou de galo e do seu sangue. Na verdade, a maneira como o Arroz de Cabidela é feito hoje sugere que veio de quem pouco ou nada tinha, tendo em conta que tudo no frango decepado é aproveitado.

Com efeito, não sabendo exactamente quando o Norte se lembrou de criar o seu Pica-no-Chão, sabemos pelo menos isto: a ideia por trás da Matança do Porco, hábito que ainda se pode testemunhar nas regiões rurais do país, é a mesma que se aplica à da Cabidela – um animal que é para ser comido na totalidade, das extremidades à cabeça, passando pelas vísceras. A única coisa que poderá levar-nos a crer que se tratava de um prato de ricos é o uso do arroz, que até à viragem do século XIX para o século XX se tinha como alimento de gente abastada. Mas esse acrescento pode ter surgido depois, como complemento a uma fórmula anterior.

Paralelamente, há ainda quem explore os domínios das minorias religiosas em Portugal para justificar a utilização de sangue nas refeições portuguesas. Considerando a sacralidade de alguns animais para mouros e judeus, a introdução do sangue na dieta cristã seria uma forma de comprovar a sua fé junto da igreja, ou sobretudo junto da Inquisição. Comer sangue era uma afirmação de cristandade. 

De resto, é aceite que Portugal levou a cabidela para outros lugares do império. Angola, Moçambique, Goa e Macau, como diz a canção, mas também o Brasil, onde o sangue ganhou o nome de molho pardo, numa referência à cor do mesmo.

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Como fazer Arroz de Cabidela

Há quatro alicerces no Pica-no-Chão minhoto. O frango, o arroz, o sangue, e o vinagre. Vejo por aí muita receita moderna que promove Cabidelas sem sangue para não arredar público de um prato controverso. Mas Cabidela é com sangue. Se vem sem sangue, então não é cabidela. Da mesma forma que se tirarmos a lampreia ao Arroz de Lampreia, ele passa a ter outro nome. Afasta as pessoas? Pois que afaste. Se na cozinha quisermos agradar a toda a gente, acabamos a não agradar a ninguém.

Feita a declaração de intenções, vamos ao manjar.

O que importa reter é que a tetralogia falada acima – frango, arroz, sangue, e vinagre – seja de boa qualidade. Tudo o resto é condimento e, portanto, optativo. O frango, como foi falado, deve ser de capoeira, com penugem farta e corpo cheio – de preferência, que seja um galo ou mesmo um galo capão, havendo raças preferenciais como a amarela, a preta lusitana, ou a pedrês. O arroz precisa de goma e por isso é melhor o carolino ao agulha. O sangue, havendo hipótese, deve ser o do próprio animal, recolhido assim que este é degolado e misturado com vinagre de imediato para não solidificar. Quanto ao vinagre, a margem é maior, desde que se cumpra o teste da qualidade – há quem use vinagre de vinho branco, os mais cosmopolitas vão ao vinagre balsâmico, e eu que sou purista prefiro vinagre de vinho tinto.

A coisa começa com a morte do galináceo. Mesmo que não sejamos nós a fazê-lo, até porque é uma estocada de sabedoria, o ideal é comprar o galo no momento em que fina – há mercados que o fazem, com o extra de o depenarem e cortarem como deve ser, ou seja, pelas articulações, entregando também uma garrafinha com o sangue do bicho à parte. Já o cozinhado, deve ser guardado para o dia seguinte, depois de a carne descansar por 24 horas numa marinada de azeite, cebola, louro, e alho – aqui temos alguma folga para a imaginação, e há quem avance com misturas mais complexas, que envolvam pimenta, pimentão, vinho branco ou vinho tinto, carqueja, cominhos, salsa…

Todas as partes do frango podem entrar em campo, das pernas às asas, do peito à cabeça, e mesmo os miúdos contam para a festa. Há, no entanto, quem prefira retirar o fígado, pelo gosto, e a cabeça, pelo sentimentalismo.

Quanto à preparação, é relativamente fácil. O que se tem de entender é que teremos três cozeduras. Primeiro a do frango. Depois a do arroz. E enfim a do sangue.

Começamos por fazer um estrugido com azeite e cebola picada. Pouco tempo depois junta-se louro e alho. O frango que esteve a dormitar na marinada do dia anterior sai do seu leito e salta para o refogado acabado de fazer – primeiro a carne, depois os miúdos. Sela-se todas as partes do frango em toda a sua superfície. Acrescenta-se a seguir um pouco de água ou, havendo opção, de caldo – podemos mesmo usar caldo de galinha ou caldo de cebola. E dá-se início à cozedura do frango. Inicia aqui o toque do cozinheiro no que diz respeito a timings. Na cozinha, o tempo da cozedura transforma um bom prato num mau prato, e vice-versa. O frango tem de ficar macio logo com a primeira cozedura se quisermos retirá-lo a meio da preparação para o juntarmos de novo no final. Caso não queiramos retirar a carne do tacho, como alguns chefs gostam de ensinar, e como eu prefiro, então podemos avançar para o segundo passo: o arroz.

