Vocabulário Tradicional Madeirense (I)

by | 16 Ago, 2020 | Culturais, Madeira, Províncias, Tradições

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A ilha da Madeira, embalada ao som do mar, é um jardim muitas vezes prolixo em verve e gíria singular que não raras vezes parecem desembocar num dialecto novo para os ouvidos desabituados. Mas, dentro dos limites morfológicos da ilha e principalmente entre as gentes que compõem os tecidos menos jovens, o exemplos que se vão seguir sob dois diálogos distintos eram geralmente proferidos a cunho rotineiro. Para quem não os ouve há muito, pode sempre relembrar. Esta pequena recolha subordinar-se-á a expressões de tipo quotidiano, não necessariamente domingueiro.

As várias Madeiras

Deve-se pois lembrar que o uso pragmático de expressões típicas madeirenses muda consoante os vários lugares da ilha – há expressões muito típicas do sul, outras bastante próprias do norte, e assim por diante. Há, também, quem no norte nunca tenha ouvido certas expressões do sul. Vale recordar que muitas das expressões tradicionais que vamos elencar se desenvolveram em épocas idas, que remontam ao início do século XX, em que pequenos feudos floresciam em vários pontos isolados da ilha. A comunicação entre um lado e outro da ilha ressentia-se disso porque, como se sabe, deslocar da vertente oeste para a este implicava, na impossibilidade de haver carro próprio, atravessar a ilha de ferry marítimo para chegar ao Funchal (quando nos reportamos há 60 anos, por exemplo, não era nada frequente as famílias terem carro próprio, sobretudo as mais isoladas da cidade – podemos dizer com certa unanimidade que os automóveis começaram a expandir na ilha lá pelos finais dos anos 70). Visitar certas partes da ilha não deixava de ser uma aventura de expedição! Devido ao relevo, é uma ilha de micro climas, pelo que podemos falar em micro dialectos. Por estas razões, é natural que certas expressões e falares típicos se tenham entretecido de modo micro, consignados a cada localidade, por oposição a um crescimento macro de expressões alargadas a toda a região. Um raciocínio semelhante vale para a variedade de sotaques em toda a ilha que surpreende o turista.

Vamos, então, ensinar como se falava há muitas décadas na ilha da Madeira (nos locais mais remotos da ilha pode ser que ainda se empreguem estes exemplos). Pelo pouco que é retido hoje na expressão oral destes modos mais vetustos, é nosso dever relembrar e chamar a atenção para a memória que eles trazem de um modo de vida campesino, lúdico e despretensioso.

Diálogos madeirenses

Propomos para leitura dois episódios que forjámos a título representativo para melhor ilustrarmos os diálogos, o de uma avó com a sua neta, e o de um indivíduo perante as vicissitudes de um amigo atordoado após uma bulha (fica a sugestão de pensarmos estes diálogos situados em analepse, talvez no princípio dos anos 90 do século XX, para que a sua absorção em leitura possa ser mais fácil). Impõe-se-nos, ainda, prevenir o leitor de que o falar madeirense é caracteristicamente recheado de anástrofes, o que amplifica a sua expressão exótica, e, não menos importante, os gerúndios são usados com grande frequência. Também, embora tenhamos escolhido subtrair o pleonasmo dos diálogos, o pleonasmo é um recurso recorrente de língua falada, sobretudo no que diz respeito aos advérbios de lugar e tempo e pronomes demonstrativos.

Comecemos pelo primeiro diálogo, diz a avó para a neta:

— Credo, abrenuncia! Não se penteia essa grenha?
— Avó, não me atente que eu estou com uma reina hoje.
— Pequena, depois não crames que essa beira está enchocada.
— Para dizer isso não precisa de fazer pouco da minha guedelha. Estou com gana de tomar café. A avó quer uma bochecha? E quantas colheres de açúcar?
— Ora o nosso juízo, a pequena pergunta se eu quero café. Duas colheres de açúcar.
— Rasas ou cacul? Só perguntei porque a senhora minha avó é debiqueira.

No segundo diálogo interagem dois associados, um deles assolado por uma forte porrada:

— Aqui del rey, levei uma malha. Apanhei uma fraima de todo o tamanho.
— Ame, q’acelerada que levaste nas ventas!
— Dei uma cambriola e andei de rolos, parecia uma dobadoira de um lado para o outro. E enfincaram-me os dedos pela goela abaixo e tudo, acho que vou rabuçar! Deita-me a mão que vou-me aposinhar.
— Aboseira-te p’raí no soalho. Cuidado que isso dá no goto. Forte malha. Como é que isso te foi acontecer?
— Foi à rebendita!
— O horário está quase a passar, vai-se te levar ao centro de saúde.
— Não atremei direito, caminha da minha frente!
— Ame, vai-te para Arregel. Socorro, que este homem já não está em sui sinas!

Vocabulário por ordem de entrada de palavras:

Grenha – cabeleira
Reina – raiva, ira
Cramar – queixar
Enchocado – desalinhado com nós
Uma bochecha – pequena quantidade de um líquido
Cacul – cheio, empilhado
Debiqueiro – que come pouco, debica a comida
Fraima – susto
Acelerada – soco a toda a velocidade
Cambriola – cambalhota
Andar/cair de rolos – ir rolando
Enfincar – enfiar
Rabuçar – vomitar
Aposinhar – sentar-se à vontade
Aboseirar – sentar-se sem zelo
Dar no goto – engasgar-se
À rebendita – de propósito
Horário – autocarro
Atremar – ouvir, entender
Caminhar da frente – sair da frente, afastar-se da frente
Vai-te para Arregel – ir para longe, pode referir-se à capital da Argélia
Sui sinas – o contrário de bêbado