Quem já provou, sabe: o arroz da Cabidela não deve ir para a mesa seco, mas sim em caldo, ou malandrinho, usando linguagem popular. Como tal, a proporção não é a habitual duas de água para uma de arroz. Alguns sentenciam que deve ser de três para um. Eu prefiro que se faça a olho. Vai-se acrescentando caldo, um pouco de vinho tinto para dar sabor, e vamos olhando, e vamos cheirando, e vamos provando, porque é no empirismo que a coisa sai bem. Se começa a secar, calibramos com um pouco mais de caldo (ou de água quente). Fulcral é que não coza demasiado, até porque ainda vamos ter um último passo, quando o sangue se junta ao composto.

Finalmente, o sangue misturado em vinagre sobe ao palco. Tem pouco tempo para cozer, mas é aquilo que mais distingue a Cabidela – não só pela cremosidade que o sangue entrega como pela acidez que o vinagre garante. Uns três ou quatro minutos depois de entrar no tacho, bem mexido com colher de pau, e já está feito o seu papel. Serve-se bem quente, no segundo em que sair do fogão. Eu acompanho-o com Vinho Verde, mas o tinto, casta vinhão, e com recurso às ternurentas malgas de barro ou de porcelana, como o Minho ordena.

Cabeça de Galo Preto

Galo de raça Preta Lusitana

O robusto Galo Pedrês

Galo de raça Pedrês

Galo e galinhas da raça Amarela

Galo de raça Amarela

Onde comer Arroz de Cabidela

Infelizmente, o policiamento que algumas receitas tradicionais sofreram nos últimos anos fez com que o Arroz de Cabidela saísse do menu de muito tasco português. Deixando a ressalva que muitos desses estaminés podiam estar em incumprimento no que respeita à higiene exigida à restauração nacional, sei, porque eu mesmo o testemunhei, que houve exageros. Não obstante, a boa notícia é que ainda vivem muitas tabernas, adegas, cafés e restaurantes a servi-lo.

No Norte, temos a Casa Ventura, em Amarante, numa tachada que pode rodar por família numerosa que ninguém acaba com fome; a Adega Malhoa, em Braga, que faz do Pica-no-Chão uma das especialidades; o Ferrugem, cozinha de autor entre Braga e Famalicão, que carrega um pouco no preço, mas é uma maravilha; em Viana do Castelo, o Camelo serve-o como Arroz de Galo Pé Descalço; o Torres, no concelho de Vila Verde (tida como a capital do Pica-no-Chão), apresenta talvez a mais clássica das cabidelas minhotas; o Solar Moinho de Vento, na Baixa do Porto, que é um lugar feliz para qualquer pessoa que goste de comida tradicional, e o humilde Rápido, também no Porto, que mostra ao mundo que não é preciso grande ornamento para fazer uma coisa bem, aprimoraram o seu estilo e são hoje um modelo para outros aprendizes da Invicta.

Ligeiramente a sul do Douro temos em Vouzela a Quinta da Cavada, que cria os seus próprios galináceos e serve excelente Galo de Cabidela. E ainda mais a sul, O Mugasa, em Anadia, contraria a sua própria natureza – famoso pelo leitão, é na Cabidela que tem a sua obra maior.

Lisboa, que durante tantos anos recebeu galegos e portugueses do Norte, tem vários espaços dedicados ao prato setentrional. A Adega da Tia Matilde é um deles, numa cabidela herdada de família. Também o Tico Tico, em Alvalade, e o Imperial de Campo de Ourique, no bairro homónimo, têm muito competente pratada de Pica-no-Chão.

Para lá das casas de pasto, podemos sempre seguir ou filiarmo-nos na Ordem da Cabidela, espécie de confraria que toma honrosas iniciativas de ir provar o manjar aos quatro cantos do país, incluindo no sul, onde o prato é menos usual. E, caso residamos na zona Norte, recomenda-se atenção aos festivais que as concelhias vão apresentando ao longo do ano, sobretudo de Agosto em diante. Ora veja-se: há em Baião no mês de Agosto, em Vila Verde no mês de Setembro, em Arcos de Valdevez no mês de Outubro; em Barcelos no mês de Novembro, e em Vieira do Minho no mês de Dezembro. Não é possível estar-se ocupado seis meses seguidos. Só não vai quem não quer.

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